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A HUMANIDADE SOB ACUSAÇÃO

§4 Adão1

§4.1 O lado obscuro da humanidade

A análise da teologia de Paulo seguindo o esboço que ele mesmo traçou em Romanos tem poucas alternativas de escolha por onde co­ meçar. Pois a primeira seção principal desta exposição logo se desdo­ bra como uma acusação da humanidade (Rm 1,18-3,20). Tendo, pois, apresentado algumas indicações dos seus pressupostos sobre Deus e a maneira como são constituídos os seres humanos, passamos agora à sua dolorosa análise da condição humana.

De fato, este próximo estágio (para nós) da teologia de Paulo decorre diretamente do anterior. Ele simplesmente completa o re­ trato da antropologia de Paulo. Pois uma característica notável da

1B ibliografia: C. K. Barrett, From First Adam to Last: A Study in Pauline Theology (Londres: Black/New York, Scribner, 1962); G. Borkam m, “Sin, Law and Death: An Exegetical Study of Romans 7”, Early Christian Experience 87-104; E. B randenburger,

Adam und Christus. Exegetisch-religionsgeschichtliche Untersuchungen zu Rom. 5.12-21 (1 Kor. 15) (WMANT 7; Neukirchen: Neukirchener, 1962); Gnilka, Paulus 201-5; M. D.

Hooker, “Adam in Romans 1”, NTS 6 (1959-60) 297-306; “A Further Note on Romans 1”,

NTS 13 (1966-67) 181-83; J. Jervell, Imago Dei: Gen. 1.26f. im Spätjudentum, in der Gnosis und in den paulinischen Briefen (FRLANT 76; Göttingen: Vandenhoeck, 1960);

Laato, Paulus cap. 4; J. R. Levison, Portraits o f Adam in Early Judaism From Sirach to

2 Baruch (JSPS1; Sheffield: Sheffield Academic, 1988); B. J. Malina, “Some Observations

on the Origin of Sin in Judaism and St. Paul”, CBQ 31 (1969) 18-34; R. Scroggs, The Last

Adam: A Study in Pauline Anthropology (Philadelphia: Fortress/Oxford: Blackwell, 1966);

Strecker, Theologie 63-69; E. R. Tennant, The Sources o f the Doctrines o f the Fall and

Original Sin (Cambridge: Cambridge University, 1903); A. J. M. W edderburn, “The

Theological Structure of Romans 5.12”, NTS 19 (1972-73) 339-54; “Adam in Paul’s Letter to the Romans”, in E. A. Livingstone, org., Studia Biblica 1978 III (Sheffield: JSOT, 1980) 413-30; Whiteley, Theology 48-58; N. P. Williams, The Ideas o f the Fall and o f Original

maneira como Paulo entende a humanidade é o número de vezes que apõe um sinal negativo aos vários termos-chave descritos em §3. Isso, já vimos, é particularmente verdadeiro em relação a sarx (“carne”), fazendo a pessoa humana parte do mundo, fraca e corruptível. A vida no mundo só pode ser vivida “na carne”. Mas a vida vivida

kata sarka, “de acordo com a carne”, quando apetites animais e

desejos dominam a existência, é vida hostil a Deus, incapaz de agra­ dar a Deus (Rm 8,7-8). Soma (“corpo”) é o termo mais neutro, mas também podia ser usado em sentido fortemente negativo — “corpo de pecado” (6,6), “este corpo de morte” (7,24). Na melhor das hipó­ teses, este corpo é ainda o corpo mortal, o corpo morto que ainda precisa ser redimido (6,12; 8,10-11). Assim também o nous (“men­ te”), embora semelhantemente neutro, foi corrompido: as cartas paulinas falam da “mente desqualificada” (Rm 1,28), da “futilidade da mente” (Ef 4,17), da “mente carnal” (Cl 2,18). Rm 1,21 e 24, por sua vez, falam de “coração insensato nas trevas” e dos humanos que “são entregues segundo os desejos dos seus corações à impureza”. A pessoa humana como psyche (“alma”) também está ligada à terra.

Psyche é o princípio da vida, mas vida incompleta, circunscrita, tran­

sitória — humanidade no seu próprio nível, não no de Deus. O

psychikos soma precisa ser redimido (Rm 8,23), precisa tornar-se o pneumatikon soma (ICor 15,44-49). Até do pneuma (“espírito”) hu­

mano se diz que pode, segundo uma passagem, necessitar ser limpo de “manchas” (2Cor 7,1).

