§4 Adão1
§4.1 O lado obscuro da humanidade
A análise da teologia de Paulo seguindo o esboço que ele mesmo traçou em Romanos tem poucas alternativas de escolha por onde co meçar. Pois a primeira seção principal desta exposição logo se desdo bra como uma acusação da humanidade (Rm 1,18-3,20). Tendo, pois, apresentado algumas indicações dos seus pressupostos sobre Deus e a maneira como são constituídos os seres humanos, passamos agora à sua dolorosa análise da condição humana.
De fato, este próximo estágio (para nós) da teologia de Paulo decorre diretamente do anterior. Ele simplesmente completa o re trato da antropologia de Paulo. Pois uma característica notável da
1B ibliografia: C. K. Barrett, From First Adam to Last: A Study in Pauline Theology (Londres: Black/New York, Scribner, 1962); G. Borkam m, “Sin, Law and Death: An Exegetical Study of Romans 7”, Early Christian Experience 87-104; E. B randenburger,
Adam und Christus. Exegetisch-religionsgeschichtliche Untersuchungen zu Rom. 5.12-21 (1 Kor. 15) (WMANT 7; Neukirchen: Neukirchener, 1962); Gnilka, Paulus 201-5; M. D.
Hooker, “Adam in Romans 1”, NTS 6 (1959-60) 297-306; “A Further Note on Romans 1”,
NTS 13 (1966-67) 181-83; J. Jervell, Imago Dei: Gen. 1.26f. im Spätjudentum, in der Gnosis und in den paulinischen Briefen (FRLANT 76; Göttingen: Vandenhoeck, 1960);
Laato, Paulus cap. 4; J. R. Levison, Portraits o f Adam in Early Judaism From Sirach to
2 Baruch (JSPS1; Sheffield: Sheffield Academic, 1988); B. J. Malina, “Some Observations
on the Origin of Sin in Judaism and St. Paul”, CBQ 31 (1969) 18-34; R. Scroggs, The Last
Adam: A Study in Pauline Anthropology (Philadelphia: Fortress/Oxford: Blackwell, 1966);
Strecker, Theologie 63-69; E. R. Tennant, The Sources o f the Doctrines o f the Fall and
Original Sin (Cambridge: Cambridge University, 1903); A. J. M. W edderburn, “The
Theological Structure of Romans 5.12”, NTS 19 (1972-73) 339-54; “Adam in Paul’s Letter to the Romans”, in E. A. Livingstone, org., Studia Biblica 1978 III (Sheffield: JSOT, 1980) 413-30; Whiteley, Theology 48-58; N. P. Williams, The Ideas o f the Fall and o f Original
maneira como Paulo entende a humanidade é o número de vezes que apõe um sinal negativo aos vários termos-chave descritos em §3. Isso, já vimos, é particularmente verdadeiro em relação a sarx (“carne”), fazendo a pessoa humana parte do mundo, fraca e corruptível. A vida no mundo só pode ser vivida “na carne”. Mas a vida vivida
kata sarka, “de acordo com a carne”, quando apetites animais e
desejos dominam a existência, é vida hostil a Deus, incapaz de agra dar a Deus (Rm 8,7-8). Soma (“corpo”) é o termo mais neutro, mas também podia ser usado em sentido fortemente negativo — “corpo de pecado” (6,6), “este corpo de morte” (7,24). Na melhor das hipó teses, este corpo é ainda o corpo mortal, o corpo morto que ainda precisa ser redimido (6,12; 8,10-11). Assim também o nous (“men te”), embora semelhantemente neutro, foi corrompido: as cartas paulinas falam da “mente desqualificada” (Rm 1,28), da “futilidade da mente” (Ef 4,17), da “mente carnal” (Cl 2,18). Rm 1,21 e 24, por sua vez, falam de “coração insensato nas trevas” e dos humanos que “são entregues segundo os desejos dos seus corações à impureza”. A pessoa humana como psyche (“alma”) também está ligada à terra.
Psyche é o princípio da vida, mas vida incompleta, circunscrita, tran
sitória — humanidade no seu próprio nível, não no de Deus. O
psychikos soma precisa ser redimido (Rm 8,23), precisa tornar-se o pneumatikon soma (ICor 15,44-49). Até do pneuma (“espírito”) hu
mano se diz que pode, segundo uma passagem, necessitar ser limpo de “manchas” (2Cor 7,1).
