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O Homem Natureza dos Pré-Socráticos

1 O MUNDO GREGO

1.2 AS NOVAS CATEGORIAS DO HOMEM: FILOSOFIA

1.2.1 O Homem Natureza dos Pré-Socráticos

Os primeiros filósofos aparecem em uma época (entre o século VI e o século IV a. C.) em que as repostas até então oferecidas às indagações humanas, com base no mito e na religião, não se apresentavam suficientes. Desponta, então, uma nova estirpe de pensadores que, refletindo sobre a natureza e os seus fenômenos, buscam encontrar uma nova compreensão do mundo através do logos. As teogonias e as cosmogonias, com suas explicações míticas em que agentes sobrenaturais, deuses e heróis, que antes elucidavam o surgimento do cosmos, já não eram mais suficientes. Nesse momento, os filósofos da natureza da Jônia enfatizavam o caráter

45 A isegoria trata da igualdade de direito à manifestação dado ao cidadão da pólis que, por sua vez,

teria o direito/dever de emitir a sua opinião sobre os assuntos de interesse comum. De acordo com Chauí isegoria diz respeito à própria “liberdade de expressão que cada um possui e de que todos os cidadãos desfrutam” (Cf. CHAUÍ, 2002, p. 503).

positivo do conhecimento do cósmos, interessam-se pela sua criação e essência e passam a considerar que o mundo, apesar de constituído de vários aspectos, formava uma única totalidade. Nesse período, “arrebatamento e grandiosidade, conflitos notáveis e soluções espantosas marcaram a permanente tentativa da cultura ocidental em compreender a natureza da realidade” (TARNAS, 2011, p. 11- 12).

No princípio46 do universo, a natureza, na medida em que era vista como viva e imortal, ainda era considerada como divina. Nesse sentido, Tales de Mileto47 (624- 546 a. C.), o primeiro48 filósofo a buscar a origem e a essência do mundo na phýsis, ao considerar haver encontrado o cerne do universo, afirmara: “Tudo é água e o mundo está cheio de deuses49”, o que demonstra o amálgama que inicialmente existia entre os deuses e a natureza e que, pouco a pouco, vai cedendo lugar a um tipo de pensamento pautado unicamente na observação dos fenômenos naturais e na análise racional sobre eles empreendida pelo intelecto humano.

Com o tempo, o componente sobrenatural que se julgava presente na matéria vai perdendo espaço para uma compreensão física do universo e, “conforme aumentava a inteligência autônoma do Homem, enfraquecia o poder soberano dos velhos deuses” (TARNAS, 2011, p. 35). O avanço da razão50, porém, não impedia

que a pólis, paralelamente, abrigasse um pensamento mítico, capaz de demonstrar as incoerências próprias de um mundo humano em que a crescente aquisição de um lógos privilegiado convivia ao lado de crenças arcaicas que, a despeito dos novos conhecimentos conquistados, permaneciam radicadas na intimidade do homem. Essa incoerência poderá ser observada num processo que viabiliza dois tipos de

46Conforme Reale, apesar de a palavra ‘princípio’ não ser um termo atribuído ao próprio Tales, ela

pode abranger “aquilo do qual as coisas vêm, aquilo pelo que são, aquilo no qual terminam” (Cf. REALE, 1994, p. 48).

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De acordo com Chauí, “segundo relato de Heródoto, Tales de Mileto foi um dos Sete Sábios da Grécia arcaica e, segundo Diógenes Laércio, teria sido o primeiro a ser assim chamado” (CHAUÍ, 1994, p. 54). Esse sábio, antes do surgimento de uma filosofia moral, foi o criador de máximas que buscavam guiar o homem moral (Cf. REALE, 1994, p.182-183).

48 Essa informação nos foi transmitida

por Aristóteles que assevera: “Afirma-se que Tales por primeiro professou essa doutrina sobre a causa primeira” (Cf. MET, I, A, 3, 984a 1-3).

49 Essa declaração pode ser vista em Aristóteles na sua obra De anima na medida em que ele afirma:

“Tales julgou que tudo está pleno de divindades” (Cf. De anima, Apresentação e tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2006, I. 5, 411a 7). Sobre essa obra aristotélica, passaremos a fazer referência como DA.