Igualmente forte é a linguagem que Paulo usa ao lembrar a acu­ sação inicial de Romanos em termos sumários (Rm 5,6-10):

Foi quando ainda éramos fracos que Cristo, no tempo marcado, morreu pelos ímpios. Dificilmente alguém dá a vida por um justo; por um homem de bem talvez haja alguém que se disponha a mor­ rer. Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores... Pois se quan­ do éramos inimigos fomos reconciliados com Deus...

A condição humana que Paulo tinha em mente era marcada não só pela fraqueza (a condição da sarx), mas também pela impiedade (.asebeia), o termo que usara na abertura da acusação (1,18).2 Os ho­

2Paulo usa asebeia, “impiedade”, somente em Rm 1,18 e 11,26, e o adjetivo correspon­ dente asebes, “ímpio”, só em Rm 4,5 e 5,6. Mas estas palavras também aparecem em lTm 1,9; 2Tm 2,16 eT t 2,12.

mens eram literalmente “sem adoração”,3 carentes de reverência. Eram marcados pela injustiça (adikia) e ausência de bondade; o pri­ meiro termo reflete novamente a acusação de abertura de 1,18 (a ira de Deus “revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos ho­ mens que mantêm a verdade prisioneira da injustiça”).4 Havia algo de fundamentalmente injusto nos seus relacionamentos.5 Pior de tudo, num clímax claramente intencionado para a seqüência, os seres hu­ manos eram “pecadores” e “inimigos” de Deus. Esclarecer o que Pau­ lo tinha em vista nessa impetuosa crítica será um dos objetivos deste capítulo.

Mais tarde o autor de Efésios descreve a condição humana em termos ainda mais duros (Ef 2,1-3):

Vós estáveis mortos em vossos delitos e pecados. Neles vivíeis ou- trora, conforme a índole deste mundo, conforme o Príncipe do po­ der do ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Com eles, nós também andávamos outrora nos desejos de nossa carne e os seus impulsos, e éramos por natureza como os demais, filhòs da ira.

Também aqui usam-se imagens fortes para caracterizar a hu­ manidade, que refletem a linguagem anterior de Paulo e cujo sen­ tido e implicações teremos de tratar no decorrer do presente capí­ tulo.

Nessas passagens (Rm 5,6-10; Ef 2,1-3) a teologia paulina reco­ nhece com suas palavras o que todas as filosofias religiosas reconhe­ ceram, de acordo com as linguagens que lhes são próprias: que há um lado obscuro do caráter humano, que precisa ser levado em con­ ta; caso contrário este poderá destruir a humanidade. Quaisquer sejam as forças fora dos indivíduos que pesam sobre eles de maneira adversa e opressiva (abaixo §5), também há uma virulenta toxina dentro deles, cujo veneno, se for deixado sem controle, lentamente matará todo o organismo. Os rabinos descreviam isso como o yetser

hara, “o impulso mau” interior, para explicar as escolhas loucas,

autodanificadoras que todos fazemos. Os gnósticos, maniqueus e cátaros tentaram explicá-lo pela maldade da matéria, exigindo um

3Sebomai, “adorar”.

Adikia, “injustiça”, é o termo mais importante na acusação (Rm 1,18 [duas vezes], 29;

2,8; 3,5).

estrito ascetismo em resposta. Shakespeare caracteriza o mal como uma falha fatal dentro dos seus heróis trágicos. Robert Louis Stevenson retratou o seu terrível potencial em Dr. Jekyll and Mr.

Hyde. Oscar Wilde advertiu sobre a degeneração que pode desenvol­

ver-se por baixo da aparência externa em O Retrato de Dorian Gray. E Jonathan Swift simplesmente levou até o fim as suas conseqüên­ cias no mais impiedoso retrato da depravação humana nos brutamontes das Viagens de Gulliver.

