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Nascido em Cordisburgo, no dia 27 de junho de 1908, Rosa passa boa parte da infância ouvindo histórias contadas por freqüentadores da venda próxima à estação ferroviária e que pertencia a seu pai, seu Fulô. Convive com “mascates, garimpeiros, praças da polícia, fazendeiros, caçadores e, principalmente, vaqueiros (...)”.1 Juca Bananeira, que se tornará personagem de Sagarana, era funcionário da venda. Rosa acompanha as crianças nas brincadeiras de rua, nos passeios a cavalo ou nas andanças pelo mato, para tomar banho ou caçar passarinho. Em 1917, conclui o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena, em Belo Horizonte, para onde se mudara. Morava na casa do avô materno. Em 1918, após breve passagem por uma escola em São João Del Rey, é matriculado no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte. Ingressa na Faculdade de Medicina em 1925 e forma-se em 1930. Como médico, trabalha em Itaguara – na época distrito de Itaúna. Participa como médico voluntário, ao lado do ex-presidente JK, da Força Pública de Minas, durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Em seguida, atua como médico militar em Barbacena, mas resolve deixar a medicina para ingressar na carreira diplomática.2 Faz concurso para o Itamaraty em 1934, classificando-se em segundo lugar.

Em carta ao seu tradutor italiano, Eduardo Bizzarri, datada de 25 de fevereiro de 1964, comentando a respeito de sua biografia, o escritor afirma que “o gosto de estudar línguas, e ânsia de viajar mundo, levaram-no a deixar a medicina”.3 Em 11 de julho de 1934, Rosa é nomeado cônsul de 3a classe e, ao final de 1937, é promovido a cônsul de 2a classe. Com esse cargo chega ao consulado de Hamburgo em 1938, onde permanece até 1942, enfrentando fortes pressões causadas pelo Nazismo e pela Segunda Guerra Mundial. Durante o período em que esteve na Alemanha, aproveitou para conhecer vários países

1 COSTA. Veredas de viator, p. 10. 2

Em entrevista a Lorenz, Rosa afirma: “(...) um diplomata é um sonhador e por isso que pude exercer bem essa profissão. O diplomata acredita que pode remediar o que os políticos arruinaram. (...) eu jamais poderia ser político com toda essa constante charlatanice da realidade.” LORENZ. Literatura e vida: um diálogo de Günter Lorenz com João Guimarães Rosa, p. 11.

europeus. Em carta para os pais, escrita de Hamburgo, em 16 de maio de 1938, o escritor revela aspectos de suas primeiras impressões da cidade:

Quanto a Hamburgo, suas bellezas e sua alegria de vida são indiziveis! Mesmo eu, que já tinha lido dezenas de livros sobre a Allemanha, que já convivi com allemães, que já tinha conversado, principalmente nas vesperas da viagem, com funccionarios do Ministerio vindos da terra germanica, mesmo eu, repito, não tinha uma idéia verdadeira do que era isto! E a minha imaginação, que não é das mais fracas, foi batida e humilhada: a Allemanha é qualquer coisa de formidavel! Bellezas naturaes, ordem, limpeza, trabalho, vida, alegria. Principalmente, todos aqui se divertem. Ninguem se incommoda com os actos e as vestimentas dos demais. Ninguem receia o ridículo. (...) Todos cantam, dançam (...), dirigem a palavra, amigavelmente, aos desco- nhecidos, estabelecendo a cordialidade e communicabilidade instantaneas.4 O diplomata não poderia supor a transmutação que sofreria esse espaço – na verdade, parte dele. O ambiente de tranqüilidade, beleza e cordialidade se veria transformado em espaço de intolerância, medo e morte. A guerra destruiria não só as construções e as relações humanas do lugar, mas também a imaginação tranqüila do diplomata que acreditava ter chegado a alguma espécie de paraíso terrestre, situado no primeiro mundo.

Em julho de 1939, o escritor procurou, juntamente com amigos, perto de Hamburgo, em Volksdorf, Frau Heelst, tida como horoscopista de Hitler. Posteriormente, traduziu a experiência no conto “A senhora dos segredos”. Ao final da consulta, o narrador faz uma pergunta à senhora sobre o perigo iminente de guerra. A resposta é negativa. Relata o narrador-personagem: “A resposta era a resposta. Mas não a previra eu em jeito tão claro.”5 Em rascunho do texto, encontrado no IEB, a frase conclui-se de outro modo: “Mas não a previra em olhar tão raso.”6 A ironia surge ao final do conto, num telefonema de Frau Heelst para a embaixada. Com o início da guerra, a mulher solicitava emigrar para o Brasil ou para a América. Isso, porém, não era mais possível, pois a guerra começaria em breve.