Igualmente forte é a linguagem que Paulo usa ao lembrar a acu sação inicial de Romanos em termos sumários (Rm 5,6-10):
Foi quando ainda éramos fracos que Cristo, no tempo marcado, morreu pelos ímpios. Dificilmente alguém dá a vida por um justo; por um homem de bem talvez haja alguém que se disponha a mor rer. Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores... Pois se quan do éramos inimigos fomos reconciliados com Deus...
A condição humana que Paulo tinha em mente era marcada não só pela fraqueza (a condição da sarx), mas também pela impiedade (.asebeia), o termo que usara na abertura da acusação (1,18).2 Os ho
2Paulo usa asebeia, “impiedade”, somente em Rm 1,18 e 11,26, e o adjetivo correspon dente asebes, “ímpio”, só em Rm 4,5 e 5,6. Mas estas palavras também aparecem em lTm 1,9; 2Tm 2,16 eT t 2,12.
mens eram literalmente “sem adoração”,3 carentes de reverência. Eram marcados pela injustiça (adikia) e ausência de bondade; o pri meiro termo reflete novamente a acusação de abertura de 1,18 (a ira de Deus “revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos ho mens que mantêm a verdade prisioneira da injustiça”).4 Havia algo de fundamentalmente injusto nos seus relacionamentos.5 Pior de tudo, num clímax claramente intencionado para a seqüência, os seres hu manos eram “pecadores” e “inimigos” de Deus. Esclarecer o que Pau lo tinha em vista nessa impetuosa crítica será um dos objetivos deste capítulo.
Mais tarde o autor de Efésios descreve a condição humana em termos ainda mais duros (Ef 2,1-3):
Vós estáveis mortos em vossos delitos e pecados. Neles vivíeis ou- trora, conforme a índole deste mundo, conforme o Príncipe do po der do ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Com eles, nós também andávamos outrora nos desejos de nossa carne e os seus impulsos, e éramos por natureza como os demais, filhòs da ira.
Também aqui usam-se imagens fortes para caracterizar a hu manidade, que refletem a linguagem anterior de Paulo e cujo sen tido e implicações teremos de tratar no decorrer do presente capí tulo.
Nessas passagens (Rm 5,6-10; Ef 2,1-3) a teologia paulina reco nhece com suas palavras o que todas as filosofias religiosas reconhe ceram, de acordo com as linguagens que lhes são próprias: que há um lado obscuro do caráter humano, que precisa ser levado em con ta; caso contrário este poderá destruir a humanidade. Quaisquer sejam as forças fora dos indivíduos que pesam sobre eles de maneira adversa e opressiva (abaixo §5), também há uma virulenta toxina dentro deles, cujo veneno, se for deixado sem controle, lentamente matará todo o organismo. Os rabinos descreviam isso como o yetser
hara, “o impulso mau” interior, para explicar as escolhas loucas,
autodanificadoras que todos fazemos. Os gnósticos, maniqueus e cátaros tentaram explicá-lo pela maldade da matéria, exigindo um
3Sebomai, “adorar”.
Adikia, “injustiça”, é o termo mais importante na acusação (Rm 1,18 [duas vezes], 29;
2,8; 3,5).
estrito ascetismo em resposta. Shakespeare caracteriza o mal como uma falha fatal dentro dos seus heróis trágicos. Robert Louis Stevenson retratou o seu terrível potencial em Dr. Jekyll and Mr.
Hyde. Oscar Wilde advertiu sobre a degeneração que pode desenvol
ver-se por baixo da aparência externa em O Retrato de Dorian Gray. E Jonathan Swift simplesmente levou até o fim as suas conseqüên cias no mais impiedoso retrato da depravação humana nos brutamontes das Viagens de Gulliver.