50 Constituída através das relações humanas fortalecidas pela pólis, a razão desenvolveu-se, acima

de tudo, pelo instrumento comum existente entre os homens, capaz de possibilitar-lhes a arte política, retórica e educativa: a linguagem. Para Vernant, “a razão grega é a que de maneira positiva, refletida, metódica, permite agir sobre os homens, não transformar a natureza. Dentro de seus limites como em suas inovações, é filha da cidade” (Cf. VERNANT, 1981, p. 95).

comportamento: o do homem que, por meio do debate público, tentará, através da força de sua razão, convencer os demais daquilo em que acredita, exercendo o seu poder dentro do espaço público em que habita ou, o do homem que se organiza secretamente em busca de um poder pautado no sagrado misterioso. Esse mesmo homem, ora buscará participar ativamente da sua comunidade, ansiando por organizá-la, recriá-la e aperfeiçoá-la, ora desejará dela afastar-se para dedicar-se à contemplação, buscando alcançar uma comunhão espiritual com os próprios deuses (VERNANT, p. 34-36; 41-42).

Posteriormente, um possível discípulo de Tales, Anaximandro (611- 547/546 a.C), não acreditando que o arché, termo provavelmente introduzido por Anaximandro “para designar o primum, a realidade primeira e última das coisas” (REALE, 1994, p. 52) do universo estaria na água, creditava ao ápeiron51 o real início, e o fim de todas as coisas, capaz de conter em si mesmo a natureza divina. Esse filósofo considerava que todos os seres naturais surgem da eterna separação entre os opostos existentes na natureza que, mediados pelo tempo, ora existiam, ora não. De acordo com Reale, Anaximandro haveria julgado como sendo o primeiro par de contrários o quente e o frio, estes seriam separados em um eterno movimento que daria sequência às demais coisas. Os contrários atuam uns sobre os outros, cometendo injustiças52 na medida em que uns submetem os outros a um domínio

temporário: o quente, o frio, o seco, o úmido... Tal injustiça pode ser vista “como própria dessa imposição, e o tempo é visto como juiz, enquanto assinala um limite a um e a outro dos contrários” (REALE, p. 55, 1994).

Para Chauí, com Anaximandro, “a physis é o ápeiron. A physis é o ilimitado, indefinido e indeterminado, o que não sendo nenhuma das coisas e nenhuma das qualidades dá origem a todas elas” (CHAUÍ, 1994, p. 59). Reale complementa asseverando que “Anaximandro considerou o seu princípio como divino, porque imortal e incorruptível (as palavras exatas de Anaximandro devem ter sido ‘eterno e sempre jovem’).” (REALE, 1994, p. 53). Entrementes, para Anaximandro, a simetria

51 O ápeiron, de acordo com Chauí, “trata-se de uma palavra composta pelo prefixo negativo a- e pelo

substantivo péras (limite, fronteira, extremidade, término). Sem fim, ilimitado, infinito, inumerável, incalculável, interminável, indeterminado” (Cf. CHAUÍ, 2002, p. 495). Segundo Abbagnano o termo pode ser definido como “matéria em que os elementos não estão ainda distintos e que por isso, além de infinita é também indefinida e indeterminada (Fr. A, 9, Diels)” (Cf. ABBAGNANO, 1970, p. 67).

52 A interpretação que credita ao tempo o poder de estabelecer a ordem advém do fragmento ora

transcrito: “De onde as coisas tiram seu nascimento, aí se cumpre a sua dissolução segundo a necessidade; de fato, reciprocamente pagam a pena e a culpa da injustiça, segundo a ordem do tempo” (Diels-Kranz, 12 B 1, apud REALE, 1994, p. 55).

existente entre os elementos do cosmos, originados do ápeiron, caracterizariam a ordem que a natureza impunha e que não admitia mais hierarquia, pois a primazia do ápeiron, mediado pelo tempo, “garante a permanência de uma ordem igualitária, fundada na reciprocidade das relações e que, superior a todos os elementos, impõe- lhes uma lei comum” (VERNANT, 1994, p. 89).