A tentativa de Paulo de explicar esse lado obscuro da humani­ dade concentra-se na figura de Adão e na narrativa da “primeira desobediência do homem”6 de Gn 2-3, que tradicionalmente foi des­ crita como “a Queda”.7

§4.2 Adão nas Escrituras judaicas

Donde Paulo tirou a sua teologia de Adão? A resposta mais ób­ via é: de Gênesis 1-3 e dos temas teológicos já lançados ali. Os temas- chave que encontramos em Paulo são caracteristicamente judaicos e não há nenhuma fonte alternativa óbvia no pensamento religioso geral da época. O êmulo mais próximo, o tratado hermético Poiman-

dres, apresenta clara evidência da influência das narrativas do

Gênesis.8 Assim, se quisermos entender o ensinamento de Paulo so­ bre o assunto, faremos bem em familiarizar-nos com as tradições da reflexão teológica que Paulo, sem dúvida, conhecia e que assim po­ dia supor até certo ponto também estavam na mente dos leitores dos seus escritos sobre o assunto.

Há diversos aspectos notáveis de Gn 1-3 que influenciaram di­ retamente o uso que Paulo fez do texto. Em primeiro lugar, o empre­

6Milton, Paraíso Perdido 1.1.1.

7A Bíblia não usa o termo “queda” ao referir-se à narrativa de Adão e Eva. Mas a imagem foi fortalecida pelas “quedas” paralelas do rei de Babilônia e do rei de Tiro descri­ tas em Is 14,12-15 e Ez 28,16-17 (cf. Lc 10,18), embora a imagem de Gn 3 seja de desobe­ diência e conseqüente expulsão da presença de Deus. O.S. Wintermute traduz Jub. 12.25 como uma referência ao “dia da Queda” (OTP 2.82), mas R.H. Charles (revisto por C. Rabin) considera a referência “ao dia do colapso (da torre de Babel)” (H.F.D. Sparks, org.,

The Apocryphal Old Testament [Oxford: Clarendon, 1984] 49), que tem mais sentido no

contexto. Em 4 Esdras 7,118 o termo latino casus é traduzido pela NRSV e OTP como “queda”; mas poderia denotar calamidade moral (o siríaco traz “infortúnio, mal”); ver Levison, Adam 123.

8Dodd, Bible especialmente 145-69. O mesmo vale dos tratados gnósticos encontrados em Nag Hammadi, particularmente o Apócrifo de João, Hipóstase dos Arcontes e o

go do termo adam. Adam é muito usado nas Escrituras hebraicas no sentido de “humanidade, ser humano”.9 O mesmo vale de Gn 1-2, como mostra claramente 1,26-28 e 2,7. Ao mesmo tempo há na nar­ rativa uma ambivalência entre adam como um indivíduo e adam representando a humanidade como um todo. Mas isso de fato só co­ meça em 2,18,10 e em 2,23-24 o hebraico revela consciência dessa ambivalência ao usar ish (“homem”) com ishah (“mulher, esposa”). A confusão é causada pelo formato da história, pelo fato de que a dupla história serve para explicar tanto o casamento como a dureza do tra­ balho humano e pela fusão do mito com a história (assim também em Gn 5,1-2.3-5). Também Paulo apresenta a mesma ambivalência. Ele fala de “homem” (aner, não anthropos) como a imagem e a glória de Deus, enquanto “a mulher/esposa é a glória do homem/esposo” (ICor 11,7). E deixa subentender que a falta inicial no Éden foi de Eva (2Cor 11,3; muito mais severamente na posterior lTm 2,14).u Contudo, o sentido de que a narrativa do Gênesis é a narrativa da humanidade, quer seja representada como uma pessoa individual, quer como macho e fêmea, nunca abandona Gn 1-3. E, conforme ve­ remos, o uso das narrativas em Paulo compartilha o mesmo sentido. Quando Paulo fala de Adão ou alude a ele, fala da humanidade como um todo.

Segundo, também podemos notar o jogo deliberado no hebraico de Gn 2,7 entre adam e o material do qual adam foi feito, adamah (“solo, terra”) — “O Senhor Deus formou o adam, pó da adamah”. A semelhança foi sem dúvida deliberada: o adam foi formado para cul­ tivar a adamah (2,5-9); e depois a adamah é incluída na pena de

adam pela desobediência deste (o solo amaldiçoado e seu fruto exi­

gindo trabalho penoso), uma pena que durará até que adam volte à

adamah (3,7-19).12 Claramente, Paulo tinha em mente esta passa­

gem quando falou da vaidade da criação na sua sujeição à corrupção em Rm 8,20-22. Mas também podemos observar que o tema está in­ timamente ligado com o que foi dito acima (§3.2) sobre as implica­ ções da linguagem do soma de Paulo, indicando a ligação humana com o resto da criação.