A tentativa de Paulo de explicar esse lado obscuro da humani dade concentra-se na figura de Adão e na narrativa da “primeira desobediência do homem”6 de Gn 2-3, que tradicionalmente foi des crita como “a Queda”.7
§4.2 Adão nas Escrituras judaicas
Donde Paulo tirou a sua teologia de Adão? A resposta mais ób via é: de Gênesis 1-3 e dos temas teológicos já lançados ali. Os temas- chave que encontramos em Paulo são caracteristicamente judaicos e não há nenhuma fonte alternativa óbvia no pensamento religioso geral da época. O êmulo mais próximo, o tratado hermético Poiman-
dres, apresenta clara evidência da influência das narrativas do
Gênesis.8 Assim, se quisermos entender o ensinamento de Paulo so bre o assunto, faremos bem em familiarizar-nos com as tradições da reflexão teológica que Paulo, sem dúvida, conhecia e que assim po dia supor até certo ponto também estavam na mente dos leitores dos seus escritos sobre o assunto.
Há diversos aspectos notáveis de Gn 1-3 que influenciaram di retamente o uso que Paulo fez do texto. Em primeiro lugar, o empre
6Milton, Paraíso Perdido 1.1.1.
7A Bíblia não usa o termo “queda” ao referir-se à narrativa de Adão e Eva. Mas a imagem foi fortalecida pelas “quedas” paralelas do rei de Babilônia e do rei de Tiro descri tas em Is 14,12-15 e Ez 28,16-17 (cf. Lc 10,18), embora a imagem de Gn 3 seja de desobe diência e conseqüente expulsão da presença de Deus. O.S. Wintermute traduz Jub. 12.25 como uma referência ao “dia da Queda” (OTP 2.82), mas R.H. Charles (revisto por C. Rabin) considera a referência “ao dia do colapso (da torre de Babel)” (H.F.D. Sparks, org.,
The Apocryphal Old Testament [Oxford: Clarendon, 1984] 49), que tem mais sentido no
contexto. Em 4 Esdras 7,118 o termo latino casus é traduzido pela NRSV e OTP como “queda”; mas poderia denotar calamidade moral (o siríaco traz “infortúnio, mal”); ver Levison, Adam 123.
8Dodd, Bible especialmente 145-69. O mesmo vale dos tratados gnósticos encontrados em Nag Hammadi, particularmente o Apócrifo de João, Hipóstase dos Arcontes e o
go do termo adam. Adam é muito usado nas Escrituras hebraicas no sentido de “humanidade, ser humano”.9 O mesmo vale de Gn 1-2, como mostra claramente 1,26-28 e 2,7. Ao mesmo tempo há na nar rativa uma ambivalência entre adam como um indivíduo e adam representando a humanidade como um todo. Mas isso de fato só co meça em 2,18,10 e em 2,23-24 o hebraico revela consciência dessa ambivalência ao usar ish (“homem”) com ishah (“mulher, esposa”). A confusão é causada pelo formato da história, pelo fato de que a dupla história serve para explicar tanto o casamento como a dureza do tra balho humano e pela fusão do mito com a história (assim também em Gn 5,1-2.3-5). Também Paulo apresenta a mesma ambivalência. Ele fala de “homem” (aner, não anthropos) como a imagem e a glória de Deus, enquanto “a mulher/esposa é a glória do homem/esposo” (ICor 11,7). E deixa subentender que a falta inicial no Éden foi de Eva (2Cor 11,3; muito mais severamente na posterior lTm 2,14).u Contudo, o sentido de que a narrativa do Gênesis é a narrativa da humanidade, quer seja representada como uma pessoa individual, quer como macho e fêmea, nunca abandona Gn 1-3. E, conforme ve remos, o uso das narrativas em Paulo compartilha o mesmo sentido. Quando Paulo fala de Adão ou alude a ele, fala da humanidade como um todo.
Segundo, também podemos notar o jogo deliberado no hebraico de Gn 2,7 entre adam e o material do qual adam foi feito, adamah (“solo, terra”) — “O Senhor Deus formou o adam, pó da adamah”. A semelhança foi sem dúvida deliberada: o adam foi formado para cul tivar a adamah (2,5-9); e depois a adamah é incluída na pena de
adam pela desobediência deste (o solo amaldiçoado e seu fruto exi
gindo trabalho penoso), uma pena que durará até que adam volte à
adamah (3,7-19).12 Claramente, Paulo tinha em mente esta passa
gem quando falou da vaidade da criação na sua sujeição à corrupção em Rm 8,20-22. Mas também podemos observar que o tema está in timamente ligado com o que foi dito acima (§3.2) sobre as implica ções da linguagem do soma de Paulo, indicando a ligação humana com o resto da criação.
