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CAPÍTULO II: GÉNESE E DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE DIREITOS

2.6. Hugo Grócio

Hugo Grócio ou Hugus Grotius (1583-1645), jurista holandês, teve um papel importante na história dos direitos subjectivos pois deduziu da lei natural direitos subjectivos

naturais ao indivíduo.

380 “E esta liberdade absoluta que não só assegura o direito de não ser de modo nenhum inquietado pelas suas

opiniões religiosas, mas concede ainda a licença de pensar, escrever e mesmo fazer imprimir impunemente em matéria de religião tudo o que pode sugerir a imaginação mais desregrada: direito monstruoso, que no entanto parece à assembleia resultar da igualdade e da liberdade naturais a todos os homens (…). Que há de mais contrário aos direitos de Deus criador do mundo que limitou a liberdade do homem pela criação do mal, que esta liberdade de pensamento e de acção que a Assembleia Nacional concede ao homem social como direito imprescritível da natureza?” Cfr. Pio VI, Quod aliquantum, 10.03.1791 in André Latreille, L´Église Catholique et la Révolution Française, Hachette, Paris, 1946-1950, vol. 1, p. 98.

381

Cfr. Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito…, I, p. 346.

382 Sobre o conflito entre os defensores dos direitos humanos e a Igreja Católica nos sécs. XVIII e XIX, cfr.

António Manuel Hespanha, Cultura Jurídica Europeia..., pp. 339 ss; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional..., pp. 33ss; Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito…, I, pp. 342 ss; Paulo Otero, Instituições Políticas…, pp. 290ss.

Grócio rejeitou a noção de direito (jus) de Aristóteles383, que na sua opinião era demasiado ambiciosa para um jurista, e insistiu noutro sentido da palavra direito, o sentido de

lei, de regra racional dirigindo a conduta humana384.

Segundo Grócio o jurista só deve entrar em cena quando se comete uma violação da lei moral, uma injustiça no sentido estóico. A este pensamento não terão sido alheias a sua forte formação humanista e cristã (arminianismo protestante) e a experiência da sua própria vida no meio das lutas civis e religiosas em que se viu envolvido.

Grócio vai deduzir o direito a partir das regras morais inscritas na razão do homem, que é a sua natureza385. Realça-se que o direito para Grócio define-se e vale independentemente de qualquer experiência e realidade empírica386. Isto é, segundo Grócio o direito “antecede toda a vontade humana e divina”387

.

Para Grócio, tal como para Suarez, o direito é um conjunto de regras388. E quanto à fonte última das regras jurídicas é a recta razão, isto é, a lei natural moral389. Aqui sublinha-se que a razão não é serva da Revelação, constituindo antes uma fonte autónoma do conhecimento do justo390. Neste sentido Grócio dizia que: “assim como Deus não pode evitar que dois e dois sejam quatro, também não pode fazer que o justo deixe de ser justo ou o direito direito”391

Compreende-se deste modo que Grócio se atrevesse a escrever que o direito seria o que é “mesmo se Deus não existisse” (etiamsi daremus non esse Deum)392

. Com esta afirmação Grócio pretendia afirmar que a fonte do direito é a recta razão.

De facto, Grócio transformou o direito natural numa ciência laica sendo por isso considerado o fundador do jusracionalismo moderno. Enquanto a tradição medieval fundava o direito natural na natureza das coisas e o inseria num teologismo providencialista, Grócio concebe o direito natural como um dictamen da recta rationis (lei natural moral)393.

383 Aristóteles concebe o direito (justo) como o equilíbrio realizado numa cidade entre os diversos cidadãos.

Para Aristóteles o fim do direito é a obtenção de uma certa harmonia social, a partilha bem proporcionada. Sobre a definição aristotélica de direito (ou justiça particular) cfr. Michel Villey, La Formation de La Pensée…, pp. 80 ss.

384

Cfr. Michel Villey, La Formation de La Pensée…, p. 548.

