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importância do futuro, mas o etos pós-moderno do hic et nunc (LIPOVETSKY, 2004, p. 72).

2.4. Pós-humanismo, Hedonismo, Narcisismo

É provável que não tenhamos deixado de acreditar no futuro, nem abandonado definitivamente as utopias (embora haja tanta distopia e a investida niilista), mas agora estamos às voltas com utopias mais do que estranhas, como a que professa a ultrapassagem do humano, e festeja a chegada da era do Pós- Humano e do Além-do-Homem.

Essa abordagem se ancora numa aproximação de Foucault, Nietzsche e Deleuze. A explicação que flui dessa convergência é a de que a humanidade viveu três fases – a forma-Deus, a forma-Homem e a forma-Além-do-Homem. A primeira coincide com o período medieval e é relativa à formação histórica dos séculos XVII e XVIII europeus, na qual o composto “forças no homem” e “forças de fora”, passavam pela figura de Deus. (SANTOS, 2003c, p. 288). A segunda é o composto que resulta da relação das forças no homem com outras forças de fora, forças da finitude, a as forças da vida, do trabalho e da linguagem, que darão lugar às disciplinas científicas como a Biologia, a Economia Política e a Lingüística (p. 189). É isso que coincide com a Modernidade. A terceira fase é a que estamos vivendo agora, relativa a uma nova formação histórica, na qual uma nova forma – nem Deus, nem homem – estaria sendo consolidada. É a era do “Além-do-Homem”.

Uma das variantes da interpretação desta novíssima gramática faz a projeção de um futuro no qual nos tornaríamos não-humanos ou pós-humanos. O humano seria dissolvido e superado pelas máquinas inteligentes, com possibilidades não apenas de “scannear” e “downloadear” a inteligência humana para a máquina, mas especialmente de estas estarem aptas a se auto-reproduzirem, sem qualquer interveniência humana (SANTOS, 2003c).

É uma utopia paradoxal que vislumbra a salvação do humano pela sua superação, apostando todas as fichas nas Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTIC’s). Neste sentido, os novos relatos nos informam:

Vivemos uma nova conjuntura espaço-temporal marcadas pelas tecnologias digitais-telemáticas onde o tempo real parece aniquilar no sentido inverso à

modernidade, o espaço de lugar, criando o espaço de fluxos, redes planetárias pulsando no tempo real, em caminho para a desmaterialização do espaço de lugar (LEMOS, 2003, p.14).

Ora, de fato, como nos indica SANTOS (2001) a partir da explosão nuclear, em 1945, a produção industrial trabalha cada vez mais intensamente com substâncias invisíveis, em um nível de realidade que não é captado pelos nosso cinco sentidos humanos; mas em nível micro, molecular, no qual as transformações também se dão de um modo invisível.

A tecnologia começa a desmanchar as relações com a terra, com a cidade, e, por atuar no campo molecular, infra-individual, até mesmo os laços mais íntimos dentro das próprias pessoas – a ponto de pôr em xeque a própria noção de indivíduo, uma vez que as pessoas passam a não saber mais o que é ou não humano, o que é humano e o que é animal. Começam a surgir figuras híbridas chamadas ciborgues ou andróides, começam a aparecer figuras que são animais com genes de plantas, coisas desse tipo (SANTOS, 2001, p. 30-31).

No entanto, ainda que haja uma perspectiva niilista que “põe a mão na massa” na desconstrução do humano e em sua ultrapassagem, também há processos que se voltam para sua tematização, no sentido de reorientação da experiência humana. As discussões de superação do humano – incluindo o Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway (HARAWAY, 2000) – parecem querer se converter em um novo metarrelato, senão na liturgia de uma nova forma de religiosidade: a religião do transhumanismo. É nesta direção que Erick FELINTO (2003) aponta.

Para ele podemos encarar o tema do transhumanismo “como um vasto mitema, a partir do qual se elaboram diversos discursos sobre a superação das limitações tipicamente humanas” (p. 24). E ele vai mais adiante, apontando não apenas como as novas referências podem se converter em novos metarrelatos, mas, além disso, em uma espécie de nova religião:

(...) qualquer investigação mais atenta sobre o imaginário do transhumanista, ou mesmo da Cibercultura em sua totalidade, não terá dificuldade em encontrar as diversas referências mítico-religiosas que balizam seus discursos, apontando continuamente para o impulso de transcendência que parece fundamentá-los. As fantasias de superação dos limites corporais, da ubiqüidade das subjetividades tecnológicas ou da digitalização do self, entre outras, apontam para um desejo de fuga, de escape do tempo e do espaço presentes, mas desejo também de controle, de manipulação de realidade, de domínio sobre si e o mundo. Nesse contexto, transcendência deve ser entendida como ultrapassagem das limitações típicas da condição humana, como libertação das amarras

corporais visando a uma experiência de subjetividade de natureza espiritual (p. 25).