9BDB, adam 2.
10A LXX traduz adam por anthropos até 2,18, depois (e em 2,16) por Adam.
n2Cor 11,3 simplesmente segue a linha da história do Gênesis; é lTm 2,14 que faz uma consideração teológica da história.
Terceiro, “a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2,9), da qual adam foi severamente proibido de comer (2,17), provocou discussões intermináveis. A interpretação mais óbvia não é que o fruto daria a Adão um conhecimento do certo e do errado, que em caso contrário lhe faltaria por completo; a própria ordem pressupõe que Adão conhecia a diferença entre obediência e desobediência.13 Parece, na verdade, tratar-se da questão da autonomia moral. O fru to da árvore faria o Adão pensar que ele saberia melhor, que era sábio aos seus próprios olhos, não precisando mais da dependência de Deus para a sua orientação e limites morais. Daqui a tentação da serpente: “Sereis como deuses, versados no bem e no mal” (3,5). E a atratividade da árvore para Eva: “a árvore era desejável para adqui rir discernimento” (3,6).14
Quarto, a advertência é que a desobediência em relação a esse ponto resultará em morte (2,17: “no dia em que dela comeres terás que morrer”). No caso o resultado é a exclusão da outra árvore men cionada, “a árvore da vida” (2,9.22.24), e, em conseqüência, da pre sença de Deus no jardim. Adão escolhe conhecer por si mesmo, inde pendentemente de Deus. O resultado, de fato, é a independência de Deus, mas isso significa também ser excluído do acesso à vida.
O outro lado da medalha implica que havia uma intenção divi na de Adão ter acesso à árvore da vida como parte da participação e responsabilidade humana na criação. A permissão explícita, “podes comer de todas as árvores do jardim” (2,16), sendo proibida somen te a árvore do conhecimento do bem e do mal (2,17), inclui clara mente a permissão de comer da árvore da vida. Também isso impli ca a intenção divina de que a humanidade deveria “viver para sempre” (3,22). Todavia, fica totalmente incerto se a vida eterna devia ser ganha por um consumo regular do fruto da árvore (como po dem dar a entender os versículos anteriores), ou se podia ser ganha
13Tennant, Fali 12-13; Lyonnet, “Sin” (§5 n. 1) 5-6.
14Que tenha sido este o modo de entender a passagem no judaísmo antigo provavel mente é confirmado pelo forte eco da narrativa de Gn 2-3 em Ez 28, que descreve como o rei de Tiro foi expulso do Éden (28,13.16), porque comparou sua mente à mente de Deus e pretendeu ter sabedoria (divina) (28,2-10). Também pelas versões posteriores da história: Josefo, Ant. 1.37, parafraseia Gn 2,17 como a árvore “da sabedoria (phronesis), pela qual se pode distinguir o que é bom e o que é mau”; e o Targum Neofiti traduz de maneira semelhante, “a árvore do conhecimento, e todo aquele que comer dela saberá distinguir entre o bem e o mal”. Ver discussão em G.J. Wenham, Genesis 1-15 (WBC 1, Waco: Word, 1987) 63-64.
por um único ato de comer (como pode sugerir 3,22). Essa outra ambigüidade na história mítica do Gênesis provavelmente reflete uma incerteza duradoura quanto à origem da morte. A morte sem pre fez parte da ordem criada, como hoje inevitavelmente devemos pensar? Ou o fato da morte indica um defeito ou falha da criação? Essas ambigüidades e interrogações permanecem parte da teologização de Paulo nessa questão, sem dúvida derivadas direta mente das histórias originais de Adão.
Admitido, pois, que Paulo foi diretamente influenciado pelas narrativas do Gênesis (Gn 1-3), como ainda veremos, podemos detec tar outras influências da longa tradição teológica judaica pré-cristã? Considerando que a passagem foi tão central na teologia cristã da “queda” (e na iconografia cristã), constitui uma cautela salutar no tar que as Escrituras hebraicas na verdade tomam pouco conheci mento da história de Adão, embora haja alusões em diversos luga res,15 e certamente exista um conceito de pecaminosidade universal.16 Portanto, na realidade, não é possível falar de uma tradição escri- turística judaica da “queda”, e isso deve ser notado ao examinar onde se podem identificar influências judaicas sobre a teologia de Paulo. Mas a situação muda nos escritos judaicos do período pós-bíblico (as sim chamado “intertestamentário”).