Logo após, temos Anaxímenes (585-529 a.C.), contemporâneo de Anaximandro, terceiro e último representante da Escola de Mileto que, a exemplo de seus antecessores, também acreditava na existência de um princípio único subjacente a todas as coisas. Para ele, o ar seria o princípio originário de tudo que existe no universo. Anaxímenes acreditava que, através de um processo de condensação, ocorria uma transformação do ar em objetos sólidos e líquidos e, se rarefeito, daria origem aos gases, aos ventos, ao oxigênio, ao fogo e à própria alma, posto o ser vivo, ao contrário do morto, respirar. “O kósmos53 vive no ritmo de uma

respiração gigantesca que o anima e mantém coesas suas partes” (CHAUÍ, 1994, p. 62-64).

Posteriormente, provavelmente nascido na ilha de Samos, na costa da atual Turquia, perto de Mileto, temos Pitágoras (570-495 a.C.) que, em virtude da localização de sua cidade natal, possivelmente teria tido acesso à Escola de Mileto e, assim como Tales, seu fundador, teria aprendido no Egito os fundamentos da geometria, o que provavelmente o teria influenciado na sua forma científica e matemática de pensar (KIM, 2012, p. 26-27). Pitágoras, apesar desta visão matemática e científica, através da qual abordava o pensamento filosófico em sua busca pela compreensão dos fundamentos do universo, deixa de lado o caminho natural que vinha sendo perseguido pelos filósofos que o antecederam e empreende um retorno ao mundo mítico na tentativa de estabelecer uma síntese entre ambos. Mesmo não tendo deixado obras escritas, ele foi o fundador de uma escola filosófica em Crotona que se constituía em uma fraternidade religiosa de inspiração órfica54,

53 Para os antigos habitantes da Hélade, o kósmos dizia respeito à ordem estabelecida e podia ser

visto como o próprio princípio ordenador e regulador das coisas e do mundo. Nas palavras de Chauí: “Inicialmente esta palavra significa a ação dos seres em conformidade com um comportamento estabelecido; a seguir, significa a ação humana organizadora que produz uma ordem nas coisas ou nas instituições” (Cf. CHAUÍ, 1994, p. 504).

54 O orfismo era a religião de mistérios oriunda da Trácia que se difundia na Jônia a partir dos séculos

VII e VI a.C.. Essa religião teria sido fundada por Orfeu e prometia aos seus adeptos uma vida melhor depois da morte, capaz de ser conquistada através de rituais de purificação que buscavam libertar a alma imortal do homem do ciclo de reencarnações a que estaria condenada, livrando-o assim da “roda dos nascimentos” (Cf. CHAUÍ, 1994, p. 65; JAEGER, s.d., p. 189).

dedicada às musas, cuja meta era a purificação dos seus participantes que, para se tornarem capazes de adquirir a sua salvação espiritual, deveriam empreender esforços na busca da compreensão da Natureza. Tais comunidades logo se espalharam na Magna Grécia, porém, apesar de terem influenciado vários filósofos, pouco se sabe a respeito delas em virtude de Pitágoras não haver deixado nenhum documento escrito e do silêncio exigido por parte dos seus componentes.

Heráclito (535-475 a.C.), ao contrário de seus antecedentes jônios, Tales e Anaxímenes, que buscavam a essência fundamentalmente imutável das coisas na natureza fixa do cosmos, acreditava que tudo no universo estava em um estado de fluxo contínuo governado por um lógos divino. Para Kim, “às vezes interpretado como razão ou argumento, Heráclito considerava o lógos uma lei universal cósmica, de acordo com a qual todas as coisas começam a existir e todos os elementos materiais do universo são mantidos em equilíbrio” (KIM, 2012, p. 40). Para Heráclito “o movimento é, portanto, a realidade verdadeira” e “procurar a si mesmo – ou conhecer – é colocar-se em consonância com o universo” (KIM, 2012, p. 40).

Em sequência, surge Parmênides55 (515-445 a.C.), que apesar de creditar suas reflexões à inspiração divina, foi possivelmente influenciado pelo pensamento lógico de Pitágoras, o qual estabelece uma razão dedutiva para a explicação da natureza e, contrariando os filósofos jônios que o antecederam, afirma que aquilo que ‘é’ não muda nem desaparece, enquanto o que ‘não é’ jamais virá a ser, de forma que o vazio não existiria e nada poderia vir do nada. Assim, em virtude das limitações provenientes das impressões ocasionadas pelos sentidos, com as imperfeições que lhes são próprias, nada mais se constitui além da mera opinião. Por ser esse mundo impossível de ser conhecido pelas sensações, deve-se confiar apenas na razão. Iniciava-se, assim, um profícuo questionamento entre o real e o aparente. Parmênides distinguia a substância do ‘ser’ da força ordenadora e em mutação da vida e das coisas.