Rosa escreve da Alemanha, cidade de “Francfort”, em 12 de novembro de 1940, carta ao amigo diplomata Jorge Kirchhofer Cabral, utilizando-se de estratégia lúdica e literária. Todas as palavras são grafadas com inicial “c”. Rosa anuncia, na introdução:

4 Cf. ROSA. Carta aos pais. Hamburgo, 16 de maio de 1938 apud ROSA. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, p. 174-175.

5 ROSA. Ave, palavra, p. 225-229.

Cônsul Caro Colega Cabral, –

Compareço, confirmando chegada cordial carta. Contestando, concordo, contente, com cambiamento comunicações conjunto colegas, conforme citada Consolidação Confraria Camaradagem Consular. Conte comigo! Comprometo- me cumprir cabalmente, cabralmente, condições compendiadas cláusulas contexto clássico código.7

Ao final da carta, em meio aos conturbados movimentos da Segunda Grande Guerra, presenciados pelo escritor em terra estrangeira, Rosa relata ao amigo: “costumo compor canções”. Há uma indicação, no texto, de que a parte em versos é para ser cantada. Transcreve sua moda mineira: “Caso contigo, Carmela,/ caso cumpras condição: cobrarei casa, comida/ cama, cavalo, canção,/ carinho, cobres, cachaça,/ carnaval camaradão,/ casino (com conta certa)/ cerveja, coleira e cão,/ chevrolé cinco cilindros,/ canja e consideração,/ (...)”.8 O desejo de se livrar de paisagens vislumbradas no dia-a-dia, manchadas por ódio e por prepotência racial, é marcante. O sertão mescla-se ao conforto propiciado pelo automóvel e irrompe do espaço alemão, entremeando os vocábulos da série. O ritmo e a sonoridade almejados são outros, mais lentos, ligados à preguiça e ao desfrute da vida. Ironicamente, a mulher, se quiser casar-se com o cantor, deve pagar alto preço pela companhia folgazã. A redondilha maior aproxima o autor, tão ilustrado no trato lingüístico, da produção popular. Por outro lado, afasta-o, não só do ambiente bélico, mas também dos inúmeros e, muitas vezes, tediosos compromissos formais a que um diplomata normalmente deve comparecer em suas funções no exterior.

Com o rompimento das relações Brasil-Alemanha, provocado pela Segunda Guerra, o escritor permanece, com outros funcionários e intelectuais brasileiros, detido por cerca de quatro meses, em um hotel de Baden-Baden, em 1942. Entre os compatriotas impedidos de deixar a Alemanha e detidos, no hotel, com Rosa, está o pintor pernambucano Cícero Dias. De Baden-Baden partem para Lisboa, onde permanecem por mais um mês, até o retorno ao Brasil, de navio. A travessia foi tensa, devido à grande presença de submarinos alemães naquelas águas.

Em 1942, vindo da Alemanha e após breve passagem pelo Brasil, Rosa segue para a capital da Colômbia, Bogotá, onde permanece até 1944. Em “Páramo”, conto publicado no livro Estas estórias,9 o narrador criado pelo diplomata escreve sobre um

7

Cf. ARAÚJO. Guimarães Rosa: diplomata, p. 160. 8 Cf. ARAÚJO. Guimarães Rosa: diplomata, p. 161. 9 ROSA. Estas estórias, p. 219-244.

homem ainda jovem que fora parar em um lugar inóspito: “ao cabo de uma viagem a ele imposta, vai em muitos anos, se viu chegado ao degredo em cidade estrangeira. Era uma cidade velha, colonial (...)”. O texto foi escrito durante o período em que o escritor viveu em Bogotá e publicado postumamente. Rosa teve dificuldades de adaptação ao posto, devido à altitude, ao clima e à cultura. O espaço mostrava-se bem diferente do brasileiro e daquele vivenciado na Europa. No gesto criador de Rosa, é possível notar a presença de elementos pautados por uma “autobiografia fictícia”. É necessário, porém, ter cautela no estabelecimento de relações entre textos literários e experiências vividas. É possível vislumbrar a imagem do diplomata a partir de metáforas presentes no texto. Cumpre, no entanto, distinguir o profissional da voz narrativa.

