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Apresentação dos capítulos

2. O TERROR DOS MARES

2.1 Homem ao mar

As reflexões sobre a presença da imagem física e da imagem virtual e a vitalidade dada a elas permeou de alguma forma a estética do experimento prático. Até porque, a proposta de se olhar a visualidade cênica como resultado da manipulação de aparatos técnicos, esbarra necessariamente nesses conceitos. A própria luz, objeto inicial da pesquisa, é tanto matéria quanto onda, elemento visível e virtual. Assim, a proposta da estética do avesso joga com a materialidade e imaterialidade da imagem, sua luz e sua sombra. Metaforicamente, a ideia do homem intelecto por trás da máquina seria a representação do inconsciente imaginário e o dispositivo técnico seu lado racional, por isso, desde o início buscou-se entender qual seria o lugar do corpo desse homem-operador na cena teatral.

Um dos primeiros experimentos realizados pela artista-pesquisadora partia da ideia de que a criação de um ser inicia-se sempre no casulo, na casca, na concha, no ninho ou em qualquer elemento que aponte para um interno. Por outro lado, alguns seres jamais deixam sua concha, tem uma relação com ela de eterna troca tornando-se um só e no momento que se separam morrem. Da mesma forma, a relação do o operador e o dispositivo técnico formam

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um conjunto único representado pelo homem-máquina, que ao se separar deixa de fazer sentido já que um depende do outro para exercer a sua função. Para materializar a representação dessa ligação entre o nascimento e a permanência, chegou-se a experimentos que reconheciam a própria mão como ser único, sendo vista simbolicamente como o elo de ligamento entre o homem e a máquina.

Fig. 31 Experimentos de materialização do corpo em cena

No entanto, por mais que a imagem da mão representasse o elo homem-máquina é no corpo por trás da máquina que se encontra o principal elemento de expressão artística na figura proposta do operador. Buscando então uma forma de representar esse corpo- pensador (aqui no sentido do corpo representado através do intelecto do homem) de uma forma que ele não fosse colocado em cena para que não subjugasse a figura homem- máquina, esse corpo foi transposto para uma linguagem vídeográfica, a qual se entende por um corpo virtual num sentido amplo cuja imagem foi captada em linguagem de vídeo, mas que pode ser projetada através de diversas técnicas distintas.

Os primeiros experimentos em vídeo se deram pelo desdobramento de um flerte com o conceito de performance proposto por Richard Schechner (2006), onde qualquer ação pretendida é performance e toda ação pode ser observada, estudada e colocada como performance sob o ponto de vista do espectador, mesmo que este espectador seja a própria pessoa que realiza a ação, pois passa a realizá-la com a intenção de fazê-la. Ou seja, as performances, artísticas, rituais ou da vida ordinária, são feitas de comportamentos duplamente agidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para executar, que praticam e e saia (SCHECHNER, 2006, p.28).7

Criou-se então um vídeo autobiográfico8 do próprio cotidiano do mergulho em uma pesquisa: a ação observando a si própria e ensaiando a si própria. Esse primeiro vídeo experimentado é a representação simbólica da passagem do tempo interno do corpo da artista-pesquisadora, um tempo criado que se mede a ele mesmo, circular, eterno-retorno do retorno, uma idéia de presente do tempo performático, um presente que como diria Deleuze p ee he o tempo, [...] que absorve o passado e o futu o (2006, p.167). O ponto pretendido era iniciar uma discussão do lugar do corpo de uma maneira que este estivesse em cena, mas sem a necessidade do corpo presente. Mesmo que posteriormente este primeiro teste tenha sido arquivado, a concepção da artista-pesquisadora presente pela virtualidade se deu por uma sobreposição de imagens representativas do corpo, do imaginário e do trabalho visual criado por ela.

7 Tradução de Josette Féral em Sobre Performatividade: Performance e Performatividade: O que são

os Performances Studies. p. 75

8 O vídeo pode ser encontrado no DVD que acompanha a parte escrita com o nome de vídeo-

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Fig. 32 Experimentos de materialização do corpo em vídeo

Mantendo um diálogo com os conceitos filosóficos pós-estruturalistas influentes nas performances dos anos 1960, onde no mundo moderno não existe mais a noção de original, toda imagem é multiplicável e é ao mesmo tempo uma multiplicação, tudo é cópia, tudo é intertexto, tudo se replica tendo dessa forma um perfil performativo, o segundo experimento em vídeo se aprofundou no olhar do corpo como o duplo dele mesmo ou a imagem de si próprio de tal forma que um se torne espelhamento do outro.

Nas multiplicidades das cópias da vida seguimos buscando por um uno já fadado a não ser mais reconhecido como original. Olho a mim mesmo como uma refração de tudo aquilo que me cerca tentando despertar sensações que já não são mais que meros reflexos daquilo que algum dia foi uma rede de pesca do mundo dos mortos. Se o tempo não pode ser mais contado aritmeticamente resta-nos flutuarmos em uma superfície acima, na tentativa de retornarmos ao status de observadores sem mais sermos um mero objeto rígido de nitrato de prata. Divido-me assim entre o primeiro que me olha, como se ainda estivesse aquele velho cigarro recostado sobre a mesa marcando descompassadamente uma enraizada sensação de madrugada. E o segundo que me perdeu, num inverno, sob os pés de uma clareira (Poema que acompanha o vídeo criado em 2011).

As reflexões propostas nesses dois primeiros trabalhos sobre o conceito do tempo como algo não linear, mas representativo de uma ação interna e a ideia da cópia como espelhamento que gera algo novo, culminaram nos vídeos finais do experimento que trabalham uma releitura das personagens da Tempestade sendo cada uma delas um corpo duplo do intelecto da artista-pesquisadora. Contudo, seguindo o pensamento de Josette Féral (2009) ao apontar que apesar do ato performático ser repetição ele não é pura imitação e sob o ponto de vista de que a ação tem como referência a transformação do original, o corpo virtual proposto no experimento não é imitação e nem um duplo morto, é o próprio corpo da pesquisadora renascido, sendo novo ainda que não original.