• Nenhum resultado encontrado

6.3 A INTERPRETAÇÃO DOS RELATOS DOS PORTADORES DO H

6.3.3 A reação do portador do HIV ao diagnóstico: o encontro de novas

6.3.3.7 A resistência à exclusão social

Um homem de 33 anos de idade, reconhecendo o estigma que a infecção pelo HIV pode representar sobre si próprio, fez o seguinte comentário a respeito de como se defendeu desse percalço:

“Eu me sinto uma pessoa normal, apenas consciente de que eu tenho o HIV. [...].Quando eu vejo alguém que eu sei que não tem o HIV eu converso com esta pessoa normalmente, sem nenhuma diferença. Meus amigos nunca se afastaram de mim; eu nunca perguntei ou comentei nada com eles, mas não sinto que tem problema nenhum. Pode até ser que alguém me veja diferente por eu ter o HIV, mas não tenho como saber. Tem gente que olha desconfiada, sem dúvida, mas como é que a gente vai saber? Tem umas que dá uma deslocada, por exemplo, mas não fala nada; mas a gente vê que tem alguma coisa, tem mesmo! Às vezes alguém me olha meio de lado assim como se eu tivesse algum problema. Sabe até que eu tenho algum problema, mas não o HIV. Às vezes por algum comentário com ela, ela ficou sabendo de alguém, alguma coisa assim, não por causa do meu defeito ou alguma coisa que se passa.”

Apesar de reconhecer seu diagnóstico de portador do HIV e o estigma que o mesmo representa, esse sujeito procurou se adaptar e continuar como se não fosse estigmatizado. Tratou sua infecção como uma coisa que só existe para si, desprezando a interferência desta em seu contexto de relações.

Admitiu a possibilidade do estigma se manifestar. Entretanto, como nunca comentou sobre sua condição com outras pessoas, supôs que tal manifestação pode ser devida a algum outro sinal qualquer que não seja, necessariamente, a infecção pelo HIV.

Pelo visto, esse entrevistado tentou evitar sua exclusão pelo óbvio caminho da ocultação do estigma, porém, o acolhendo e o internalizando sem se auto-estigmatizar.

Segundo França (2000), a re-inclusão social da pessoa infectada pelo HIV depende, entre outros fatores, da própria atitude do indivíduo em tentar superar o auto- estigma.

“[...] já teve muito preconceito comigo. Banheiro, casa de família que eu ia, eles me cortavam... As pessoas que me aceitam, sabem que eu tenho, tomo coquetel, que eu me cuido, uso preservativo, tudo conforme eu faço e me aceitam; eu me dou muito bem. Agora, essas pessoas que sabem que eu tenho e não aceitam, também nem ligo porque eu não dependo delas, entendeu? Agora é cada um na sua. Quem me quer bem eu quero bem, quem não me quer, cada um pro seu lado.”

Esse sujeito descreveu sua experiência com o preconceito e o meio pelo qual se livra do mesmo. Sua atitude consiste em excluir do seu ciclo de relacionamentos quem não o aceita como portador do HIV. O fato de não depender daqueles que manifestam preconceito contra sua condição o deixou muito à vontade para se relacionar apenas com quem não o discrimina. Assim, o entrevistado assumiu a infecção pelo HIV como parte de si e decidiu ser o que realmente é, a despeito de que, para alguns, essa infecção possa representar um estigma.

Um militante de movimentos sociais comprometidos com a causa das pessoas infectadas pelo HIV, de 35 anos de idade, também resolveu assumir sua condição de portador desse vírus e resistir ao preconceito, conforme se vê no seguinte relato:

“Quando eu tinha medo do preconceito eu achava que as pessoas olhavam pra mim diferente sim. Hoje eu vejo que não. Não vejo tanto preconceito assim e... que isso depende muito do que eu vou mostrar pra a pessoa. Se eu mostrar que sou um bichinho acuado, eles vão me olhar como aquele bichinho acuado. Então, como eu encaro de frente eu não vejo diferença nenhuma. O que me fez perder o preconceito foi a necessidade de encarar a vida.”

O medo do preconceito era o que fazia esse sujeito se sentir discriminado. Entendeu que era preciso resistir à discriminação e decidiu lutar contra o preconceito, mostrando às pessoas que não se intimidaria diante do mesmo. O que demandou essa atitude, segundo o próprio entrevistado, foi a percepção de que a vida é para ser enfrentada.

Pelo visto, os dois últimos sujeitos que apresentei optaram por representar papéis alternativos ao que a infecção pelo HIV poderia lhes impor. Segundo Erthal (1989, p. 114), “podemos aceitar os papéis que nos são impostos ou escolher os papéis que precisamos desempenhar.”

Ao questionarem o preconceito, esses entrevistados assumiram papéis em direção ao desejo de se libertarem do mesmo e se auto-afirmaram, incorporando sua condição de portadores do HIV.