O narrador assinala: “Não sou daqui, meu nome não é meu, não tenho um amor, não tenho casa. Tenho um corpo?”. Desse modo, desenvolve uma nova percepção identitária em função da ausência de reconhecimento de si diante do outro: “Minhas roupas são diferentes; meu modo, meu aspecto, saberão que sou estrangeiro, de classe diversa, de outra situação social.” Chega a questionar o caráter de irmandade entre os homens, devido ao incômodo propiciado pela nova morada, pois não se sentia um igual. Assinala que vinha “aberto a todas as alegrias” e poderia ter recusado o posto, mas o aceitou, mesmo hesitando, porque não pretendia alterar a roda do destino. Em seguida, observa: “toda liberdade é fictícia, nenhuma escolha é permitida”.

Os Andes aparecem como paisagem “cinéria”, que irradia “mortal tristeza”. A “ilha deserta” a que chega o escritor permite o contato íntimo consigo mesmo, possibilita o rompimento das certezas pessoais. A doença que o atinge – complicações pulmonares relacionadas à adaptação climática – acentua o estado de deslocamento em relação ao plano da realidade. O enfrentamento das adversidades, a desterritorialização e a posterior reterritorialização lembram que o sentido só pode existir em constante movimento e deslocamento. O sentido surge como resultado de momentos de “exceção e exílio”, conforme aponta Raul Antelo.10 Ele irrompe da exterioridade de um signo, de um discurso, em relação com a exterioridade de outros signos, outros discursos, e não da interioridade de algum sistema.11 Rosa, nesse conto sobre as incertezas de um intelectual nas alturas dos

10 Cf. ANTELO. Sentido, paisagem, espaçamento, p. 18-23. 11 Cf. FOUCAULT. Arqueologia do saber.

Andes, acaba por reforçar a importância do enfrentamento de um lugar indefinido para que novas construções possam surgir. De acordo com o narrador de “Páramo”,

todo verdadeiro grande passo adiante, no crescimento do espírito, exige o baque inteiro do ser, o apalpar imenso de perigos, um falecer no meio das trevas; a passagem. Mas o que vem depois, é o renascimento, um homem mais real e novo, segundo referem os antigos grimórios. Irmãos, acreditem-me.12

Gilles Deleuze assinala que o pensamento faz-se fora de qualquer espécie de garantia. A característica do novo seria produzir no pensamento forças que não fazem parte da “recognição”. O desenvolvimento do pensamento capaz de produzir a novidade passa, para o filósofo, pelo contato com uma zona limítrofe, uma exterioridade em relação à certeza do sujeito pensante, já constituído. O devir resulta do rompimento de fronteiras entre mundos diversos, bem como da abertura para potências de um modelo lógico desconhecido. Esse modelo apresentar-se-ia em terras incógnitas, nunca totalmente reconhecidas.13

No ano de 1944, Rosa é exonerado do cargo em Bogotá e começa a trabalhar na Secretaria de Estado, no Rio de Janeiro, permanecendo ali por quatro anos. Em 1946, assume o cargo de chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura, no Rio de Janeiro. Após dois anos, segue para Paris, onde trabalha de 1948 a 1950. Sua obra certamente traz a incidência de suas viagens, de suas experiências nas terras por onde passou, do que viu e ouviu o homem fazer: do som retumbante das bombas durante a guerra na Alemanha à leve sonoridade da viola do sertanejo mineiro. Desatando os fios da opressão e descortinando novas vias para o significado da liberdade, Rosa funda uma obra original na literatura brasileira.

Rosa estréia na literatura em 1946, com Sagarana.14 Em 1947 realiza uma viagem ao Pantanal mato-grossense, experiência que resulta na produção do texto “Com o vaqueiro Mariano”, publicado no Correio da Manhã, em 26 de outubro de 1947 e em 7 de março de 1948.15 Em carta de Paris, datada de 25 de fevereiro de 1951, Rosa escreve,

12 ROSA. Estas estórias, p. 219.

13 Cf. DELEUZE. Diferença e repetição. 14

Em carta de 6 de novembro de 1945, Rosa escreve ao pai contando sobre seu interesse de ir a Cordisburgo no mês de dezembro. Confessa o significado do retorno à cidade: “Creio que será uma excursão interessante e proveitosa, que irei fazer de cadernos abertos e lápis em punho, para anotar tudo o que possa valer, como fornecimento de cor local, pitoresco e exatidão documental, que são coisas muito importantes na literatura moderna”. ROSA. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, p. 178-180.