385 Cfr. Ibidem, p. 542.

386 Cfr. Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito…, I, p. 162. 387 Ibidem, p. 163.

388 Cfr. Michel Villey, La Formation de La Pensée…, pp. 547-548. 389

Ibidem p. 544.

390 Cfr. Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito…, I, p. 163.

391 Cfr. Hugo Grócio, De jure belli, I, 1, 5 cit. por Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito…, I, p. 162. 392 Ibidem, Proleg. 11 cit. por Ibidem, p. 163.

393

Quanto à relação entre o Estado e o direito Grócio, tal como os juristas da Escola Ibérica do Direito Natural, opunha-se à ideia de uma soberania absoluta e sem limites, a favor de um Estado submetido ao direito394. A diferença entre Grócio e os jesuítas é que enquanto estes últimos estavam preocupados com os interesses da Igreja Católica em face dos reis, Grócio estava preocupado com a humanidade395.

No respeitante à origem do Estado, Grócio aceitou as ideias já assentes na tradição escolástica mas, ao repensá-las, foi mais longe do que Suarez porque considera como facto

histórico o contrato social através do qual os homens constituem a sociedade política396. Além disto, Grócio acentuou a ideia de utilidade pública e de tranquilidade pública como fins do Estado, o que representou um avanço no sentido do nominalismo e do individualismo397.

O principal contributo de Grócio para a história dos direitos humanos consistiu no facto de ter sugerido que se deve começar por pensar em direitos subjectivos. Isto, por sua vez, levou Grócio a transformar o Direito natural no “respeitar os direitos uns dos outros”398

. Com efeito, Grócio esforçou-se para estabelecer, seja em benefício do Estado, seja dos particulares, direitos subjectivos absolutos. Para atingir tal objectivo, Grócio tentou “fundar

directamente, na medida do possível, o direito sobre a regra da razão, quer dizer sobre a regra moral que se torna a última fonte do sistema racionalista.” 399 Por exemplo, do dever de não roubar retirou a ideia do direito de conservar tudo o que se possui; do dever de reparar os danos causados a outrem, retirou o direito à indemnização, etc.

Por fim, importa destacar que a moral que serviu de base ao sistema jurídico de Grócio foi a moral estóica400.

Como já se disse os estóicos tinham como único fim a virtude do indivíduo e, por isso, só se preocupavam com os deveres. Grócio vai ser o primeiro autor a basear-se na moral estóica para dela retirar direitos subjectivos.

Hobbes, Espinosa, Locke, Wolff e Kant farão outras tentativas para fundar o direito subjectivo. Alguns pretenderão deduzi-lo directamente da natureza do homem. Para Grócio, o

394 Cfr. Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito…, I, p. 161. 395 Idem Ibidem.

396 Ibidem, p. 157. 397

Ibidem, p. 158.

398 Cfr. Hugo Grócio, The Jurisprudence of Hollande, trad. inglesa de R.W. Lee, Claredon Press, Oxford,

1926, p. 315 e 393 cit. por R.J. Vincent, Human Rights And International…, p. 25.

399 Cfr. Michel Villey, La Formation de La Pensée…, p. 555 400

direito subjectivo está apenas indirectamente ligado à natureza do homem, pela intermediação da lei inscrita na consciência do homem, sendo portanto um reflexo da obrigação moral401.

Para concluir, sublinha-se que este jurista holandês foi mais um modernizador de certas ideias do que um inovador. Com efeito, Grócio tratou de repensar ideias já existentes no pensamento dos juristas humanistas, de Francisco Suárez e da tradição cristã e estóica, conferindo-lhes um mais acentuado individualismo402.

Finalmente, acresce dizer que todo o sistema delineado por Grócio é o produto de um

espírito pragmático. Isto significa que o sistema grociano pretendia atingir determinados

resultados práticos. De facto, Grócio queria, por um lado, servir os interesses da burguesia comerciante, assegurando as suas necessidades de segurança da riqueza e das transacções, e, por outro lado, acabar com a desordem e as violências das guerras civis e religiosas403.

No documento Breve ensaio sobre os direitos humanos (páginas 94-97)