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3.4 A COMPREENSÃO DO FENÔMENO DA INFECÇÃO PELO HIV

3.4.7 O HIV e a AIDS na comunidade

Parte da literatura assinalou que o surgimento do HIV e da AIDS desencadeou um estresse coletivo em todo o mundo, independentemente dos aspectos sócio-culturais ou econômicos. As abordagens epidemiológicas e médicas em torno deste agravo avançaram mais rapidamente do que a capacidade social de acompanhá-las, deixando a sociedade, de certa forma, desorientada no contexto dessa turbulência (VIGNALE & CALANDRIA, 1999).

Para alguns autores, a AIDS parte de um princípio biológico, avança por caminhos epidemiológicos, cruza a fronteira ideológica e transcende fenômenos e relações individuais e sociais de toda ordem existente. Especialmente porque envolve temas polêmicos como o sexo e a morte (BASTOS & BARCELLOS, 1995; CRUZ, 1999; GUIMARÃES & FERRAZ, 2001; SOARES, 1998).

Segundo os estudiosos, a resposta emocional que mais intensamente se definiu no sentimento coletivo em relação à AIDS, foi o medo da contaminação pelo HIV. Argumentaram que isto se deu devido à identificação desta com a perda da integridade física e da própria vida. Associado à ignorância e ao preconceito, surgiu o “sentimento de impotência e insegurança como o espectro de desespero contemporâneo” (MENEGHIN, 1996, p. 400).

De acordo com vários pesquisadores, ao vincular a infecção pelo HIV a transgressões comportamentais, esse cenário adquiriu um tom místico, no sentido de que tal infecção pode representar um justo castigo a um pecador. Os autores destacaram que essa percepção, na atualidade, é mais arraigada entre idosos, os quais tendem a ser mais conservadores em relação a minorias comportamentais e a comportamentos emergentes. (FIGUEIREDO & MARCOS, 1997; FRANÇA, 2000; MENEGHIN, 1996; SANTIAGO, 1998; SOARES, 1998).

Tomando como base as pesquisas de Guimarães & Ferraz (2001); Souto (2004a), o risco, em outras epidemias, geralmente é um fator sobre o qual o indivíduo tem controle limitado. A probabilidade da pessoa ser afetada pela doença, pode ser justificada pela fatalidade ou condicionantes sócio-políticos e ambientais. A infecção pelo HIV, segundo esses autores, pode ser negociada entre o indivíduo infectado e o não infectado, de modo que a escolha e a atitude da pessoa podem influenciar o risco dela ser atingida pela epidemia. O que há de sócio-político ou ambiental aqui, segundo as pesquisas, é no que isto influencia ou determina a tomada de atitude por parte do

indivíduo, como o acesso à educação e às oportunidades sociais, assim como a sua compreensão de cidadania, justiça e convívio democrático. Configura-se, neste caso, o conceito de vulnerabilidade, utilizado na abordagem epidemiológica da infecção pelo HIV, diferente do conceito de risco. Aqui, variáveis ambientais, sócio-culturais, políticas e individuais interagem na determinação da probabilidade da pessoa se infectar (Idem).

Os estudos assinalaram também, que, nas representações sociais da infecção pelo HIV, aparecem, com freqüência, atitudes de base teleológica, com significativo apelo religioso. Em geral, essas representações são compartilhadas por pessoas que convivem com indivíduos infectados. No conteúdo dessas representações, alguns autores identificaram tanto a intolerância quanto o perdão, envolvendo purificação ou acolhimento de ordem divina. Na maioria das vezes, essas representações apareceram como explicações e justificativas racionalizadas para o fenômeno, e, de certa forma, foram influenciadas por manifestações oficiais de ocupantes de elevados escalões da hierarquia religiosa, as quais aconteceram em vários momentos da história em que esse tipo de construção social foi oportuno (FIGUEIREDO & COELHO, 1996; FIGUEIREDO & MARCOS, 1997; GUIMARÃES & FERRAZ, 2001).

