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Em carta escrita do Rio de Janeiro, em 6 de outubro de 1952, e endereçada ao primo Chico Moreira, Rosa faz a mediação entre o Ministério da Agricultura e o fazendeiro.32 O escritor mostra-se, no texto, como alguém que deseja contribuir para modernizar o sertão, para mecanizá-lo.

Uma das riquezas da carta está no fato de ter sido escrita no momento seguinte ao da viagem realizada ao sertão. Se a viagem com a boiada serviu para “salvar”, pelo viés literário, algo na iminência de se perder devido à intensificação do processo de modernização, a carta demonstra que a “salvação” deveria atrelar-se a esse processo, do qual o próprio Rosa estava imbuído. Verifica-se a desconstrução da imagem do escritor como ser isolado, imantado pelo misticismo, pela ecologia e pela crença absoluta nos valores do sertanejo. A escrita pragmática, sucinta, as informações precisas revezam-se, ao final da carta, com a perspicácia poética, a saudade dos “bons companheiros” que

31 No arquivo de Vinicius, há um rascunho inacabado do poeta intitulado “A hora e a vez de Guimarães Rosa”, sobre a morte do escritor. Vinicius escreve sobre uma frase que ouvira de Rosa e com a qual ficara impressionado: “A única coisa que justifica a vida de um homem é o minuto antes da morte”. MORAES. A hora e a vez de Guimarães Rosa. Texto rascunhado, incompleto. Fundação Casa de Rui Barbosa. VM pi 058. 32

ROSA. Carta a Chico Moreira, 06 de outubro de 1952. Acervo da família. Agradeço a Jussara Moura Guimarães – neta de Chico Moreira – a gentileza de ter cedido cópia da carta para esta pesquisa.

conhecera na Fazenda da Sirga e a lembrança de amigos e parentes. Escreve o diplomata, desvelando espaços entre a tecnologia e a saudade:

(...) Se, dentre as máquinas descritas, Você não pôde encontrar algo que lhe interessasse, seria bom examinar, com alguém de confiança, a conveniência em adquirir um conjunto Fordson – trator-arado 4 discos e grade – que o Ministério pensa receber em breves dias. O conjunto deve ficar em cerca de 100 contos. O Ministério não tem a cultivadeira e os outros implementos que Você mencionou. É possível que se possa comprar diretamente dos agentes da Fordson. (...)

(...) Chico, saudades daí tenho sempre. Como vão todos? (...)

E na Sirga? Como vai o pessoal de lá? Estou sempre me lembrando deles, dos bons companheiros. O papagaio está gordo e alegre, magnífico. Aprendeu muita conversa carioca, mas não se esqueceu do repertório sertanejo: canta, chora como menino pequeno, e sabe chamar as vacas, com notável entusiasmo – o que faz, sem falta, todas as madrugadas!

Agora, Chico, o forte abraço do primo e amigo Joãozito.

O papagaio, signo forte da literatura brasileira e relacionado à identidade nacional, surge no texto. Trazido pelo escritor de sua viagem, remete-nos a momentos marcantes da literatura, aos mestres anteriores que se debruçaram sobre o sertão e sobre o país. O papagaio “aprendeu muita conversa carioca”, porém, como o escritor, não esqueceu as imagens e as emoções da “infância”. Toda madrugada, momento em que o diplomata sonha, ele faz suas interferências. A ave parece convocar – no plano onírico – a presença do gado mineiro para a companhia de Rosa. No escuro da noite litorânea, chama “as vacas, com notável entusiasmo”.33

O horizonte técnico, presente na carta, aparece de forma incisiva em vários textos de Corpo de baile. No sertão rosiano, a atividade econômica predominante é a pecuária extensiva, entretanto o mundo do campo torna-se permeável aos ecos da cidade. É bom pensar na idéia de eco presente no significante do nome de um dos povoados – Ão –, que pode ser relacionado a sertão.