9BDB, adam 2.

10A LXX traduz adam por anthropos até 2,18, depois (e em 2,16) por Adam.

n2Cor 11,3 simplesmente segue a linha da história do Gênesis; é lTm 2,14 que faz uma consideração teológica da história.

Terceiro, “a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2,9), da qual adam foi severamente proibido de comer (2,17), provocou discussões intermináveis. A interpretação mais óbvia não é que o fruto daria a Adão um conhecimento do certo e do errado, que em caso contrário lhe faltaria por completo; a própria ordem pressupõe que Adão conhecia a diferença entre obediência e desobediência.13 Parece, na verdade, tratar-se da questão da autonomia moral. O fru­ to da árvore faria o Adão pensar que ele saberia melhor, que era sábio aos seus próprios olhos, não precisando mais da dependência de Deus para a sua orientação e limites morais. Daqui a tentação da serpente: “Sereis como deuses, versados no bem e no mal” (3,5). E a atratividade da árvore para Eva: “a árvore era desejável para adqui­ rir discernimento” (3,6).14

Quarto, a advertência é que a desobediência em relação a esse ponto resultará em morte (2,17: “no dia em que dela comeres terás que morrer”). No caso o resultado é a exclusão da outra árvore men­ cionada, “a árvore da vida” (2,9.22.24), e, em conseqüência, da pre­ sença de Deus no jardim. Adão escolhe conhecer por si mesmo, inde­ pendentemente de Deus. O resultado, de fato, é a independência de Deus, mas isso significa também ser excluído do acesso à vida.

O outro lado da medalha implica que havia uma intenção divi­ na de Adão ter acesso à árvore da vida como parte da participação e responsabilidade humana na criação. A permissão explícita, “podes comer de todas as árvores do jardim” (2,16), sendo proibida somen­ te a árvore do conhecimento do bem e do mal (2,17), inclui clara­ mente a permissão de comer da árvore da vida. Também isso impli­ ca a intenção divina de que a humanidade deveria “viver para sempre” (3,22). Todavia, fica totalmente incerto se a vida eterna devia ser ganha por um consumo regular do fruto da árvore (como po­ dem dar a entender os versículos anteriores), ou se podia ser ganha

13Tennant, Fali 12-13; Lyonnet, “Sin” (§5 n. 1) 5-6.

14Que tenha sido este o modo de entender a passagem no judaísmo antigo provavel­ mente é confirmado pelo forte eco da narrativa de Gn 2-3 em Ez 28, que descreve como o rei de Tiro foi expulso do Éden (28,13.16), porque comparou sua mente à mente de Deus e pretendeu ter sabedoria (divina) (28,2-10). Também pelas versões posteriores da história: Josefo, Ant. 1.37, parafraseia Gn 2,17 como a árvore “da sabedoria (phronesis), pela qual se pode distinguir o que é bom e o que é mau”; e o Targum Neofiti traduz de maneira semelhante, “a árvore do conhecimento, e todo aquele que comer dela saberá distinguir entre o bem e o mal”. Ver discussão em G.J. Wenham, Genesis 1-15 (WBC 1, Waco: Word, 1987) 63-64.

por um único ato de comer (como pode sugerir 3,22). Essa outra ambigüidade na história mítica do Gênesis provavelmente reflete uma incerteza duradoura quanto à origem da morte. A morte sem­ pre fez parte da ordem criada, como hoje inevitavelmente devemos pensar? Ou o fato da morte indica um defeito ou falha da criação? Essas ambigüidades e interrogações permanecem parte da teologização de Paulo nessa questão, sem dúvida derivadas direta­ mente das histórias originais de Adão.

Admitido, pois, que Paulo foi diretamente influenciado pelas narrativas do Gênesis (Gn 1-3), como ainda veremos, podemos detec­ tar outras influências da longa tradição teológica judaica pré-cristã? Considerando que a passagem foi tão central na teologia cristã da “queda” (e na iconografia cristã), constitui uma cautela salutar no­ tar que as Escrituras hebraicas na verdade tomam pouco conheci­ mento da história de Adão, embora haja alusões em diversos luga­ res,15 e certamente exista um conceito de pecaminosidade universal.16 Portanto, na realidade, não é possível falar de uma tradição escri- turística judaica da “queda”, e isso deve ser notado ao examinar onde se podem identificar influências judaicas sobre a teologia de Paulo. Mas a situação muda nos escritos judaicos do período pós-bíblico (as­ sim chamado “intertestamentário”).