É como se houvesse um enorme ressentimento amparando uma nova utopia de libertação, desta vez da corporeidade, da materialidade e de tudo o que nos vincula umbilicalmente à Terra, à natureza e a seus condicionamentos.

Em um pequeno livro chamado A Ilusão Vital, Jean BAUDRILLARD (2001) discute esta questão. Para ele questões como a da clonagem, por exemplo, têm a ver com a fantasia da imortalidade, de superação da imortalidade como a última fronteira dos limites que herdamos, aos quais daríamos agora, com a ajuda dos novos aparatos tecnológicos, uma solução final.

Ele diz que “cegamente, sonhamos em sobrepujar a morte por meio da imortalidade, quando o tempo todo, a imortalidade é que é o mais terrível dos destinos possíveis” (p. 12); e nos lembra que o câncer é exatamente proveniente de uma célula que não quer morrer. E o problema de hoje não é unicamente fraturar as durezas de ordem da modernidade; mas é essa insistência em desfazer, de forma involucionária, o que se construiu no processo evolutivo, incluindo aí a própria mortalidade, mas também a divisão dos sexos, a constituição do corpo, as contribuições teórico-conceituais, etc. É como se a humanidade tivesse chegado a um ponto em que não pudesse mais suportar a si mesma.

Tudo isso decorre de um fato estranho: aparentemente, a raça humana não pode suportar a si própria, não pode se reconciliar consigo própria. Paralelamente à violência que ela dirige aos outros seres vivos existe uma violência peculiar à humanidade, que ela dirige contra si própria (...). Como se, sempre se sentindo orgulhosa e convencida de sua superioridade, a humanidade ainda assim se ressentisse do processo evolucionário que a elevou à sua posição privilegiada e a impulsionou, de alguma maneira, além de seus limites naturais sob a forma de espécie (BAUDRILLARD, 2001, p. 24-25).

Reconhecer que é impossível separar homem e máquina nos dias de hoje – e desde que ele ergueu-se com seu machado de pedra e sua linguagem – parece- nos um dado irrefutável. Afirmar a humanidade como essencialmente maquínica nos parece razoavelmente necessário. Mas é importante não somente comemorar o primor da tecnosfera ou ressentir-se com nossa condição corporal: é primordial saber para onde apontam as novas liturgias e o que elas esquecem ou escondem.

Além do campo das tecnologias também no campo das artes (que cada vez sabem menos de si, desde que Marcel Duchamp apareceu com seu urinol

intitulado “A Fonte” e assinado “R. MUTT”, conforme SANT’ANNA, 2003), surgem performances em que há uma investida sangrenta contra o corpo, compondo uma arte do limite, como um novo tipo de banquete bizarro, regado a dor (destes que a TV está acostumada a nos vender em sangue vivo).

Tais novidades não podem apenas ser levadas a sério como sendo as mais novíssimas sensações postas para o consumo: é preciso que sejam encaradas como a expressão de uma ira que investe contra uma materialidade corporal do humano. Ora, a condição corporal continua a ser discutida nestas abordagens como se fosse um suplemento a ser purgado, uma vez que representa um acidente evolutivo, que agora estaríamos em vias de corrigir (FELINTO, 2003, p. 28).

Essa correção faria com que o componente da “inteligência” e da informação passasse a presidir a nova fase evolutiva. Em tal perspectiva o cyborg é encarado (pelo menos em termos político-ficcionais) como o último elo na linha evolutiva macaco-homem-cyborg. Este configuraria o devir da espécie humana, assim como o macaco configurou o seu passado” (SANTOS, 2003c, p. 278).

As tentativas de nos livrarmos de nós mesmos, de nossa condição mortal, corporal e terrestre, além de alimentar sonhos de nos ver livres do corpo (tido como essa carga desnecessária), também alimenta sonhos de um dia podermos ir morar em qualquer parte do universo, nos livrando de vez da “acanhada” vida na terra, como destaca ARENDT (2000). Esta é uma forma luxuosa de ressentimento, que somente alguns poderão sustentar.