Em suma, os estudos mostraram que essas representações com base no mistério, na punição e na morte, produzem um medo que atinge a intensidade do irracional, percebido como oriundo de uma provocação externa, o qual é sentido como superior à capacidade do indivíduo de se defender ou de se adaptar. Isto acaba por fazer do HIV/AIDS algo que, independentemente do seu conteúdo metafísico ou ideológico, deve, a princípio, ser repudiado por todos (COBB & DE-CHABERT, 2002; MENEGHIN, 1996; SANTIAGO, 1998; SOARES, 1998). De acordo com Daniel (1994); Parker et al. (1994), essas observações nos mostram como a AIDS se construiu socialmente, até mesmo antes de se tornar uma epidemia de importância estatística.

Há, assim, uma representação social da AIDS, que, para Cardoso & Arruda (2004) foi formada com o objetivo de dar sentido à estranha e ameaçadora novidade chamada HIV/AIDS, para que possamos compreendê-la. Tal compreensão pôde ser alcançada a partir da sua ancoragem no pensamento social pré-estabelecido, o qual associou a infecção pelo HIV ao indesejável. A partir da sua objetivação, transformou esta infecção em um objeto contra o qual é preciso lutar.

Segundo as idéias de França (2000); Sanches (2000), e com base em conceitos postos por Winnicott (1994), o processo sobre o qual se construiu essa representação

social da AIDS é uma tentativa coletiva de dominá-la e submeter os portadores do HIV, no sentido de não permitir que interfiram no padrão de normalidade da sociedade para que esta continue como sempre.

Outros estudos mostraram que os efeitos da AIDS na vida coletiva pressupõem conhecer o conteúdo das representações sociais construídas sobre este agravo. Esclareceu-se que isso se impõe porque tais representações levam as pessoas a adotarem precauções exageradas contra a infecção pelo HIV, muitas vezes de forma escamoteada, incluindo atitudes de rejeição, abandono, segregação e discriminação, prejudicando a qualidade de vida não só do infectado, mas também de si próprias. Os pesquisadores acreditam que, no âmbito dessas representações, o indivíduo infectado pelo HIV passa a ser visto como o próprio HIV encarnado ameaçando a comunidade. Em alguns casos, tais representações podem fazer com que alguns indivíduos adotem atitudes homofóbicas. (FERRAZ & STEFANELLI, 2001; FIGUEIREDO & COELHO, 1996; MENEGHIN, 1996; VIGNALE & CALANDRIA, 1999).

Alguns estudiosos assinalaram o caráter paradoxal dessas representações. Ao mesmo tempo em que aumentam o receio dos indivíduos se contaminarem, os conduz a negligenciar seu próprio comportamento de risco. Outros estudos indicaram que o fato das representações sociais da AIDS terem, no início da pandemia, vinculado a doença a comportamentos transgressores, criou nos indivíduos que não se aderem a tais comportamentos, a crença de que não possuem pré-requisitos para se candidatarem à infecção pelo HIV, admitindo-se invulneráveis. Talvez essa atitude tenha representado a negação daquilo que amedrontava, pois, alguns pesquisadores mostraram que, indivíduos que se julgavam invulneráveis expressaram medo quando convidados a se submeter a um teste sorológico para o diagnóstico da infecção pelo HIV (FIGUEIREDO & MARCOS, 1997; MARGULLES, 1998; MENEGHIN, 1996).

Soares (1998) argumentou que, de certa forma, as pessoas já incorporaram a existência da AIDS nessa fase pós-pânico, no plano da opinião coletiva, apesar da continuidade de sua propagação. Entretanto, tal incorporação foi notada precocemente, uma vez que resultou do intenso bombardeio de informações provocado pela mídia. Dessa forma, para esse autor, foi possível justificar e entender a configuração atual do HIV/AIDS sob o revestimento de resistências e preconceitos por parte da sociedade, em que o nível de escolarização parece não ter muito significado nessa determinação.

Ainda de acordo com esse mesmo pesquisador, o HIV/AIDS foi construído no imaginário coletivo a partir dos diversos discursos produzidos sobre o tema, sejam os de

ordem religiosa, científica, ética, política, social ou estatal, os quais foram difundidos pelos mais variados meios de comunicação (SOARES, 1998).

