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HORÓSCOPO / HOROSCOPE ANDRÉ GILL

ANEXO XII – Liberté / Um único pensamento

4. POEMAS TRADUZIDOS DO FRANCÊS AO PORTUGUÊS

4.2. HORÓSCOPO / HOROSCOPE ANDRÉ GILL

Dos poetas franceses traduzidos por Bandeira, André Gill (1840-1885) é o menos célebre. Gill ficou mais conhecido por sua atividade como caricaturista e ilustrador, mas participou ativamente do grupo dos poetas Zutiques ou Zutistas, ao lado de Arthur Rimbaud, Paul

Verlaine e Charles Cros, entre outros; e também frequentava as reuniões do grupo de jovens artistas do Quartier Latin, o Hydrophates (Hidropatas).

A segunda tradução de poemas franceses é “Horóscopo”, cujo original, “Horoscope”, foi publicado pela primeira vez em La Lune Rousse, em 1877, depois em L’Hydropathe, em 1879, e posteriormente no coletânea de poesia de Gill, La Muse à Bibi, em 1881.

Vejamos a tradução e o soneto original:

Horóscopo Horoscope

1 Malgrado o pranto que macera Malgré les larmes de ta mère, 2 Tua mãe, rapaz destemeroso, Ardent jeune homme, tu le veux, 3 Tu o queres, teu braço é nervoso, Ton cœur est neuf, ton bras nerveux, 4 Vem combater contra a quimera! Viens lutter contre la chimère ! 5 Gasta a vida em lide severa, Use ta vie, use tes vœux 6 Seja o entusiasmo o teu só gozo, Dansl’enthousiasme éphémère, 7 Bebe até o fim o copo amargoso, Bois jusqu'au fond la coupe amère, 8 Encanece na ardente espera! Regarde blanchir tes cheveux. 9Luta e, isolado, sofre e pensa! Isolé, combats, souffre, pense; 10 Guarda-te a sorte em recompensa Le sort te garde en récompense 11 O desdém do asno consagrado, Le dédain du sot triomphant, 12 Um coração puro e olhos cheios La barbe auguste des apôtres, 13 De ternura para, enlevado, Un cœur pur, et des yeux d’enfant 14 Sorrires aos filhos alheios. Pour sourire aux enfants des autres.

O soneto de Bandeira é composto de octossílabos e segue o esquema rímico abba nos quartetos e ccd e ede nos tercetos, todas as rimas graves. O título, “Horóscopo”, indica uma predição sobre a vida de alguém, no caso, um incerto rapaz que aparece já no segundo verso e permanece indefinido até o fim do poema, de onde se infere, a princípio,ser este rapaz todos e qualquer um. Ao contrário dos habituais prognósticos alvissareiros, este horóscopo indica “combater contra a quimera” e prevê “lide severa”, cujo único prazer será o próprio “entusiasmo” em empreender a tarefa. O soneto desenvolve assim o

tema da inexorabilidade do destino e constata que ao envelhecer resignando-se ao destino, ter-se-á em recompensa “o coração puro”, “olhos cheios de ternura” e simpatia para com os demais.

O soneto original é composto de octossílabos, com rimas no esquema abba e baab nos quartetos e ccd e ede nos tercetos, sendo “a”, “c” e “e” graves e “b” e “d” agudas. O poema é um hipertexto de uma fábula de La Fontaine (1621-1695), “L’horoscope”22, publicada na segunda coletânea das Fables de La Fontaine (Fábulas de La Fontaine) em 1678. A fábula desenvolve duas narrativas, a primeira tem como hipotexto uma fábula de Esopo, L’enfant et son père (A criança e seu pai) e a segunda trata da morte de Ésquilo, presente em várias outras narrativas. A moral da fábula de La Fontaine é o combate às crendices e superstições ligadas à astrologia. O soneto de Gill não é moral no sentido da fábula de La Fontaine e desta retoma apenas o tema da inapelabilidade da sorte.

Os versos de Gill se dirigem a uma segunda pessoa, um “ardent jeune homme” (jovem ardente) tal como o personagem da primeira narrativa que compõe a fábula de La Fontaine, identificado como “Le jeune homme, inquiet, ardent, plein de courage” (O rapaz, inquieto, ardente, cheio de coragem). Esse interlocutor de Gill é apenas parcialmente identificado; dele o leitor conhece algumas características descritas através de metáforas, “ton cœur est neuf” (teu coração é novo), “ton bras nerveux” (teu braço nervoso), mas é o elemento “chimère” (quimera), no final da primeira estrofe, que indica uma pista mais objetiva para identificação deste interlocutor. O sujeito poético convida- o a “lutter contre la chimère” (lutar contra a quimera), onde o termo quimera está associado ao fantástico, à fantasia, à criação artística, mas de forma pejorativa, provavelmente se trata de um modo de fazer arte considerado inadequado para o seu tempo. Assim, pode-se pensar que o interlocutor do sujeito poético seria provalvelmente qualquer jovem artista que estivesse repetindo modelos “ultrapassados”. O soneto se desenvolve em forma de conselhos, expressos nas formas verbais imperativas: “Viens” (Vem), “Use” (Usa) (duas vezes), “Bois” (Bebe), “regarde” (Olha), “combats” (combate) , “souffre” (sofre), “pense” (pensa). Os conselhos visam estimular o jovem ao exercício contínuo e dedicado da criação artística.

