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histórico em remanescentes quilombolas do Rio Grande do Norte

Nelson Ferreira de Sousa Junior Departamento de letras, UFRN

“[...] Do ambundo, de Angola, kilombo, acampamento, moradia afastada, arraial solitário.” (CASCUDO, 2002, p.118).

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ntrodução

É relativamente recente, no Brasil, o avanço da pes- quisa linguística acerca do português falado em comu- nidades quilombolas (cf. LUCCHESI et al., 2009). Nesse mesmo sentido, como expõe Brandão e colaboradores (2010, p.7), somente nas últimas décadas tem crescido o debate acerca dos negros quilombolas, percebendo-se que, sendo remanescentes diretos ou não de quilombos, esse grupo social está relacionado a uma “histórica tra- jetória de discriminação contra a população negra que marca a construção da nação brasileira”.

Contudo, como afirma O’Dwer (2005), a classificação dessas comunidades tem sido vista como controversa, uma vez que, mesmo sendo consideradas tradicionais, como indica Brandão e colaboradores (2010, p.9), não devem ser vistas como estáticas na história, “estão em processo constante de mudanças e vivem intenso contato interétnico e intercultural”.

Outrossim, a observação e análise das relações socio- culturais e necessidades dessas comunidades – cerca de 30 no RN, com mais de 6 mil famílias – foram por muito

tempo negligenciadas pela pesquisa brasileira, inclusive pelos estudos linguísticos. É até possível que muito das reminiscências dos falares africanos dessas comunidades tenha se diluído na língua portuguesa e se perdido pela ausência de estudos anteriores. Como afirma Silva (2010),

é reduzidíssimo o espaço reservado […] [ao estudo das] influências dos falares africanos em nossa língua, o que não ocorre por acaso, vale ressaltar, pois para uma elite europeizada como a nossa é inadmissível [...] que uma língua de prestígio literário como a portuguesa, tenha sido influenciada por uma língua de negros escravos, de tradição oral.

Assim, os estudos históricos da língua, numa pers- pectiva descritiva e etnolinguística, como afirma Barreto (2010), podem em muito contribuir para a compreensão sobre as comunidades quilombolas, já que “a análise da língua de uma determinada comunidade, partindo dos fatos linguísticos para os fatos extralinguísticos, permite conhecer melhor a realidade social desta” e, assim, auxiliá-la na construção de sua própria identidade e desenvolvimento.

Nesse ínterim, a linguística histórica frequentemente está associada à análise de documentos escritos, não se evidenciando o valor dos dados de fala para o desenvol- vimento de uma determinada compreensão histórica da língua. Dessa maneira, a partir da conceituação de Silva (2008, p. 9, 23), baseada nos escritos de Coseriu (1979),

faz-se necessária a prática de uma “linguística histórica

lato sensu”, isto é, uma linguística que leve em conside-

ração a composição e observação de corpora datados e localizados, entendendo que “o conhecimento das realidades in praesentia abre caminho para melhor compreensão de fenômenos passados”.

Dessarte, visando a construção de uma agenda de pesquisa que contribua à análise e compreensão linguís- ticas das tradições orais de remanescentes quilombolas, este trabalho se apresenta como uma proposta à preser- vação de seu patrimônio linguístico-histórico, a partir da apreensão do modo como se configuram as Tradições Discursivas (TD) nos textos orais dessas comunidades.

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rAdições discursivAs e fAlAres quilombolAs

De acordo com Kabatek (2006, p.505, 508), tem cres- cido o uso do conceito de TD na linguística românica, sendo também aplicado na área dos estudos históricos do português brasileiro. De um modo geral, as TD referem-se a “modos tradicionais de dizer as coisas”, ou seja, evi- denciam um processo de cristalização de determinada construção linguística a partir de sua frequência de uso numa dada comunidade linguística, evocando, por sua vez, uma determinada forma textual.

Desse modo, é possível que as TD permitam um importante acesso a um “arquivo da memória cultural” das comunidades quilombolas relacionado às formas e modelos históricos de comunicação herdados de antigas gerações africanas.

De acordo com Cavignac (2008, p. 37, 38), acerca da comunidade quilombola de Boa Vista dos negros, “o autorreconhecimento como quilombola passa pela reiteração da narrativa”, o que indica essa forma textual como recorrente e tradicional para esse grupo. A nar- rativa, portanto, mostra-se como campo interessante à observação do que há de mais tradicional no grupo.