Alguns autores relataram que, devido a isso, a infecção pelo HIV se associou a temas filosóficos, psicológicos, humanitários, etc., nos quais a marca “aidético” ficou definida como algo que distingue os infectados dos normais, os sadios dos doentes, os tocáveis dos intocáveis, os pecadores dos devotos, os cidadãos dos marginais, os honestos dos contraventores ou os aceitos dos degredados. Portanto, segundo Soares (op. cit.), anunciar que alguém está infectado pelo HIV soa como uma acusação que pressupõe uma culpa e uma necessidade de punição. Para evitar a punição é preciso que o acusado prove sua inocência: - Vocês estão dizendo que tenho AIDS? Eu faço o teste e provo que estou limpo! (GUIMARÃES & FERRAZ, 2001; SOARES, op. cit.).

Ainda de acordo com as idéias de Soares (op. cit.), com a AIDS, restaurou-se o confronto entre o bom e o mau, onde o mau expressa uma força invencível, mas o bom é obstinado e não desiste da luta. Segundo as idéias desse autor, o mau é aquele que produz e reproduz a AIDS, e o bom é aquele que se opõe a ela e ao mau. Traduzindo essa observação da literatura em outra linguagem, nesse confronto entre o bom e o mau, ninguém melhor que o discurso religioso, no seu modelo tradicional e preconceituoso, para impregnar o imaginário coletivo; especialmente a partir do momento em que a mulher começou a aparecer como elemento de risco e periculosidade para a infecção pelo HIV no processo de feminilização da epidemia: a Eva que se deixou seduzir pelo demônio e desgraçou a existência de Adão e da humanidade, agora está de volta pela mesma via do pecado!

Foi nesse ambiente que, segundo França (2000, p. 493), aflorou o estigma, ou seja, aquela “ideologia que busca explicar a inferioridade do outro e mostrar o perigo que representa para justificar sua marginalização”.

Falando em estigma, Mayers & Svartberg (2001) lembraram de uma observação feita por Sontag (1989) de que os indivíduos não infectados pelo HIV recuam do infectado por duas razões: primeiro, porque eles temem contaminação; segundo, porque eles podem estar numa atitude de não enfrentar os próprios sentimentos de vulnerabilidade em relação à enfermidade e as representações da morte que a pessoa infectada pelo HIV desperta nos não infectados. Por conseguinte, rejeitam o infectado ou, até mesmo, ficam abertamente hostis para manter os próprios sentimentos à distância (SONTAG, op. cit.).

orgânica, de modo que:

a) a AIDS social é definida como um “conjunto de representações sociais e posturas respectivamente discriminatórias” contra o infectado e contra a infecção pelo HIV;

b) a AIDS orgânica é definida pelos aspectos biológicos da infecção pelo HIV e concorre, na mesma pessoa, com a AIDS social;

c) ambas dão sentido e origem à AIDS mental, a qual é caracterizada pela “intensa angústia, ligada a fantasias de exclusão, degradação e morte”.

A AIDS mental é, portanto, um fenômeno que ocorre no plano individual, mas tem suas raízes no pensamento social e nos significados e representações do adoecimento físico.

Aproveitando observações feitas por Czeresnia (1997) a respeito de outras epidemias, o conflito entre a AIDS mental e a AIDS social associou o tema da desgraça, ao da dor, sofrimento e necessidade de compaixão. Conseqüentemente, conforme assinalado por Soares (1998), surgiram as organizações sociais de defesa dos interesses dos portadores do HIV, o discurso do estado regulamentando as relações e a intervenção sobre esse assunto, o discurso social sobre a moral sexual definindo culpas e responsabilidades, e o discurso científico salvador, superador do obstáculo e dominador da natureza.

De acordo com vários autores, em resistência a esse cenário, e em busca da correnteza contra-cultural persistentemente marginalizada, emergiram organizações comunitárias contestando a segregação do portador do HIV, a ponto de fazer grande parte da sociedade reavaliar sua atitude diante deste. Criou-se, assim, um espaço de tolerância, compreensão, afetividade e apoio aos indivíduos infectados pelo HIV, porém ainda em posição de desvantagem em relação à representação do estigma (GUIMARÃES e FERRAZ, 2001; SANTOS, 2002; SOARES, 1998).