Há, nas páginas de “Buriti” e “Dão-Lalalão”, novelas de Corpo de baile, a descrição da chegada do rádio, da vitrola, de caminhões, de jipes, de produtos de consumo como sabonetes, perfumes e vestidos ao sertão. As narrativas fazem referências à vida na cidade, ao uso do telefone. Diferentemente dos demais textos de Corpo de baile, em “Buriti” o autor aborda a vida interiorana de uma elite agrária. Pelo motivo de apresentar a

33 Em carta ao pai, datada de 15 de julho de 1952, também escreve sobre o mesmo papagaio: “De manhã, principalmente, é uma festa: grita, tosse, canta, assovia, chora, imitando criança, ‘abôia’, chama as vacas, gruguleja como peru, e fala quantidade de bobagens, tudo isso de enfiada, durante horas.” ROSA. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, p. 206.

intimidade da classe dominante, no espaço fechado da casa grande, a novela torna-se lugar propício para o surgimento dos bens de consumo produzidos pela indústria, que demorariam a chegar às residências dos vaqueiros e dos demais trabalhadores do campo. Em “Buriti”, o autor maneja as lentes da câmera para focalizar o que se esconde e se tenta a todo custo disfarçar: o desejo sexual recalcado. Este, ao final da narrativa, explode como água rompendo barragem. As personagens são dominadas pelo imponderável da existência, por tentações do corpo que almeja liberdade e distância de qualquer controle moral. Jogo de cartas e sedução complementam-se nas madrugadas da fazenda.

A personagem Chefe Ezequiel, da novela “Buriti”, dentro de sua sábia loucura, pronuncia uma frase simples e reveladora, que serve como fio condutor para nossas reflexões: “Trás noite, trás noite, o mundo perdeu suas paredes”34. É preciso refletir sobre essa perda das paredes do mundo, nesse momento em que culturas distintas começam a interagir e interesses político-econômicos criam novos atritos sob formas de influência e de resistência. Diversos aspectos dos livros de Rosa relacionam-se aos conflitos existentes entre a modernidade e a tradição, a tecnologia e a natureza nesse momento de mudanças no país.35

Nos textos de “Buriti” e “Dão-Lalalão”, presencia-se a intervenção de personagens que desejam modernizar a região, levando, para esse espaço, a idéia de progresso, de civilização, além de comportamentos urbanos, diferentes da visão sertaneja de mundo. Miguel introduz um conhecimento técnico sobre os cuidados com animais e Dona Lalinha apresenta-se como uma princesa urbana a desrecalcar os desejos latentes na casa grande.

Se o conhecimento técnico constitui uma das bases do processo de modernização, da mesma forma apresenta-se o consumo. Este passa a ser visto como modo de afirmação do sujeito no mundo contemporâneo. Aparece nos perfumes, sabonetes e vestidos que Soropita, personagem de “Dão-Lalalão”, compra para Doralda, sua mulher. Esta “nem era interesseira, pedia nada. – Não precisa, Bem, carece nenhum. Tua mulherzinha tem muita roupa. Carece de vestido não: eu me escondo em teus braços, ninguém não me vê, tu me tapa...”. Logo em seguida percebe-se a ironia do autor, por meio das contradições da personagem diante da sedução do consumo: “Então bem, se tu quer que

34 ROSA. Noites do sertão, p. 142.

35 Em Grande sertão: veredas, aparece a personagem Wuspes, o alemão caixeiro viajante que leva para o sertão os objetos da modernidade. “Seo Emílio Wuspes... Wúpsis... Vuspes”, pronunciava atropelando-se Riobaldo. Heloísa Starling, referindo-se ao alemão, anota uma lembrança de Wander Melo Miranda: a aliteração do nome, dito daquela forma, sugere “uma imagem do progresso construída pelo ronco do som de motores em aceleração.” STARLING. Lembranças do Brasil, p. 140-141.

quer traz. Mas não traz dessas chitas ordinárias. (...) Manda vir fazenda direita, seda rasa.”36 Em outra passagem podemos ler: “(...) aquilo nem parecia que se estava nos Gerais – Doralda vestida feito uma senhora de cidades”.37 Em “Buriti’, Lala traz da cidade a penteadeira, os cosméticos e os vestidos, objetos deslocados no novo espaço em que fora viver.

O consumo torna-se evidente devido à entrada de aparatos tecnológicos no espaço rural. Em “Dão-Lalalão”, um primeiro caminhão chega, enfeitado com ramagens de árvores e flores, à beira do rio: “(...) mesmo depois de muitas horas que ele tinha passado, os cachorros ignorantes vinham farejar demorado aquele rastro, que não entendiam existir, deixado pelas rodas (...)”.38 Os enfeites no caminhão podem simbolizar a maneira como a máquina é apropriada pelos sertanejos, ou como é camuflada com as cores locais para que interfira sem tanta resistência no novo espaço. De qualquer forma, a intuição dos cachorros leva-nos a estranhar essa presença que começa a alterar as mentes e as paisagens.