§4.3 Adão na tradição judaica pós-bíblica
Ben Sirac, o mais importante dos escritos judaicos deutero- canônicos, não muda muito o quadro. Na verdade, à primeira vista parece não ter um conceito real de algo que se aproxima de uma queda. Eclo 15,14: Deus “criou o homem e o abandonou ao poder da sua inclinação (diaboulion)”. Mas como 15,15 deixa claro (e apesar de Gn 6,5 e 8,21), a inclinação (yetser) não é vista como mal.17 Eclo 17,1 representa a criação da humanidade “da terra”, mas acrescenta “e fê-lo voltar a ela novamente”, ecoando Gn 3,19, sem qualquer indi cação de que isso foi originalmente uma palavra de julgamento. Ben
15lC r 1,1; Dt 4,32; Jó 31,33; Ez 28,12-15; Os 6,7; também Tb 8,6. Mas ver também Tennant, Fali 15-16, n. 7.
16Gn 6,5; 8,21; Tennant, Fali 101-2 refere-se a lRs 8,46; 2Cr 6,36; Jó 4,17; 14,4; 25,4; SI 51,5; 103,3; 143,2; Pr 20,9; Ecl 7,20; Jr 17,9. Ver também Fitzmyer, Paul 71-72; Merklein, “Paulus und die Sünde” (§5 n. 1) 139-42, com bibliografia na n. 46.
Sirac simplesmente nota que a vida criada por Deus era de duração limitada (17,2) e repete que Deus “os [plural] fez à sua imagem” (17,3). Mas a “inclinação” (grego) é novamente algo positivo (17,6). Sem mais destaque, Ben Sirac nota que o próprio Deus “mostrou-lhes o bem e o mal” (17,7) e “concedeu-lhes a ciência, repartiu com eles a lei da vida. Fez com eles uma aliança eterna” (17,11-12). Não é que Ben Sirac não tivesse uma idéia do pecado humano. Muito pelo contrário, como a própria passagem seguinte demonstra claramente (17,25-18,4): os humanos são pecadores e mortais. Apenas acontece que essa condi ção humana não é atribuída a um ato primevo de desobediência e conseqüente punição.18 Até mesmo em 40,1-11 o eco de Gn 3,19 pare ce ser usado apenas para servir ao pensamento de que o trabalho penoso e a expectativa da morte são a sorte comum. A morte é sim plesmente “a sentença do Senhor para toda carne” (41,1-4).
Há, entretanto, uma exceção a essa ênfase predominante de Ben Sirac: Eclo 25,24 — “Foi pela mulher que começou o pecado, e por causa dela todos morremos”.19 O paralelismo com Sb 2,23-24 (citado abaixo)20 e 2Cor 11,3 e lTm 2,14 (referido acima) dificilmente pode ser acidental.21 Ben Sirac conhecia (ou pelo menos baseou-se na) tra dição de que a morte era a conseqüência de um pecado original.22
Mais importante é a Sabedoria de Salomão. Sua relevância espe cial para nós está no fato de que Paulo certamente a conhecia e parece deliberadamente refleti-la na sua acusação inicial (Rm l,19-2,6).23 Na Sabedoria há claras referências à criação do primeiro humano que foi
18De maneira semelhante em 24,28; 33,10-13 e 49,16, o último dos quais traz a primeva expressão do tema posteriormente proeminente da glorificação de Adão.
190 hebraico lê: “Por causa dela morreremos yhd”, que poderia ser traduzido “... comumente”, isto é, a morte é nossa sorte comum.
20Notar também Vida de Adão e Eva - Vila 44 e Apoc. Mos. 14 e 32; também 2 Enoc 30,17.
21Discordando J.R. Levison, “Is Eve to Blame? A Contextuai Analysis of Sir. 25.24”, CBQ 47 (1985) 617-23; ver também Adam 155; seguido sem crítica por Stowers, Rereading 89,92 (não faz nenhuma referência a Sb 2,23-24); rejeitado por P.W. Skehan e A.A. Di Lella, The Wisdorn ofBen Sira (AB 39; New York: Doubleday, 1987) 348-49.
