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TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. (João Cabral de Mello Neto)

Embora no poema acima, “Tecendo a Manhã”, do poeta João Cabral de Mello Neto, a palavra rede não se encontre, de fato é de uma rede que ele nos fala. A vida se faz em redes (não apenas pelas “redes de dormir”, tão comuns entre os sertanejos): redes de consumo (como as que impulsionaram as Grandes Navegações e a “descoberta” dos novos mundos), redes sanguíneas e de parentesco, redes de compromissos e práticas tradicionais...

O pensamento também se faz em redes, e neste sentido Mirian Celeste MARTINS (1997), nos diz:

Frente à tarefa de escrever este texto meu pensamento pula de conceito para conceito, de autor para autor, de faltas percebidas claramente para certezas nebulosas. Abro muitos livros, em marcas já antigas. Busco textos escritos por mim, com a certeza de que já havia pensado/escrito sob determinado aspecto, mas leio apenas indícios de que o tema já me preocupava anteriormente (p.21).

Este é um movimento do pensar, mas é também um movimento da vida que todos nós fazemos, não apenas quando nos pomos à tarefa da escritura, mas quando no colocamos na marcha da própria vida.

Em particular, o conhecimento é sempre uma tessitura. MARTINS vai nos indicando como a idéia que o conhecimento é algo que “é”, que “existe” e que, aos poucos, vamos “tomando posse” dele, está sendo desbancada pela idéia de que o

conhecimento é algo que construímos por percursos muito diferenciados, ou seja, o conhecimento não está pronto e ponto; ele está em construção sempre, e nesse processo ele é constituído de pedaços de muitas coisas, cuja teia é singularizada por cada construtor do conhecimento; e ele é, no final, um traçado que inventamos, ligando fiapos de conceitos, fragmentos de teorias, leituras e anotações; rascunhos e idéias que abandonamos, outras nas quais esbarramos e recuamos...

Como a vida, o conhecimento é também atravessado por convenções e por “precipitações de acontecimentos”, que cruzam os trajetos que convencionamos traçar, por força da própria vida tecendo seus percursos e se fazendo em suas teias.

Digamos que a construção da RESAB – mas especialmente a construção de um “pensar” sobre a RESAB e o seu trabalho – é esta arte de criar outras redes de sentido. Por isso, vamos anteceder à descrição do percurso de constituição da RESAB e do seu trabalho, uma abordagem sobre o que estamos chamando de rede; sobre o que se tem dito a respeito da interação em rede, ou da forma como a palavra rede hoje povoa uma vasta literatura relativa aos “novos” modos de organização dos “novos” movimentos sociais.

Evidentemente que para ser coerente como os próprios modos recentes da organização da vida, nesta sociedade cruzada de tantas indefinições e incertezas – como já apontamos nos capítulos anteriores (especialmente no segundo capítulo) – a palavra rede já vem crivada de um conjunto de mudanças conceituais e práticas, sobre as atuais características organizacionais da sociedade e dos próprios movimentos sociais.

Atualmente existe uma espécie de ufanismo em relação às novas tecnologias, como se estas, finalmente, fossem redimir nossa vã existência, crivada de tantas contradições. Alguns/mas – como já dissemos – se arvoram a afirmações vibrantes de que estamos, enfim, vivendo uma democracia planetária, uma democracia eletrônica, uma cyberdemocracia e uma cybercidadania, como hoje apontam muitos autores e pesquisadores. Os mais empolgados vibram com a suposta dissolução do espaço de lugar a partir da chegada das tecnologias sem fio (wi-fi), e com a virtualização da vida, como é o caso de LEMOS (2003), entre outros, como foi discutido no segundo capítulo.

Mas é importante considerar que as redes sociais ou de movimentos sociais nascem antes (e muitas vezes distantes) destes deslumbramentos com a tecnologia eletrônica. A rede é, antes, uma mobilização de disposições, de lutas que

vão se conectando. A rede eletrônica das tecnologias digitais e da informática é apenas uma realidade, ou parte da realidade das redes que intensifica o ritmo das conexões e diversifica seus formatos. Portanto, é evidente e insofismável que aquilo que nomeamos como “novas tecnologias da informação e da comunicação” constitui os novos processos de organização da sociedade e da própria luta popular e de suas interações. Mas a complexidade e as dinâmicas destas interações não podem ser reduzidas aos “meios” – apesar da assertiva de McLUHAN (2003) de que “o meio é a mensagem”.

Em escritos reunidos sobre esta temática, LEON, BURCH e TAMAYO (2001), discutem os Movimentos Sociais em Rede e consideram o papel das “novas tecnologias”, particularmente da Internet, compondo os novos mapas e modos organizacionais dos movimentos sociais. No entanto, além de destacarem a importância dos novos meios tecnológicos, eles destacam também a força organizativa dos próprios movimentos sociais, cuja integração ou a “congregação” é movida antes por lemas e bandeiras comuns, como o lema “um outro mundo é possível”, vinculado ao “movimento altermundista”, que faz acontecerem os Fóruns Sociais Mundiais, iniciados em Porto Alegre, RS, Brasil, em 2001.

Redes há muitas e com diversificados propósitos, mas aquilo que caracteriza os “movimentos sociais em rede”, não é apenas o uso da tecnologia, mas é antes a adoção de valores comuns, partilhados, pelos quais tais movimentos se põem em ação e em comunicação: em “movimento” e em rede.

As redes ligam sujeitos e instituições diversas, que atuam em âmbitos também diferenciados, desde a formação técnica de pequenos agricultores com base em “tecnologias apropriadas”, até as ações no campo dos direitos humanos (erradicação do trabalho escravo e exploração do trabalho infantil, direitos das crianças e adolescentes, das mulheres, ou dos grupos minoritários, etc.), vinculando tais ações à perspectiva da construção de “um outro mundo possível”, ou não.