Com a perda das paredes do mundo e com a entrada sempre mais intensa de bens materiais e simbólicos em todos os espaços da vida social, justifica-se a tese de que, para se pensar a respeito de cidadania e de democracia, não se deve prescindir do fator consumo. Mesmo com todos os dilemas incluídos no debate, Rosa, pela via oblíqua do literário, esteve atento a essas questões, pontuando-as, com perspicácia.

Em relação ao consumo midiático, um bom exemplo do confronto entre tecnologia e tradição pode ser visto na novela de rádio ouvida por Soropita, protagonista de “Dão-Lalalão”, em Andrequicé. A novela era repassada ao povo do Ão, que a recriava oralmente, num processo de recepção crítica ligado à sabença marioandradina. Como já pontuamos nesta tese, o importante para Mário de Andrade é “o saber saber”, conseguir selecionar, operar e reelaborar, de forma inventiva, os melhores conteúdos encontrados na cultura popular, e acrescentaríamos, de massa:

[Soropita] Ouvia, aprendia-a, guardava na idéia, e, retornando ao Ão, no dia seguinte, a repetia aos outros. Mais exato ainda era dizer a continuação ao Franquilim Meimeio, contador, que floreava e encorpava os capítulos, quanto se quisesse: adiante quase cada pessoa saía recontando, a divulga daquelas estórias do rádio se espraiava (...) se afundava, até em sertões.39

36 ROSA. Noites do sertão, p. 22-23. 37

ROSA. Noites do sertão, p. 58. 38 ROSA. Noites do sertão, p. 39. 39 ROSA. Noites do sertão, p. 15.

Através da novela, Rosa quebra as distinções. Franquilim realiza, a seu modo, a devoração crítica das influências recebidas. Elabora-se, na obra, a percepção dos meios de comunicação de massa e da cultura como lugares de conflito, e não apenas de manipulação.40 Como vimos, Franquilim floreava a narrativa, encorpava os capítulos. As histórias do rádio se espraiavam, afundavam-se nos sertões, revelando a inadequação das noções de originalidade e de pureza.

Certo dia chegou ao povoado um caminhão de um comprador de galinhas e de ovos. Munido de um radinho a pilhas, armou um fio no arame da cerca para o povo escutar a novela. As pessoas, porém, quiseram ir ouvir Soropita contá-la, “para confirmarem o que tinham ouvido”. O contado direto no “calor” da audição, a experiência dos encontros, apresenta-se como algo mais “verdadeiro”, propicia a continuidade da história em novas e mais vivas formas de mentiras. Assim, os signos da cultura urbana chegam ao interior e são ressemantizados, ganham novos e inesperados sentidos.41

Quanto mais distanciada da experiência direta das metrópoles, mais chances a comunidade tem de produzir novos significantes e significados que resistem à totalização indiferenciada. Por meio de deslocamentos e de substituições, desconstroem-se formas passivas de recepção e projetam-se novos sentidos, distantes da idéia de ato reflexo no processo comunicativo. Esse desequilíbrio, relacionado à recepção da modernidade em outro ritmo e em outro tempo, demonstra que as representações da identidade brasileira e latino-americana interferem nas justificativas de desenvolvimento homogêneo típicas do mundo moderno.42

Os sistemas de desconfiança do sertanejo contribuem para se repensar a questão da homogeneização sociocultural. Além disso, o texto nos permite uma reflexão a respeito da maneira pela qual são feitas apropriações e reelaborações das informações recebidas em relação ao catálogo de experiências pessoais.

A história recebida pelo povo do Ão, através da voz de Soropita, não representa uma volta a uma “língua pura”. Se a preferência pela novela recontada pela personagem evidencia uma certa “desconfiança mineira” frente à novidade do aparelho, a narrativa de Soropita já se apresentava contaminada pela tecnologia. Em contrapartida, após o diálogo entre a audição radiofônica e a oralidade, ocorre o cruzamento entre as

40

Cf. CERTEAU. A invenção do cotidiano, p. 94.

41 FEATHERSTONE. Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade.

informações distantes e a memória particular da aldeia. Percebe-se, no modo de contar, uma “presença”, uma singularidade irredutível ao discurso midiático.

