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09/10/18

A união dos meus amigos, a união de quem fecha comigo. De quem não arreda o pé e que entende a urgência dos tempos de urgência, de quem compreende a gravidade de quando há gravidade. Que não minimiza a dor fundamentada do outro e que lança, do outro lado do penhasco, embaixo do qual se vê um abismo, a corda da empatia. Eu sou filha única, mas hoje me sinto com alguns irmãos. Se há uma coisa que desenha uma fina camada de proteção em minha volta e que me dá motivo de criar em meio ao deserto, de persistir em meio ao medo, são os meus irmãos. A música também é minha irmã. A literatura também é minha irmã. Elas me acompanham, me refletem e, vez ou outra, quando não há resposta tangível e sobretudo quando há muita angústia, lançam réplicas incertas na maior parte das vezes de um passado terrível. No tempo cíclico, eu uso esses espelhos para os dois sentidos do verbo refletir.

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Não se deve crer que o Diário se opõe à obra e que não é, ele também, uma obra de arte.

Há frases que estão a meio-caminho entre a confissão e a criação; só falta inseri-las num romance,

e já serão menos sinceras (ou melhor:

sua sinceridade conta menos que uma outra coisa, que é o prazer de as ler).

Eu até diria o seguinte: não é o Diário de Édouard

ao contrário,

muitas enunciações do Diário de Gide já têm a autonomia do Diário de Édouard. Já não são totalmente Gide;

começam a estar fora dele, rumo a alguma obra incerta onde desejam tomar lugar, que elas estão chamando.167

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Em outubro de 2018, redigi o seguinte texto para o corpo do evento de uma das festas que o coletivo Folklore, de que faço parte, promoveu. Essa festa ocorreu um dia antes do segundo turno das eleições de 2018:

Toshiro, apegado a causas esquecidas, certa vez arriscou dizer, com sua sabedoria desoriental: - Criem cada um o seu próprio Folklore e, acima de tudo,

não se desconectem dos amigos,

aqueles que se reúnem em formas não geométricas, que abrangem o desentendimento,

mas em que uma igualdade é capaz de se manter. Os pequenos círculos que começam secretos,

nos tempos de polaroidização apolítica e de hierarquia pós-apocalíptica, o importante é que em algum momento uma certa igualdade possa se manter. Não se esqueçam da eletricidade que junta olhares quase fechados

ou às vezes abertos demais entre duas pessoas diferentes,

a fagulha que acende independe disso ou daquilo e simplesmente não se explica. Lembrem disso.

Não se esqueçam da dança desenfreada como se ninguém estivesse vendo, de um abraço com muita entrega.

Da música com muita entrega.

Música desenfreada, pós-apocalíptica e que de vez em quando

transmite mensagens de afeto e de riso de algum outro planeta. Isso tudo é capaz de agrupar uma certa atmosfera,

uma certa união instável, vulcânica,

uma pequena comunidade munida de sua própria potência, como uma criança que aprendeu a andar e depois a correr. O importante é, disse Toshiro,

que em meio ao caos ainda assim seja possível agrupar dentro de si na memória (e, quem sabe, transmitir mais tarde)

Diário do medo

Our task is to make trouble, to stir up potent response to devastating events, as well as to settle troubled waters and rebuild quiet places.168

15/10/2018 Num determinado momento de Les Faux-monnayeurs, Olivier deixa dolorosamente o amigo Bernard ir embora de sua casa, depois de uma noite juntos em que o primeiro oferece sua cama para que o segundo tivesse onde dormir, depois de ter abandonado a própria família e o conforto do lar. A despedida e a preocupação com o amigo, o qual se confunde de forma delicada e latente com um amante, lhe corroem o coração, sentimento que é temporariamente substituído pela efusividade em reencontrar o tio Édouard, que Olivier recebe numa estação:

Olivier s’était mal levé ce matin. La tristesse qu’il avait eue à son réveil, de ne plus voir Bernard à son côté, de l'avoir laissé partir sans adieu, cette tristesse, un instant dominée par la joie de retrouver Édouard, montait en lui comme un flot sombre, submergeait toutes ses pensées. Il eût voulu parler de Bernard, raconter à Édouard tout et je ne sais quoi, l'intéresser à son ami.169

Eu me levantei mal essa manhã. Dormi acompanhada pelo sentimento de aflição, acordei três vezes durante a noite, tive um sonho absurdo. Não procurei lembrar-me do

168 HARAWAY, D. Staying with the trouble, p. 1.

169 "Olivier se levantara mal de manhã. A tristeza que tivera ao acordar, de não mais ver Bernard a seu lado,

de tê-lo deixado ir-se embora sem adeus, essa tristeza, por um instante dominada pela alegria de reencontrar Édouard, subia nele como uma vaga sombria, submergia todos os seus pensamentos. Gostaria de falar de Bernard, contar a Édouard tudo e mais alguma coisa, fazê-lo interessar-se pelo amigo". GIDE, A. Les Faux-

que sonhei, mas simplesmente abandonar meu insólito devaneio noturno. Entrei no mundo real com muito calor, sentindo o peso da minha gata que dormia em cima de mim. A tristeza que me acometeu quando levantei, por não vislumbrar qualquer possibilidade de segurança para me manifestar da forma que desejo na rua, por sentir a frágil democracia brasileira se diluindo sem nem mesmo dizer até breve, um instante dominada pela alegria de reencontrar meus amigos do coletivo e refletir sobre nossa próxima festa, se ergue de novo dentro de mim como um fluxo sombrio e submerge meus outros pensamentos.

Assim como a onda sombria que se intercala com outros sentimentos, no excerto de Les Faux-monnayeurs, o ritmo frasal do texto acompanha essas ondas. Ele também conjuga ideias contrapostas e as faz coexistir num mesmo período separado por vírgulas: a tristeza é justificada, depois afastada brevemente pelo reencontro com Édouard, para reaparecer ao final da sentença, fazendo todo o resto submergir, como uma verdadeira onda. Existe um ritmo da linguagem que é capaz de penetrar nas ideias, configurá-las, trazer o seu movimento à tona, acima de tudo, para os ouvidos.

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Notas do metrô de Paris depois de ler King Kong Théorie, de Virginie Despentes

Abril 2018 Ao contrário do que algumas pessoas efetivamente pensam sobre Paris no Brasil, eu não me senti segura aqui todo o tempo. Muito pelo contrário. É evidente que a irradiação dessa sensação de segurança ocorria em algumas situações e que pude fazer determinadas coisas que não faria morando no centro de São Paulo (por exemplo, voltar

sozinha para casa de madrugada, a pé). Mas inúmeras vezes me senti ameaçada, sobretudo no metrô, em que as pessoas dispunham de um pouco mais de tempo paradas de olhos abertos observando as outras, ainda que, de forma geral, os parisienses raramente se entreolhem. Eu quase sempre entrava no metrô de óculos escuros, não pelo carão (talvez um pouco pelo carão), mas pela proteção que eles ofereciam ao meu próprio olhar.

Me senti ameaçada por certos olhares enviesados por parte de homens, olhares que nem sempre pareciam denotar o desejo, mas talvez o julgamento, a estranheza ou a raiva pela minha forma de me vestir (muito masculina talvez), pelo meu corte de cabelo, pela indefinição na evidência se, em meu caso, trata-se de um homem ou de uma mulher. Isso é, ao mesmo tempo, uma paranoia minha e a experiência a partir dos perigos reais, fundamentados em violências reais e numa cultura sexista real.

Homens velhos pareciam não gostar de mim.

Já os mais jovens pareciam me encarar como uma espécie de desafio que seria preciso superar.