Nesse contexto, ao observar narrativas de cunho histórico de diferentes informantes do Quilombola de Portalegre do Brasil (SOUZA et al., 2011), percebeu-se a recorrência da seguinte estrutura:

a) introdução da narrativa a partir da referenciação familiar, indicando-se laços de parentesco ou genealogia;

b) apresentação do espaço onde ocorre a narrati- va, portanto, o lugar onde ocorrem os eventos a serem narrados;

c) apresentação de eventos em série;

d) clímax ou auge do desenvolvimento da narrativa; e) encerramento ou desfecho.

Dessa forma, evidencia-se a configuração de uma TD relacionada ao relato histórico, principalmente no diz respeito à introdução narrativa, sempre começando pela referenciação familiar e pelo espaço para, então, desenvolver-se a narrativa propriamente dita (Tabela 1).

Tabela 1 – Construções linguísticas padrão de introdução do relato histórico. INFORMANTE REFERENCIAçÃO FAMILIAR/ GENEALÓGICA APRESENTAçÃO DO ESPAçO M50-01 “Mundoca que é a mãe de Antõi de Guilermina” (99a) “que só t a no sito água... má e terra lá no Santo Antõi” (100a) M63-05

“diz o meu avô... o meu avô quera Jão Ricarte... o meu sogro que é o pai de meu marido... qué o finado Manéu Calixta” (32e, 33e)

“contava mermo o lubisome mermo contava quele morava aqui no São Tumás... discia aqui o s ô pega desceno” (34e)

H39-03

“ a vez... a vez Rita de Aldo foi passá naquele terreno de Marulino” (406b)

“lá perto da Milona” (407b)

H84-06 “Maria é filha m a... t i Maria e t i Rita” (46d)

“tudo morano na merma rua” (46d)

Nesse sentido, numa perspectiva relacionada a Coseriu (2010, p.126) revela-se uma identidade formal entre os diferentes relatos dos informantes, indicando uma maneira cristalizada de narrar os processos pelo qual a comunidade e seus membros estiveram envolvidos.

É claro que existem muitos outros processos envol- vidos na configuração do relato histórico e os resultados acima ainda se mostram preliminares. Todavia, o exemplo acima já evidencia a presença de uma estrutura mais fixa na organização narrativa produzida por esses informan- tes, estrutura essa que aponta para uma TD.

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onstruindo cAminhos possíveis

Por fim, tendo em vista a observação e análise das TD a partir de dados de fala de quilombolas, faz-se necessária a composição de um amplo corpus linguístico dos falares quilombolas do Rio Grande do Norte.

Recentemente, foi publicada uma mídia eletrônica pelo Núcleo de Estudos Linguísticos e Literários de Pau dos Ferros – UERN (SOUZA et al., 2011), com a transcri- ção da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil. Outra iniciativa já em curso é a do Projeto de

Ações Integradas da UFRN, Falares Quilombolas, que tem como um de seus objetivos a construção de um corpus representativo dos Quilombos do Rio Grande do Norte, iniciando-se pela região do Seridó.

De fato, a coleta e análise desses dados, observando-se suas TD, podem efetivamente contribuir para uma melhor compreensão dessas comunidades, auxiliando-as na ree- laboração de sua própria identidade cultural, preservan- do, desse modo, suas tradições, as quais são elementos estruturantes de seu patrimônio imaterial.

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eferênciAs

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BARRETO, Evanice R. Etnolinguística; pressupostos e tarefas. Partes, São Paulo, jun. 2010. Disponível em: <www.partes.com. br/cultura/etnolinguistica.asp>. Acesso em: 10 set. 2011. BRANDÃO, André et al. Comunidades quilombolas no Brasil; características socioeconômicas, processos de etnogênese e políticas sociais. Rio de Janeiro: Ed. da UFF, 2010.

CAVIGNAC, Julie A. Os “Troncos Velhos” e os “Quilombinhos”; memória genealógica, território e afirmação étnica em Boa Vista dos Negros (RN). Ruris, Campinas, v.2, n.2, set. 2008. COSERIU, Eugenio. Sincronia, diacronia e história; o problema da mudança linguística. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979.

COSERIU, Eugenio et al. Linguagem e discurso. Curitiba: UFPR, 2010.

KABATEK, Johannes. Tradições discursivas e mudança lin- guística. In: LOBO, Tânia et al. Para a história do português brasileiro: novos dados, novas análises. Salvador: EDUFBA, 2006. t. 2, v. 6, p. 505-527.

LUCCHESI, Dante et al. O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009.

O’DWER, Eliane C. Os quilombos e as fronteiras da antropologia. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005.

SILVA, Rosa V. M. Caminhos da linguística histórica: ouvir o inaudível. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

SOUZA, Medianeira et al. A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil [recurso eletrônico]. Mossoró: Edições UERN, 2011.