Um outro homem, casado com uma portadora do HIV, fez uma proposta parecida com a do militante social, porém de cunho mais coletivo. Vejamos o relato dele a seguir:

“...tinha que haver uma associação nossa, do DST [Doença Sexualmente Transmissível], pra que nós pudesse ter uma pessoa que lutasse contra [quis dizer a favor] os nosso direito. Assim deve ter muitas pessoa aí com esse problema, que tá acuado num canto... [...].Um dia eu gostaria de conhecer vocês. Inclusive eu quero relatar aqui. Eu quero formar essa associação do DST pra conversar com você, dialogar, pra você chorar, cantar, mas você falar tudo que vocês faz. Trocar poesia, trocar idéia.”

Esse sujeito sugeriu que os portadores de doença sexualmente transmissíveis se organizem em defesa de seus próprios interesses e que tal organização tenha dois focos: a luta social e a auto-ajuda. A idéia é que, se os segregados não se unirem em solidariedade a si mesmo, resta-lhes, como alternativa, permanecerem contidos em seu próprio isolamento.

Uma outra ocorrência, que também ajudou o portador do HIV a enfrentar o problema da exclusão social, foi relatado por uma faxineira que se sentiu muito gratificada com o cuidado que seus familiares e amigos passaram a ter com ela depois que souberam do seu diagnóstico:

“Eu não sinto que eu sou diferente dos outros que não têm [o HIV]. No começo, assim, eu achava que as pessoa olhava pra mim diferente, porque eu pensava assim, será que essa sabe que eu tenho? Será que... vai se dar comigo e tudo... mas depois... agora, assim, eu não vejo... Eu acho que as pessoas que sabem que eu tenho, não tem nada a ver. Elas senta na mesa comigo, come comigo... tanto que aonde que eu trabalho tem muitos que sabe que eu sou e não... divide as coisa comigo, come comigo, ri comigo, brinca comigo, sabe...”

Essa entrevistada encontrou um ambiente favorável que a acolheu. Assim, conseguiu usufruir um espaço onde não precisou tornar-se clandestina. Esse

acolhimento lhe assegurou uma oportunidade para se afirmar como sujeito identificado, aceito e adaptado ao seu meio social e cultural, caracterizando-se como um importante instrumento de apoio à sua re-estruturação interna.

Tendo em vista que as várias formas de inter-relação e comunicação recíprocas que acontecem entre familiares, amigos e outros conviventes validam a existência de uma pessoa e lhe dão uma identidade no ambiente, obviamente que o acolhimento do portador do HIV por parte desses inter-relacionantes proporcionará a ele um significativo apoio contra a frustração do desamparo culturalmente embutido na AIDS social.

A partir desse exemplo, destaco que há uma possibilidade para que o portador do HIV não precise se defender por meio da clandestinidade. A esse respeito Sanches (2000) acredita que, uma vez alcançando tal oportunidade, a pessoa poderá transformar o invisível (aquilo que não pode ter existência – a sua condição de portadora do HIV) em aparente e conquistar uma reação positiva do ambiente.

Um outro entrevistado, heterossexual, solteiro, que mora sozinho e esconde da família seu diagnóstico, também se sentiu acolhido. Porém, somente pelo ambiente onde recebe sua assistência de saúde. Expôs tal consideração por meio do seguinte relato:

“O HIV mudou e não mudou a minha vida, porque, quando eu falo que mudou, porque, eu sei que agora eu tenho que procurar... é... [...] esconder isso da minha família, porque eu não sei como seria a reação da minha família... [...]. Pras pessoas que [...] nunca fez os exame, eu aconselharia a procurar o pessoal do Centro da Promoção da Saúde, porque eu acho que vai ser melhor. ”

O serviço de saúde em que o portador do HIV recebe sua assistência especializada é o único lugar onde ele não tem como ser clandestino. Ao mesmo tempo, a pessoa infectada poderá depositar, neste, a expectativa de um acolhimento que não recebe, nem mesmo, em seu ambiente familiar. Portanto, devemos assegurar que o serviço de saúde seja, de fato, um lugar onde a pessoa infectada pelo HIV não precise sofrer em conseqüência da inevitável ruptura da clandestinidade resultante da necessidade assistencial. Essa garantia poderá permitir que o sujeito, pelo menos nesse ambiente, seja o que realmente é, sem que isso implique nos efeitos do significado e das representações da infecção pelo HIV.

Suponho que tal autenticidade poderá facilitar o encontro de pessoas infectadas entre si, no ambiente da assistência, gerando uma oportunidade para que compartilhem significados mútuos capazes de fazer com que a segregação desapareça, e, talvez, até para se organizarem conforme proposto por um dos entrevistados apresentados anteriormente.

