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Boa Vista, sua história e seus moradores

Gabriela Oliveira

Sinto-me lisonjeada em poder falar da Boa Vista dos negros, pois, de alguma forma, faço parte dela. Sou branca e casada com um quilombola; logo, minha filha Sara’h Emanuelle também tem suas raízes na Boa Vista. Tenho orgulho em participar da educação de todos que permane- cem cultivando a vida na comunidade. Até pouco tempo, Boa Vista era composta em sua totalidade por negros. E nessa comunidade tão rica, os costumes eram sagrados, pois só se casavam entre si. Esse costume era passado de pai para filho. Hoje, a miscigenação é mais frequente.

Segundo a história contada, em um ano de grande seca, uma retirante chamada Tereza se refugiou na fazenda do Coronel Gurjão junto ao seu pai e a duas irmãs. Chegando lá, pediu abrigo para passar a noite. Com o pedido concedido, Tereza e sua família abrigaram- -se na casa do Coronel. No dia seguinte, ao se prepararem para partir, o Coronel pediu ao pai de Tereza que deixasse uma de suas filhas para ajudar no serviço da casa. O pai atendeu ao pedido do Coronel e deixou Tereza na fazenda antes de seguir viagem. Tereza morou anos na fazenda do Coronel Gurjão e nunca chegou a ser realmente uma escrava. Com o passar do tempo, engravidou e, de acordo com os relatos, o filho era do Coronel. Assim, com a notícia da gravidez, Tereza teve de deixar a fazenda, morando nas terras doadas pelo seu tutor. Essas terras constituem, hoje, o território de Boa Vista.

Alguns idosos relatam pertencer à sétima geração de Tereza, como seu Manoel Miguel, que nasceu na Boa Vista. Mané, como é conhecido, tem uma rica memória e conta histórias que muitos nem sequer imaginam que aconteceram. Assim como ele, outras pessoas são im- portantes para a comunidade, como Dona Chica Vieira que se destaca, até hoje, pela sua importância para a educação da comunidade. Francisca criou a escola da Boa Vista: aos 17 anos de idade começou a dar aulas para uns 20 alunos, lecionando na casa de seu pai, com mesa e bancos emprestados de um vizinho. Ensinou nessas condições durante três anos, até que um fiscal da edu- cação, passando pela comunidade, percebeu o interesse dessa jovem e comunicou o fato ao prefeito da cidade, que, na época, era Florêncio Luciano. Ele mandou chamar Francisca, que, ao chegar, foi recebida com aplausos e com a notícia de que ganharia um grupo escolar para sua comunidade. No ano de 1957, o Grupo Escolar Serafina de Jesus foi entregue à jovem professora que há anos sonhava com a escola. Outro grande exemplo foi o da falecida Mãe Gardina, uma parteira muito conhecida pelo dom de ajudar vidas que vinham ao mundo. Sempre requisitada, atuava não somente em sua comunidade, mas também nas comunidades circunvizinhas. Graças a ela, a comunidade tem um posto de saúde que tem o nome dela a título de homenagem.

São muitos os nomes que marcaram a história da comunidade: Dona Maria de Pedro; Basto do Coentro; Zé de Paulina; Beatriz; Dona Quintina; Teodózio; Imbem; Miliano... e quem não conheceu seu Zé Vieira? Zé Vieira nasceu e morreu na comunidade, sempre lutando por melhorias e participando das atividades que aqui eram desenvolvidas em prol da cultura. Foi membro da irman- dade do Rosário e teve a oportunidade de passar por todos os cargos existentes, de Rei a Saltador. Zé Vieira faleceu no ano de 2007, aos 82 anos, e deixou para a comu- nidade sua contribuição. Faleceu durante a construção da Capela que tanto sonhou e onde teve seu corpo velado, conforme seu desejo. Hoje, quem visita a comunidade pode admirar a belíssima capela de Nossa Senhora do Rosário terminada há poucos meses.

A irmandade do Rosário é importante para Boa Vista. É uma congregação religiosa que leva a cultura negra a vários lugares. Sua maior referência é a religiosidade, especificamente, a fé em Nossa Senhora do Rosário. O grupo foi criado no ano de 1863, em Jardim do Seridó. A irmandade é formada por saltadores, batedores, reis, rainhas, juízes, escrivães e guardas de honra. Tem os negros do Rosário e o Reinado do Rosário. O Reinado é eleito anualmente, durante as Festas da Padroeira Nossa Senhora do Rosário, em Jardim do Seridó e na Comuni- dade de Boa Vista. Os negros do Rosário se apresentam

quando convidados para representar a irmandade. José Fernandes do Amaral, conhecido como Zé de Biu, é o atual Chefe da irmandade na Boa Vista dos negros; João Batista é o bandeirista e Gerônimo Roque é o capitão de lança. São eles que conduzem o grupo composto por mais de 30 homens entre crianças, jovens e adultos, os batedores e saltadores. A irmandade do Rosário torna viva a cultura afrodescendente, faz valer o esforço dos antepassados e a resistência frente ao preconceito.