§4.3 Adão na tradição judaica pós-bíblica

Ben Sirac, o mais importante dos escritos judaicos deutero- canônicos, não muda muito o quadro. Na verdade, à primeira vista parece não ter um conceito real de algo que se aproxima de uma queda. Eclo 15,14: Deus “criou o homem e o abandonou ao poder da sua inclinação (diaboulion)”. Mas como 15,15 deixa claro (e apesar de Gn 6,5 e 8,21), a inclinação (yetser) não é vista como mal.17 Eclo 17,1 representa a criação da humanidade “da terra”, mas acrescenta “e fê-lo voltar a ela novamente”, ecoando Gn 3,19, sem qualquer indi­ cação de que isso foi originalmente uma palavra de julgamento. Ben

15lC r 1,1; Dt 4,32; Jó 31,33; Ez 28,12-15; Os 6,7; também Tb 8,6. Mas ver também Tennant, Fali 15-16, n. 7.

16Gn 6,5; 8,21; Tennant, Fali 101-2 refere-se a lRs 8,46; 2Cr 6,36; Jó 4,17; 14,4; 25,4; SI 51,5; 103,3; 143,2; Pr 20,9; Ecl 7,20; Jr 17,9. Ver também Fitzmyer, Paul 71-72; Merklein, “Paulus und die Sünde” (§5 n. 1) 139-42, com bibliografia na n. 46.

Sirac simplesmente nota que a vida criada por Deus era de duração limitada (17,2) e repete que Deus “os [plural] fez à sua imagem” (17,3). Mas a “inclinação” (grego) é novamente algo positivo (17,6). Sem mais destaque, Ben Sirac nota que o próprio Deus “mostrou-lhes o bem e o mal” (17,7) e “concedeu-lhes a ciência, repartiu com eles a lei da vida. Fez com eles uma aliança eterna” (17,11-12). Não é que Ben Sirac não tivesse uma idéia do pecado humano. Muito pelo contrário, como a própria passagem seguinte demonstra claramente (17,25-18,4): os humanos são pecadores e mortais. Apenas acontece que essa condi­ ção humana não é atribuída a um ato primevo de desobediência e conseqüente punição.18 Até mesmo em 40,1-11 o eco de Gn 3,19 pare­ ce ser usado apenas para servir ao pensamento de que o trabalho penoso e a expectativa da morte são a sorte comum. A morte é sim­ plesmente “a sentença do Senhor para toda carne” (41,1-4).

Há, entretanto, uma exceção a essa ênfase predominante de Ben Sirac: Eclo 25,24 — “Foi pela mulher que começou o pecado, e por causa dela todos morremos”.19 O paralelismo com Sb 2,23-24 (citado abaixo)20 e 2Cor 11,3 e lTm 2,14 (referido acima) dificilmente pode ser acidental.21 Ben Sirac conhecia (ou pelo menos baseou-se na) tra­ dição de que a morte era a conseqüência de um pecado original.22

Mais importante é a Sabedoria de Salomão. Sua relevância espe­ cial para nós está no fato de que Paulo certamente a conhecia e parece deliberadamente refleti-la na sua acusação inicial (Rm l,19-2,6).23 Na Sabedoria há claras referências à criação do primeiro humano que foi

18De maneira semelhante em 24,28; 33,10-13 e 49,16, o último dos quais traz a primeva expressão do tema posteriormente proeminente da glorificação de Adão.

190 hebraico lê: “Por causa dela morreremos yhd”, que poderia ser traduzido “... comumente”, isto é, a morte é nossa sorte comum.

20Notar também Vida de Adão e Eva - Vila 44 e Apoc. Mos. 14 e 32; também 2 Enoc 30,17.

21Discordando J.R. Levison, “Is Eve to Blame? A Contextuai Analysis of Sir. 25.24”, CBQ 47 (1985) 617-23; ver também Adam 155; seguido sem crítica por Stowers, Rereading 89,92 (não faz nenhuma referência a Sb 2,23-24); rejeitado por P.W. Skehan e A.A. Di Lella, The Wisdorn ofBen Sira (AB 39; New York: Doubleday, 1987) 348-49.