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Em 25 de novembro de 1947, escreve ao pai comentando a viagem ao Pantanal. Como em seus textos literários, faz longas listas sobre a fauna e a flora. Relata ter conversado com diversos “zagaieiros”, “caçadores bambas de onças”. Cf. ROSA. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, p. 184-186.

“entre uma mala-de-cabine, fechada, e duas gavetas abertas”, para o amigo Cabral: “(...) o que você disse é verdade: que parto contente, principalmente quando penso nas belas chuvas tropicais, com cheiro bom, arco-íris, trovoada e enxurradas, – no campo mineiro, que os gaviões sobrevoam, no odor das vacas, no frango com quiabos, no sol carioca, em tudo.”16

Em 1951, de volta ao Brasil, reassume suas funções no gabinete do ministro João Neves da Fontoura. Em 1952, no mês de maio, faz viagem de dez dias pelo sertão de Minas Gerais, com uma comitiva de vaqueiros coordenada por Manuelzão. Na ocasião, conhece o cozinheiro-de-boiada e batedor de berrante Zito e o tirador de versos Bindóia. O objetivo do grupo era acompanhar, em um percurso de 240Km, a condução de uma boiada de 180 reses que iria da fazenda Sirga, em Três Marias, à fazenda São Francisco,17em Araçaí, distrito de Paraopeba – entre Cordisburgo e Sete Lagoas. Nessa viagem, o escritor consegue vasto material para seu trabalho literário.18

Ainda em 1952, o escritor vai a Caldas do Cipó, no interior da Bahia, com Assis Chateaubriand, para participar de uma vaquejada. O presidente Getúlio Vargas comparece ao evento. Em carta ao pai, datada de 15 de julho de 1952, relata Rosa:

Em Caldas-do-Cipó, pude ver reunidos – espetáculo inédito, nos anais sertanejos e creio mesmo que em qualquer parte – cerca de 600 vaqueiros autênticos dos “encourados”: chapéu, guarda-peito, jaleco, gibão, calças, polainas, tudo de couro, couro de veado mateiro, cor de suçuarana. /.../ Fui com Assis Chateaubriand, que é o rei dos entusiastas, e tive de vestir também o uniforme de couro e montar a cavalo (num esplêndido cavalo paraibano), formando na “guarda vaqueira” que foi ao campo de aviação receber o Presidente Getúlio Vargas. A mim coube “comandar” os vaqueiros de Soure e de Cipó (!).19

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ROSA. Carta a Cabral. Paris, 25 de fevereiro de 1951. Arquivo João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa.

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A fazenda da origem e a da chegada da boiada pertenciam ao primo de Rosa, Chico Moreira. A mudança da boiada, no período da seca, devia-se às condições melhores de pastagem. A região rural próxima ao destino chamava-se Algodões. Em carta a Pedro Barbosa, escrita do Rio de Janeiro, em 2 de abril de 1952, escreve Rosa: “ainda este mês, estou planejando com o Chico Moreira (que aqui está, vindo comprar um jeep) uma excursão até à Fazenda da Sirga, seu posto de recria, à beira do São Francisco. De lá, em lombo de cavalo, rústica e autenticamente, que nem vaqueiro velho, virei, ajudando a tanger uma boiada, por 40 léguas e 9 dias, até sua sede, Fazenda São Francisco, em Araçaí. Que tal?!” ROSA. Carta a Pedro Barbosa. Rio de Janeiro, 2 de abril de 1952. Memorial Guimarães Rosa. PUC Minas. Belo Horizonte.

18 O fotógrafo Eugênio Silva realiza belo ensaio fotográfico para a reportagem de Álvares Dias sobre a viagem da boiada, publicada na revista O Cruzeiro, em 21 de junho de 1952. Ambos acompanharam a comitiva.

A festa armada para receber personalidades e o Presidente da República ficou, porém, sem o seu maior brilho. Na carta, Rosa declara:

a vaquejada propriamente dita é que perdeu um pouco, porque o gado que estava apartado estourou durante a noite, e poucas reses puderam ser recuperadas; a maior parte delas escapou para muito longe, caíram no mundo, e, apesar de rastreadas por duas léguas, não puderam ser apanhadas. Mas mesmo assim foi bem interessante. Aprendi muita coisa.20