Porém, Ferreira (1994) nos alertou que o apego da pessoa ao serviço assistencial pode regredir a estágios tão primitivos do desenvolvimento da personalidade que alguns pacientes se tornam extremamente dependes dos profissionais de saúde que deles cuidam, como se fossem suas mães a lhes proporcionarem apoio, proteção, ajuizamento e controle.

Em atenção a esse alerta, apesar de não ter encontrado tal ocorrência no contexto das entrevistas que realizei, sugiro que seja prudente observarmos os aspectos transferenciais que permeiam a construção do vínculo entre a assistência e o portador do HIV, no sentido da melhor adaptação possível entre estes, objetivando o bem-estar de ambos.

Vários autores argumentaram que, em muitas vezes, a busca por esse objetivo poderá implicar na necessidade de um atendimento particularizado, feito sempre pelo mesmo profissional-referência, acessível para o paciente e capaz de informar, instruir, educar, estruturar um acordo afetivo, identificar situações de risco para a não adesão à assistência e ao tratamento, e estar disponível quando necessário (BRASIL, 2003; CARDOSO & ARRUDA, 2004; FIGUEIREDO et al., 2001; KANAI & CAMARGO, 2002; LEITE et al., 2002; MACHADO et al., 1996,).

Em síntese, as pessoas que receberam um diagnóstico de portadoras do HIV perderam imediatamente seus referenciais. Entretanto, movidas pelo desejo e apoiadas por alguém próximo, puderam reconhecer o fenômeno que as afligia e encontrar um meio de se defenderem. Não obstante, esse reconhecimento pode depender de habilidades próprias da personalidade do sujeito.

Uma das representações que as pessoas infectadas pelo HIV precisaram enfrentar foi a da morte física. Para isto, apelaram para várias alternativas. Algumas se dedicaram ao tratamento antiretroviral movidas pela sua pulsão de vida, outras se apegaram ao discurso religioso de que a vida é mesmo passageira e se conformaram com isso, ainda que inseguras. Outras procuraram controlar a representação da morte por meio da racionalidade científica e algumas a compreenderam como um fenômeno existencial.

Porém, houve quem vinculou definitivamente a infecção pelo HIV a sofrimento e morte, não conseguiu superar essa vinculação e passou a desejar a morte como um alívio para essa angústia, no contexto de um sentimento de depressão.

Algumas pessoas simplesmente mantiveram a percepção de que a infecção pelo HIV realmente representa a morte e passaram a viver o tempo todo com medo de morrer.

No que diz respeito à perda da futuridade, o que mais chamou à atenção foi que o presente se tornou um tempo absoluto à luz da insegurança quanto ao futuro. As pessoas que, ao perderem a noção do futuro, agarraram-se ao passado, desvalorizando seu presente, tornaram-se deprimidas. Por outro lado, houve quem conseguiu fundamentar-se no passado para ressignificar o presente, gratificando sua atualidade.

As mães de filhos não infectados pelo HIV assumiram seu futuro como um projeto intermediado pela prole. Mas, aquelas cujos filhos eram portadores do vírus não conseguiram trilhar esse caminho. Os homens não vincularam sua percepção de continuidade existencial aos filhos.

Contra a expectativa da morte e a segregação, um recurso encontrado pelas pessoas que se sentiram culpadas por terem contraído o HIV fundamentou-se no sentimento de estarem pagando pelo erro cometido, como se este saldo pudesse recuperá-las de algumas perdas representadas por seu diagnóstico.

Por outro lado, indivíduos que se sentiram vítimas por terem se infectado, insistiram em sua inocência atribuindo a infecção a causas externas a si e ao seu ambiente, apegando-se aos valores e crenças sócio-culturais sobre os quais sempre se apoiaram, para justificar a ausência de motivos para terem contraído o HIV.

Independentemente de sentirem-se culpados ou inocentes, muitos procuraram destacar suas qualidades pessoais e depreciar aqueles que manifestam o preconceito, reforçando sua própria personalidade, como uma forma de reagir contra a desvalorização imposta pelas representações da infecção pelo HIV.

Para evitar a exclusão social, vários foram os caminhos. A ocultação e a internalização do diagnóstico à própria intimidade sem se auto-estigmatizar foi um deles. Por esta via, algumas pessoas impediram que seu diagnóstico interferisse na sua relação com os outros. Uma outra saída, foi assumir sua condição de portador do HIV, aceitando-se, reagindo contra a intimidação instigada pelo preconceito. Assim, essas pessoas se auto-afirmaram apoiadas na sua independência pessoal em relação aos preconceituosos.

A organização social dos portadores do HIV, em defesa da sua inclusão, e sua união em busca de auto-ajuda foram sugestões dadas por algumas pessoas para que os infectados possam resistir contra a segregação.

Uma conquista favorável à afirmação do portador do HIV como sujeito foi a oportunidade de encontrar um ambiente familiar, social ou assistencial que não reconhecesse a representação do estigma em seu diagnóstico, acolhendo-o como membro inserido, adaptado e representante da comunidade.