Apesar do esforço totalizante, as veredas tecem trilhas tortas, forçam passagens, abrem outras perspectivas à estratégia racional e homogeneizadora da modernidade. Mostrando uma consciência nem tão longe nem tão perto da vivência sertaneja, situando-se nem no centro nem na periferia do projeto moderno, tem-se a personagem Miguel, protagonista de “Buriti”. Ainda criança, havia partido do sertão a cavalo e agora, médico veterinário, retorna de jipe. O matuto Nhô Gualberto, entre um trago e outro de cigarro, declara: “Primeira vez que alguém chega aqui de jípel, esses progressos...”43 Miguel apresenta uma consciência ecológica que às vezes falta ao sertanejo. É contra a caçada: “(...) que odeio, de ódio. Assoante, pobre do tatu, correndo da cachorrada”.44 Desde criança achava crueldade os homens maus matarem o tatu assustado em noites de luar.

A novela “Buriti” encerra-secom a volta de Miguel, de jipe, para o sertão, pois ali estava o seu “bem querer”, simbolizado por Glorinha: “A alegria de Maria da Glória era risos de moça enflorescida, carecendo de amor”.45 Nota-se a sugestão do retorno migratório aos sertões, em oposição ao crescimento desordenado das cidades.

Além do jipe e das idéias ora revolucionárias ora civilizatórias de Miguel, o ambiente lúgubre, moralista e patriarcal da fazenda é quebrado pelo corpo sensual, bem vestido e perfumado de Lala e pelo som da vitrolinha de Maria Behú: signos e valores urbanos são incorporados à lavoura arcaica. O tempo deixa de ser marcado apenas pelo monjolo, que trazia o compasso dos desejos latentes. As rezas de Dô-Nhã para desmanchar coisa-feita e os remédios de raízes para os animais vão sofrendo interferência da pílula que cura as alucinações do Chefe e das vacinas trazidas por Miguel. O escritor sugere a emergência de uma zona de diálogo entre diversas temporalidades, em que a experiência adquirida na tradição pode realizar intercâmbios com o conhecimento técnico-científico.

Ao contrário de muitas análises críticas do texto rosiano que abordam a natureza e a tradição enquanto resistências antagônicas à idéia de progresso, afirmamos

43 ROSA. Noites do sertão, p. 254. O primeiro veículo que circulou pelo planalto central, na área em que seria construída Brasília, era um “Jeepe” chamado Maracangalha. A reunião entre o poder da indústria, do transporte e do progresso e a possível liberdade e fruição da vida daí advinda combina o nome da empresa automobilística com a música “preguiçosa” de Dorival Caymmi, “Maracangalha”.

44 ROSA. Noites do sertão, p. 96. 45 ROSA. Noites do sertão, p. 118.

que Rosa apresenta uma reflexão distanciada dessas operações. Em algumas novelas de

Corpo de baile, como “Buriti” e “Dão-Lalalão”, a medicina veterinária, o rádio, a vitrola,

os automóveis, os produtos de consumo como sabonetes, perfumes e vestidos poderiam ampliar o modo de vida do homem do campo, desde que esses “produtos” fossem politizados a partir de uma apropriação regional. A resistência ao consumo viria do próprio gesto singular de consumir.46 A revitalização da tradição cultural e da natureza poderia contribuir, como auto-crítica, aos empreendimentos do mundo moderno. Desse modo, a tradição seria constituída pelo movimento ininterrupto da História, do qual não está ausente.

A literatura deseja dar forma àquilo que não é formalizado. A canção de Laudelim, em “O recado do Morro”, metaforiza essa questão. No texto, entrelaçam-se a viagem do recado e a viagem da comitiva. Um naturalista nórdico visava a recolher saberes do sertão e a transportá-los para o mundo letrado. É possível ver na personagem uma referência ao próprio Rosa. A imagem, porém, torna-se ambígua. No trajeto, o enxadeiro e guia estradeiro, Pedro Orósio, ia à frente, a pé, conduzindo os homens de valor. Ivo Crônico, o tropeiro, seguia na retaguarda, “tangendo os burros cargueiros”.47

Na novela, o discurso da ciência vincula-se à personagem seo Alquiste/ Olquiste; o da religião, a Frei Sinfrão; o do capitalismo desbravador e empreendedor, ao fazendeiro seo Jujuca do Açude. Cada um traz um olhar limitado aos seus estreitos campos de interesse, e todos são incapazes de perceber os sentidos presentes além de seu circunscrito território, por mais que a viagem apresente espírito aventureiro. Seo Alquiste, o cientista estrangeiro, ao final da novela, mesmo percebendo na canção de Laudelim elementos épicos que fariam de Pedro Orósio um “herói”, não consegue desvincular-se de sua formação erudita. Está impossibilitado de pensar a canção de Laudelim sem relacioná- la a músicas medievais européias.