O episódio torna-se significativo, pois todo o aparato “pedagógico” e disciplinar visava a “cooptar”, por meio de um discurso político coeso e homogêneo sobre o interior do país e o povo brasileiro. O estouro da boiada desconstrói a pose. Como as próprias personagens rosianas, a boiada institui um corte performativo na regra e na ordem edulcorada. O gado “escapou para muito longe”, caiu “no mundo”. Apesar de rastreados, muitos animais não foram encontrados. No ápice da narrativa, um elemento inesperado irrompe da cena e desloca o desfecho planejado. “Aprendi muita coisa”, declara o escritor. Talvez para a própria construção literária. Por intermédio de sua estrutura e de jogos formais, a literatura reencena tensões experimentadas na vida social. O gado, quando apartado e reunido em forma de “multidão”, possui força coletiva “ilógica” e poderosa. Torna- se capaz de abalar todo o arranjo político harmônico, romper as fronteiras de seu confinamento e revelar potência indomável. A fuga da boiada aponta, metaforicamente, para o possível descontentamento e para a revolta das multidões populares abandonadas pelas benesses da República, mas utilizadas como adorno “epidérmico” em festas populares. Apresenta um “fora” em relação ao espaço estriado e normativo onde se erige o poder do Estado.

Em 1952, Rosa publica, em tiragem restrita, em pequeno livro, o conto “Com o vaqueiro Mariano”. O texto reaparecerá postumamente em Estas estórias, com o título “Entremeio: com o vaqueiro Mariano”. A estória trata de seu encontro com José Mariano da Silva, vaqueiro que conhecera em julho de 1947, em Nhecolândia, no Pantanal.21

20

ROSA. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, p. 204-206. 21

Em carta de 27 de outubro de 1953, Rosa agradece as informações – sobretudo as relacionadas ao tema dos ciganos e dos entrudos – que o pai lhe enviara. Junto com a carta, encaminha um outro questionário, este também com 12 itens. Demonstra interesse pelo tema das caçadas e revela o gosto pelo detalhe nas descrições: “O detalhe é muitas vezes de grande proveito, pois metido num texto dá impressão de realidade”. Em seguida, dá exemplos dos dados almejados: “(...) objetos, usos, expressões curiosas na conversa (...). Tipos encontrados em viagens (...). Nomes curiosos, de lugares, de pessoas.” ROSA. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, p. 207-208.

Em 1956, publica Corpo de baile e Grande sertão: veredas, textos em que aparecem, reelaboradas, experiências vividas na viagem de 1952 ao interior mineiro. Em 1953, começa a trabalhar como chefe da Divisão de Orçamento e, em 1958, é promovido a embaixador. Prefere, todavia, não chefiar nenhuma embaixada e permanecer no Itamaraty, no Rio de Janeiro. De 1960 a 1961, Rosa publica, em O Globo, na página literária, vários contos que posteriormente iriam compor o livro Primeiras estórias, de 1962. Nesse ano, assume o cargo de chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras. Em meados de 1967, mesmo ano de sua morte, publica Tutaméia.

Rosa constrói seu trajeto passando ao largo dos movimentos artístico-literários do país. Gostava da solidão vivida junto às palavras. As análises dos movimentos literários que se pautam pelo princípio dos agrupamentos e das reuniões intelectuais afeitos a uma proposta estética, em uma certa época, não se aplicam a Rosa. Parece que ficou anos no “esconso” – termo utilizado para definir o lugar do pai no rio, em “A terceira margem do rio”. Mesmo a questão da influência, ou da “angústia da influência”, deve ser tratada com cuidado em relação ao escritor. Sob muitos aspectos, podemos notar a semelhança, por exemplo, entre o intelectual e Mário de Andrade, embora Rosa não partilhasse o interesse estético da vanguarda paulista nem referendasse a idéia de Mário de “abrasileirar” a língua portuguesa. Elegeu, entretanto, Macunaíma como livro ícone de uma poética nacional arrojada.

Rosa viveu no exterior por pouco mais de oito anos. O cotidiano e as tendências artísticas dos espaços onde morou não se transformaram em fortes temáticas de seus textos, como ocorre na obra de Cabral. A experiência dos lugares ficou, porém, registrada em caderninhos de anotações, em ofícios, em algumas crônicas e alguns contos. O sertão fluido, em movimento – conhecido melhor pela via do distanciamento diplomático –, ocupava seu pensamento criativo, seja morando na Alemanha, na Colômbia, na França, seja no apartamento do litoral carioca. Ali, próximo ao barulho das ondas do mar, desvendava sonoridades, mistérios e realidades daquele sertão que, vagarosamente,

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