Na concepção de Reale, o filósofo acreditava na existência de três vias de acesso ao conhecimento: a primeira seria a da verdade absoluta, a ser percorrida pelo filósofo; a segunda, a das falsas opiniões, que “considerou absolutamente falaciosa”; a terceira, vista como capaz de oferecer uma opinião provável e, portanto,

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Parmênides foi o poeta que “impregnado duma altiva modéstia”, se julgava “o portador de um novo tipo de conhecimento, por ele considerado, ao menos em parte, a revelação da Verdade” (Cf. JAEGER, s.d. p. 205).

admissível (REALE, 1994, p. 106-107). Através de seu poema Sobre a natureza, que credita à inspiração divina, Parmênides adverte à humanidade:

É preciso que tudo aprendas

[1] e da verdade bem redonda o sólido coração

[2] e dos mortais as opiniões, em que não há certeza veraz;

[3] ademais, também isto aprenderás: que é necessário admitir a existência das aparências quem tudo indaga em todos os sentidos. (Diels-Kranz apud Reale, 1994, p.107)

A negação de Parmênides se opunha, portanto, à cosmologia que tinha por objeto compreender o movimento no mundo. Para o filósofo, isso seria impossível, pois a verdade não admitia a multiplicidade do ser, que era único, atemporal e imutável.

Na tentativa de harmonizar o mundo sensível com o mundo racional, o natural com o racional, filósofos como Empédocles, Anaxágoras e os atomistas Leucipo e Demócrito reinterpretaram Parmênides buscando soluções às aporias resultantes da sua concepção do universo e, apesar de não negarem a sua lógica, buscavam soluções na possível existência de múltiplos fundamentos que se combinariam e se descombinariam de infinitas maneiras, de forma a explicarem a existência da diversidade e a mutabilidade das coisas no mundo.

Das soluções propostas, as mais abrangentes foram as elaboradas pelos atomistas Leucipo (início do século V a. C.) e Demócrito (460-371 a C.) que, através de uma visão materialista do mundo, forneceram uma explicação em que substâncias invisíveis moviam-se permanentemente no vazio e, ao chocarem-se umas com as outras no espaço infinito, gerariam e destruiriam os objetos do universo. Tais partículas minúsculas, apesar de idênticas substancialmente, diferiam em formato e tamanho. Para Demócrito, o ‘não é’ de Parmênides seria o vazio onde os átomos se movimentavam e se encontravam movidos não pelo nous56, mas sim

pela cega necessidade da natureza, anánke57. O atomismo explicaria o próprio conhecimento como fruto do impacto da matéria sobre os sentidos e o que determinaria o ser das coisas seria, na maior parte, resultado das convenções

56 O contexto de uso do termo Noûs, nos leva à noção de que o mesmo refere-se à dimensão do

intelecto do homem, pois que diz respeito à sua capacidade de pensar (Cf. CHAUÍ, 2002, p. 506).

57 Deve-se salientar que o uso do termo anánke nesse contexto nos remete à noção que trata do

“destino inevitável e inelutável”, da “necessidade física ou natural; lei na natureza”. À divindade mitológica que personifica o destino inexorável é dado o nome de Ananke. (Cf. CHAUÍ, 2002, p. 494- 495).

humanas. Apesar de esse tipo de explicação racional não deixar espaço ao subjetivismo humano e configurar a primeira visão mecanicista do universo, muitas perguntas permaneceram diante dos homens que, apesar do longo caminho percorrido e dos avanços alcançados, continuam até hoje a buscar respostas que os satisfaçam.

A busca de uma resposta para as questões fundamentais colocadas pelos homens os levaria a criar sistemas capazes de tornar possível o alcance de uma apreensão do mundo e de si mesmos capaz de fazer com que os homens compreendessem a importância do papel que lhes é próprio no mundo em que vivem, resultando em um movimento de suma importância para o seu desenvolvimento intelectual, o que os torna, cada vez mais, conscientes do poder de sua capacidade intelectual. O estudo desse percurso fulcral dentro do pensamento grego será objeto do item que se segue.