Vejamos o cotejo das estrofes:

1Malgré les larmes de ta mère. Malgrado o pranto que macera 2Ardent jeune homme, tu le veux, Tua mãe, rapaz destemeroso, 3Ton cœur est neuf, ton bras nerveux Tu o queres, teu braço é nervoso, 4 Viens lutter contre la chimère ! Vem combater contra a quimera!

A primeira estrofe da tradução é marcada pela aliteração em [r]; além dela, os encontros consonantais em “Malgrado”, “pranto”, “braço” e “contra”, cuja articulação é em si dificultosa, apontam para a dificuldade existencial que se mostra ao longo do poema. O trecho “les larmes de ta mère” (as lágrimas de tua mãe) torna-se “o pranto que macera tua mãe”, agudizando o tom dramático da passagem. No segundo verso, o adjetivo “ardent” é suprimido e em seu lugar é acrescentado “destemeroso”, que reforça a aliteração em [m] e [r]. O segundo membro métrico “tu le veux” é deslocado para o verso seguinte. O primeiro membro métrico do terceiro verso, “ton cœur est neuf” (teu coração é novo), desaparece na tradução.

5Use ta vie, use tes vœux Gasta a vida em lide severa, 6Dans l’enthousiasme éphémère. Seja o entusiasmo o teu só gozo, 7Bois jusqu'au fond la coupe amère Bebe até o fim o copo amargoso, 8Regarde blanchir tes cheveux. Encanece na ardente espera !

Na segunda estrofe, a repetição da forma verbal “use” do quinto verso é omitida, entretanto a tradução ganha a assonância em [a]. Há ainda o acréscimo de “lide severa”. O sexto verso apresenta o imperativo “Seja” que não está no original, mas o acréscimo não discrepa do resto da estrofe em que os imperativos “Bois” (Beba) e “Regarde” (Olhe) abrem os versos seguintes. O adjetivo “éphémère” (efêmero) foi suprimido e houve o acréscimo do substantivo “gozo”. Nota-se o cuidado de Bandeira em preservar o léxico do original: ainda que uma palavra tenha sido omitida no verso, ela pode reaparecer em outro, como é o caso do adjetivo “ardente” que no original aparece na primeira estrofe, qualificando “jeune homme” (rapaz) e na tradução aparece na segunda estrofe, qualificando a “espera”. Mesmo que esse tipo de “compensação” não surta efeito para a manutenção do sentido, e antes o altere, esse recurso utilizado por Bandeira aponta para uma fidelidade lexical ao original, uma adesão ao léxico do autor que serviria para testemunhar que embora o sentido do original discrepe da tradução

em alguns pontos, o tradutor utiliza termos que o autor teria e tem usado.

9Isolé, combats, souffre, pense ; Luta e, isolado, sofre e pensa! 10Le sort te garde en récompense Guarda-te a sorte em recompensa 11Le dédain du sot triomphant, O desdém do asno consagrado,

Na terceira estrofe, os elementos do nono verso aparecem em ordem diversa da do original, sem comprometer o sentido. O acréscimo do sinal de exclamação corrige o original que não o apresenta depois das formas verbais imperativas dirigidas diretamente ao interlocutor. O décimo verso segue de perto o original; o verso 11 mostra um ganho sonoro com as aliterações em [d] e [z].

12La barbe auguste des apôtres, Um coração puro e olhos cheios 13Un cœur pur, et des yeux d’enfant De ternura para, enlevado, 14 Pour sourire aux enfants des autres. Sorrires aos filhos alheios.

A última estrofe suprime todo o verso 12 original. O efeito do enjambement confere fluidez à apresentação da chave de ouro e a aliteração em [ʎ] nos versos 12 e 14 (“olhos”, “filhos”, “alheios”) enriquece o trecho em relação ao original.

A tradução apresenta quatro omissões, sendo uma delas todo um verso (12), quatro acréscimos lexicais e uma mudança de sentido; esses poucos desvios não representam significativa distância da letra do original e a tradução reproduz os aspectos mais relevantes do soneto original, além de apresentar efeitos sonoros bem trabalhados.

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