22Tennant, Fall 119-21, 244.
23Ver especialmente H. Daxer, Römer 1.18-2.10 im Verhältnis zu spätjüdischen
Lehrauffassung (Naumburg: Pätz’sche, 1914); C. Bussmann, Themen der paulinischen Missionspredigt auf dem Hintergrund der spätjüdisch-hellenistischen Missionsliteratur
(Bern/Frankfurt: Lang, 1975) 108-22; brevemente exposto em Sanday e Headlam, Romans 51-52. Sobre a forte ressonância de Sb 15,1-4 em Rm 2,4 ver meu Romans 82-83. A evidên cia é ainda mais interessante quando se considera que a data da Sabedoria de Salomão é muito incerta, variando entre 220 a.C. e 50 d.C. D. Winston data-à do reinado de Gaius Calígula (37-41 d.C.; ABD 6,122-23). Quanto mais tardia a data e quanto mais provável a
formado da terra (Sb 7,1) e recebeu o domínio sobre as criaturas (9,2- 3) e à transgressão (paraptoma) do primeiro formado, pai do mundo (10,1). Digno de nota é também o eco de Gn 3,19 em Sb 15,8 e a acusa ção em 15,11 de que o humano formado de argila “desconheceu aquele que o modelou” (cf. Rm 1,19-21).24 Mais digno de nota é Sb 2,23-24:
Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e o fez imagem de sua própria eternidade; mas por inveja do diabo a morte entrou no mundo,
prová-la-ão os que são do seu partido.
Aqui o vocabulário e as idéias formam uma caixa de ressonân cia para diversas afirmações teológicas de Paulo nessa área.25 As sim, também aqui podemos confiar que Paulo conhecia essa reflexão teológica e provavelmente se baseou nela.26
Outros textos pós-bíblicos indicam que no tempo de Paulo o pa pel da desobediência de Adão tornara-se fator maior na geração de explicações da condição humana. Podemos simplesmente notar a renarração da história da desobediência e expulsão de Adão em Jub. 3,17-25, com sua surpreendente, embora também característica, ela boração em 3,26-31.27 Os animais cessam de falar uma língua co mum e são expulsos com Adão.28 Mas só a Adão é “concedido... que
proveniência de Alexandria, tanto mais é de admirar o conhecimento que Paulo teve dela. Os fatos sugerem ou ampla circulação do texto nas sinagogas da diáspora ou que Paulo a conheceu quando, após a conversão, repensou sua herança judaica, em especial na sua interface com a cultura e as necessidades dos gentios.
24Bem como o eco de 15,1-4 em Rm 2,4; notar a imagem e a linguagem compartilhada do oleiro em Sb 15,7 e Rm 9,21. Como observa Levison (Adam 53), a antropologia de 15,11 é mais grega que hebraica, pois fala de uma alma que é soprada na figura de argila, e não a figura de argila que se toma alma viva (de forma semelhante Fílon, Virt. 203-49; cf.
Plant. 42 - a mente é o verdadeiro anthropos em nós).
25“Incorrupção” (aphtharsia) - Rm 2,7; ICor 15,42.50.53-54.
“Imagem” (eikon) - Rm 1,23; ICor 11,7; 15,49; 2Cor 3,18; 4,4; Cl 1,15; 3,10.
“Eternidade” (aidiotes) - Rm 1,20 (aidios). “A morte entrou no mundo”, as mesmas palavras que em Rm 5,12.
26Levison, Adam 51-52, diz que 2,24 é referência a Caim. Mas diabolos já era estabe lecido como referência ao oponente celeste de Deus: é a tradução regular de satan (o “acu sador” celeste) na LXX (2Cr 21,1; Jó 1-2; Zc 3,1-2) e também aparece por “Mastema, o chefe dos espíritos” hostil a Deus no fragmento grego de Jub. 10.8. O tema da “inveja” faz parte da tentação da serpente em Apoc. Mos. 18.4, e “inveja” é a explicação para a malícia da serpente em Josefo, Ânt. 1.41. E se a morte for pensada como morte eterna (Tennant,
Fali 124-26; Levison), então cabe a idéia da morte como exclusão da árvore da vida (Gn 3),
e não é referência ao assassínio de Abel por Caim.
27Geralmente se considera que Jubileus é de meados do século II a.C.