Tais ações e articulações não se dão necessariamente intermediadas pelos “novos” aparatos tecnológicos – a não ser que consideremos a expansão dos usos destes “novos” meios para todos os âmbitos da vida. Mas as articulações dos movimentos sociais em torno de causas e pautas comuns podem contar com variados outros instrumentos, entre eles, claro, os “novos meios eletrônicos”. Outros arranjos considerados ultrapassados, como o telefone, o fax, o aviso no programa

de rádio, o boletim impresso, o recado por portador, etc. ainda são bastante utilizados na realização de uma comunicação “em rede”.

Neste caso, a existência de redes – entendidas como o tipo de comunicação, de “conexão”, que permite um trabalho colaborativo entre variados atores sociais, individuais e coletivos, em torno de causas convergentes – não é algo que está restrito ao surgimento das chamadas NTIC’s, que em geral deixam de fora do “novo” as “velhas” tecnologias analógicas. As redes são antes os modos de “articulação”, que muitas vezes até prescindem do aparato jurídico-formal. Nesse sentido, a rede não é o complexo de aparatos, mas o complexo das articulações.

Enquanto “complexo de articulações”, uma rede ganha materialidade pelos resultados produzidos, mas em si mesma ela pode não ser uma materialidade. Ela possui pontos de ancoragem, embora por ser uma espécie de imaterialidade, ela é também um não-lugar. Como os cantos de galo que levantam a manhã, uma rede é o que liga, vincula, conecta. É, por fim, um espaço de fluxos: “onde entrem todos”.

Essas novas palavras são geralmente utilizadas quando estão em questão modos de comunicação mediados pelas tecnologias informáticas – aliás, esta idéia de “não lugar” ou de “espaço de fluxos” é própria das análises relativas o mundo da era informática e digital, da cybercultura, etc. Mas, levando em conta que as “articulações”, as redes são anteriores a esta realidade, reivindicamos o direito falar de “espaço de fluxos” e de “não-lugar”, em realidades em que não há a interação informática, mas há de fato rede e interação.

Parece ser nesta direção que Manuel CASTELLS (1999) nos aponta em A Sociedade em Rede. Ele traz uma definição curiosa e ampla do que é uma rede.

Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta. Concretamente o que um nó é depende do tipo de redes concretas de que falamos. São mercados de bolsas de valores e suas centrais de serviços auxiliares avançados na rede de fluxos financeiros globais. São conselhos nacionais de ministros e comissários europeus da rede política que governa a União Européia. São campos de coca e de papoula, laboratórios clandestinos, pistas de aterrissagem secretas, gangues de rua e instituições financeiras para lavagem de dinheiro, na rede do tráfico de drogas que invade as economias, sociedades e Estados no mundo inteiro. São sistemas de televisão, estúdios de entretenimento, meios de computação gráfica, equipes para cobertura jornalística e equipamentos móveis gerando, transmitindo e recebendo sinais na rede global da nova mídia no âmago da expressão cultural e da opinião pública, na era da informação (CASTELLS, 1999, p. 498).

Embora grande parte dos “tipos” de rede dos quais Castells fala envolva o uso das chamadas “novas tecnologias”, há ainda um grande número delas que prescindem deste uso. Certamente a rede internacional do narcotráfico (os campos de coca, laboratórios clandestinos, pistas de aterrissagem secretas, gangues de rua e instituições financeiras que formam a rede do tráfico de drogas que invade as economias, sociedades e Estados no mundo inteiro) não precisou esperar o surgimento da Internet ou da conectividade “sem fio” para que se estruturassem e operassem. E certamente nem operam majoritariamente por meio destes “novos” meios (exceto o uso da telefonia celular). O fato é que esta rede é outra e não pode ser reduzida ao uso que faz (ou não) das tecnologias da comunicação informática. Usá-las é apenas um detalhe, por mais importante que sejam nos dias de hoje. Está claro que uma rede se compõe de outros elementos, além do instrumental tecnológico no qual se apóia – e são exatamente estes outros elementos que definem uma “conectividade” entre diversos sujeitos e grupos implicados numa rede, independentemente de utilizarem computadores, motocicletas ou jumentos.

Em geral somos levados a analisar apenas os elementos informáticos, movidos por uma espécie de ufanismo que mais cega do que ilumina. O fato de a sociedade funcionar cada vez mais em redes – de acordo com Manuel CASTELLS (1999) – esse fato não nasce com as “novas tecnologias” e, portanto, as redes não são uma qualidade apenas do presente tecnológico. No passado também existiram complexas redes de intercâmbio, desde as de parentesco, passando pelas redes de escambo e comércio, de trocas materiais e simbólicas; até as redes de práticas marginais, formadas de foras-da-lei e utópicos, presentes em todas as fases históricas de nossa imperfeita humanidade. Nesta direção Hakin BEY (2004) começa suas anotações sobre TAZ (Zona Autônoma Temporária):

Os piratas e corsários do século XVIII montaram uma “rede de informações” que se estendia sobre o globo. Mesmo sendo primitiva e voltada basicamente para negócios cruéis, a rede funcionava de forma admirável. Era formada por ilhas, esconderijos remotos onde os nativos podiam ser abastecidos com água e comida, e os resultados das pilhagens eram trocados por artigos de luxo e de necessidade. Algumas dessas ilhas hospedavam “comunidades intencionais”, mini-sociedades que conscientemente viviam fora da lei e estavam determinadas a continuar assim, ainda que por uma temporada curta, mas alegre (p.11).

É nesta direção que pretendemos re-animar o temo rede, com outros ingredientes além daqueles que dizem respeito somente às “novas tecnologias”.