22Tennant, Fall 119-21, 244.

23Ver especialmente H. Daxer, Römer 1.18-2.10 im Verhältnis zu spätjüdischen

Lehrauffassung (Naumburg: Pätz’sche, 1914); C. Bussmann, Themen der paulinischen Missionspredigt auf dem Hintergrund der spätjüdisch-hellenistischen Missionsliteratur

(Bern/Frankfurt: Lang, 1975) 108-22; brevemente exposto em Sanday e Headlam, Romans 51-52. Sobre a forte ressonância de Sb 15,1-4 em Rm 2,4 ver meu Romans 82-83. A evidên­ cia é ainda mais interessante quando se considera que a data da Sabedoria de Salomão é muito incerta, variando entre 220 a.C. e 50 d.C. D. Winston data-à do reinado de Gaius Calígula (37-41 d.C.; ABD 6,122-23). Quanto mais tardia a data e quanto mais provável a

formado da terra (Sb 7,1) e recebeu o domínio sobre as criaturas (9,2- 3) e à transgressão (paraptoma) do primeiro formado, pai do mundo (10,1). Digno de nota é também o eco de Gn 3,19 em Sb 15,8 e a acusa­ ção em 15,11 de que o humano formado de argila “desconheceu aquele que o modelou” (cf. Rm 1,19-21).24 Mais digno de nota é Sb 2,23-24:

Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e o fez imagem de sua própria eternidade; mas por inveja do diabo a morte entrou no mundo,

prová-la-ão os que são do seu partido.

Aqui o vocabulário e as idéias formam uma caixa de ressonân­ cia para diversas afirmações teológicas de Paulo nessa área.25 As­ sim, também aqui podemos confiar que Paulo conhecia essa reflexão teológica e provavelmente se baseou nela.26

Outros textos pós-bíblicos indicam que no tempo de Paulo o pa­ pel da desobediência de Adão tornara-se fator maior na geração de explicações da condição humana. Podemos simplesmente notar a renarração da história da desobediência e expulsão de Adão em Jub. 3,17-25, com sua surpreendente, embora também característica, ela­ boração em 3,26-31.27 Os animais cessam de falar uma língua co­ mum e são expulsos com Adão.28 Mas só a Adão é “concedido... que

proveniência de Alexandria, tanto mais é de admirar o conhecimento que Paulo teve dela. Os fatos sugerem ou ampla circulação do texto nas sinagogas da diáspora ou que Paulo a conheceu quando, após a conversão, repensou sua herança judaica, em especial na sua interface com a cultura e as necessidades dos gentios.

24Bem como o eco de 15,1-4 em Rm 2,4; notar a imagem e a linguagem compartilhada do oleiro em Sb 15,7 e Rm 9,21. Como observa Levison (Adam 53), a antropologia de 15,11 é mais grega que hebraica, pois fala de uma alma que é soprada na figura de argila, e não a figura de argila que se toma alma viva (de forma semelhante Fílon, Virt. 203-49; cf.

Plant. 42 - a mente é o verdadeiro anthropos em nós).

25“Incorrupção” (aphtharsia) - Rm 2,7; ICor 15,42.50.53-54.

“Imagem” (eikon) - Rm 1,23; ICor 11,7; 15,49; 2Cor 3,18; 4,4; Cl 1,15; 3,10.

“Eternidade” (aidiotes) - Rm 1,20 (aidios). “A morte entrou no mundo”, as mesmas palavras que em Rm 5,12.

26Levison, Adam 51-52, diz que 2,24 é referência a Caim. Mas diabolos já era estabe­ lecido como referência ao oponente celeste de Deus: é a tradução regular de satan (o “acu­ sador” celeste) na LXX (2Cr 21,1; Jó 1-2; Zc 3,1-2) e também aparece por “Mastema, o chefe dos espíritos” hostil a Deus no fragmento grego de Jub. 10.8. O tema da “inveja” faz parte da tentação da serpente em Apoc. Mos. 18.4, e “inveja” é a explicação para a malícia da serpente em Josefo, Ânt. 1.41. E se a morte for pensada como morte eterna (Tennant,

Fali 124-26; Levison), então cabe a idéia da morte como exclusão da árvore da vida (Gn 3),

e não é referência ao assassínio de Abel por Caim.

27Geralmente se considera que Jubileus é de meados do século II a.C.

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