Ainda hoje, os quilombolas sofrem preconceito, apesar das melhores condições nas quais se encontram. Por ser uma comunidade diferente das outras, povoada em sua totalidade por quilombolas, inclusive por membros de uma família só, a comunidade da Boa Vista se distanciava dos acontecimentos ocorridos na cidade e não era incluída nas ações desenvolvidas no município. Com a modernização e a urbanização, vieram as dificul- dades: a falta de energia elétrica, de água encanada e de muitos outros itens necessários à vida em comunidade começaram a instigar o pensamento dos moradores quilombolas. Eles não recebiam, sobretudo, a ajuda do governo para fazer melhorias.

Mesmo vivendo da agricultura e do artesanato, as famílias não conseguiam organizar a comunidade e foi assim que foi criada, em 1993, a Associação de De- senvolvimento Comunitário de Boa Vista dos negros

(ADECOB). O principal objetivo da associação é melhorar a vida em comunidade. As lutas em favor do bem de todos se espalharam entre os moradores que foram até o poder público para exigir igualdade de direitos. Dessa forma, depois que a associação foi criada, muitos benefícios começaram a aparecer, entre eles, a água encanada, a rede elétrica, a água para beber e até a construção de um açude com capacidade para suportar mais de cinco anos de seca. Além dessas necessidades, outros pontos foram levados em consideração, como uma quadra de esportes coberta, um ponto de cultura, “Espaço de Resistência”, e, além disso, foram organizadas oficinas de costura voltadas para as mulheres.

O Ponto de Cultura tornou-se, a partir de então, o principal núcleo de apoio aos cidadãos do quilombo. Lá, eles desenvolvem reuniões, oficinas, eventos de pequeno porte e outras atividades relacionadas à vida em comunidade. Esse espaço é um projeto do governo federal em parceria com o governo estadual e a Fundação José Augusto. O principal objetivo é fortalecer e divulgar os projetos que já existem dentro da comunidade. Para melhor explicar o nome de “espaço”, acho necessário complementar que ele foi um projeto, fruto de um trabalho coletivo. O Governo Federal lançou um edital com requisitos que nós tínhamos e, assim, ganhamos a concorrência. Em 2014, completamos três anos conse-

cutivos de apoio à comunidade de Boa Vista. Além dos trabalhos desenvolvidos pelos quilombolas, temos o apoio da Prefeitura de Parelhas, em especial através do Centro de Referência de Assistência Social Ivan Bezerra (CRAS) que oportunizou alguns movimentos como o Pérola Negra, movimento afro formado por mulheres da comunidade e o Afro Regueiros, grupo de percussão com- posto por rapazes quilombolas. Todas essas iniciativas foram divulgadas e apreciadas por todos que fazem parte da comunidade e do município de Parelhas.

Com as verbas destinadas ao Ponto de Cultura, foi possível melhorar os instrumentos e os figurinos para os grupos. Investimos, também, em oficinas de música e de dança para melhor preparar os aprendizes para propagar a cultura afro. O Ponto de Cultura trabalha em parceria com o Programa de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que foi implantado na comunidade no início de 2012. O Programa funciona através de visitas técnicas, palestras, discussões e ofici- nas sobre os mais variados temas, como, por exemplo: audiovisual, fotografia, produção de texto, tudo que possa ajudar na consolidação da comunidade e no fortaleci- mento da cultura. Além de formar jovens sobre a cultura afrodescendente e introduzir novas tecnologias, em 2012, o projeto também ofereceu bolsas a quatro jovens, alunos do ensino médio. O programa também busca

estimular as pessoas da comunidade a ter uma renda melhor. Para isso, foi ministrada na comunidade uma oficina de preparação de doces, para as mulheres que se interessassem em montar um grupo de distribuição e venda dos produtos. Hoje, um grupo de oito doceiras faz e comercializa doces, que vêm sendo bem aceitos.

Pensando em seu desenvolvimento, a comunidade recebe, sempre que pode, visitantes que contribuem com a história da comunidade. Temos, assim, o prazer de poder dividir nossa história e de ser parte de estudos tão importantes. Aproveito para, em nome da comunidade, agradecer a todos que têm dado atenção e têm olhado para essa comunidade quilombola que vem crescendo e conquistando seu espaço a cada dia que passa. Gosta- ria também de dividir com você, leitor, a satisfação e a emoção que a comunidade está vivendo por ter recebido, no dia 20 de novembro de 2012, por parte da Presidente do Brasil, Dilma Roussef, o decreto que dará a titulação das terras de Boa Vista.1

Desde já, despeço-me do leitor, deixando o meu abraço.

1 Este documento pode ser consultado acessando o link do jornal oficial (http://br.vlex.com/vid/desapropria-valido-negros-parelhas-407819110).

O texto foi escrito a partir das pesquisas realizadas pelos bolsistas do Programa ao longo de 2012. Inicialmente foi produzido para servir de apoio à exposição elaborada para a primeira semana da Consciência Negra da Boa Vista, em novembro de 2012.