Seo Alquiste apresenta-se como viajante naturalista. Usa óculos de lentes grossas por cima dos olhos azuis. Em tudo mostra-se estranho à paisagem. O modo de retratar o sertão desdobra-se entre a experiência concreta, as anotações na caderneta e os

46 Cf. MOREIRAS. A exaustão da diferença, p. 87.

47 Em interessante estudo sobre a novela, José Miguel Wisnik dá seu recado: “Homem da cultura escrita totalizadora e universalizante, o estrangeiro seo Alquiste ou Olquiste (...) é acompanhado e conduzido pelo fazendeiro seo Jujuca do Açude e pelo sacerdote Frei Sinfrão. Temos aí, nesses três homens de poder e saber, ‘gente de pessoa’ a cavalo, um cortejo emblemático da elite colonial brasileira, para retomar os termos empregados por Alfredo Bosi na sua Dialética da colonização (colonização, culto, cultura).” WISNIK. Recado da viagem, p. 160.

equipamentos tecnológicos: “traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo”48. Não se entrega por inteiro ao sertão: o modo de operar o raciocínio consegue inventariar os domínios da biologia, da geografia e mesmo da literatura clássica, mas falta-lhe a sabedoria do sertanejo, outras maneiras de lidar com a percepção e o raciocínio, de entender as metáforas e os sentidos rítmicos da criação popular. 49 A viagem torna-se espaço poroso a diversas mediações, embora as diferenças sociais continuem marcadas.

A personagem Guégue demonstra, em suas insensatas marcações do caminho, a importância de uma experiência sempre renovada a ser usufruída a cada movimento desconstrutor de rotinas. Ao ser conduzida em um trecho da viagem por Guégue, a comitiva de propósitos científicos entra em uma área não mensurável ou codificável.50 Os critérios que a personagem utiliza para demarcar o caminho desfazem qualquer pretensão de cientificidade. Guégue mostra-se atento a diversos pontos:

onde tinha aquele burro pastando, mais adiante três montes de bosta de vaca, um anu-branco chorró-chorró-cantando no ramo de cambarba, uma galinha ciscando com sua roda de pintinhos. Mas, quando retornava, dias depois, se perdia, xingava a mãe de todo o mundo – porque não achava mais burrinho pastador, nem trampa, nem pássaro, nem galinha e pintos. O Guégue era um homem sério, racional.51

A ciência moderna, representada pelo seo Alquiste, nasce desconfiando da experiência tradicional, exagerada na passagem acima, uma vez que os significantes relacionados à instabilidade e à efemeridade não podem ser vistos senão como portadores de desordem. A experiência científica necessita de uma via certa, de um método, de um caminho definido para pautar o conhecimento. Na verdade, a ciência tradicional busca a comprovação científica do que se considerava como experiência. Age por meio do experimento, visando a demonstrar, com exatidão e dados quantitativos, o que se tomava como impressão e sensação. Desse modo, pretende prever o futuro, domar a reiteração dos acontecimentos com padrões tipificados de análise. Evita a incerteza presente nos saberes subalternos, nos campos do saber que atuam relacionando experiência, razão, emoção e

48 ROSA. Corpo de baile, 2006, v. 2, p. 390.

49 Cf. SANTOS. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. v. 4.

A gramática do tempo: para uma nova cultura política, p. 139.

50 O percurso de Guégue relaciona-se à noção de “espaço liso” do deserto, onde transitam os nômades, em Deleuze.Por mais que Guégue esteja, pela própria condição de agregado, associado às tarefas da fazenda, suas marcações espaciais simbolizam uma irredutibilidade àquelas leis. Cf. DELEUZE/ GUATTARI. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 5, p. 53 e 54.

imaginação.52 A ciência visa a seqüestrar a experiência e a sabedoria humanas e levá-las a laboratórios onde possam ser entendidas por poucos. Em seus experimentos são retirados os valores do senso comum.

A “autoridade” de Guégue diante de seu peculiar trajeto surge do fato de ele –

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