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2016 Fazer um pastiche é como dançar uma música – submeter-se a um ritmo fora de si, ao ritmo de outro, sem que isso necessariamente implique uma violência, uma submissão, uma regularidade que atropela a singularidade de um corpo. Imitar o ritmo: uma submissão preenchida pela própria presença, uma imitação sincera. Algo também que opera na profunda solidão, no profundo alinhamento consigo mesma (estou em casa, minha

roomate saiu para uma peça, estou sozinha ouvindo música, preenchida pelas minhas

próprias ideias, pela minha própria escrita, pelo ritmo de um outro – há presença?). O pastiche – aquele que não é só um exercício de menor relevância, uma formação rumo ao verdadeiro estilo autoral, um transporte passageiro na direção de um destino mais nobre, tal como normalmente é lido – passa por isso. É também um profundo exercício de imaginação, como dançar é uma estadia em um outro mundo, no qual, ao mesmo tempo, se imagina e temporariamente vive-se aquilo que se está imaginando.

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Eu gosto de tudo aquilo que, num texto, me lembra que há uma pessoa ali, em algum lugar:

1. Partes inacabadas

170 HARAWAY, D. "Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva

2. Repetições

3. Costuras malfeitas ou inexistentes 4. Rupturas

5. Surpreendentemente, o pronome eu 6. Ritmo

7. Associações pouco evidentes em relação ao lugar comum ou em relação a um campo discursivo mapeado

8. Vírgulas, para respirar

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(mas afinal o que é a presença, o que é o próprio, o que é um corpo, o que é a singularidade, a sinceridade,

onde está a imitação?)

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Quando eu não sei como discutir referências demasiado importantes para mim, uma opção é torná-las parte estruturante do trabalho – seja como título, seja como fusão pela escrita. Talvez porque algo fundador não caiba somente na operação convencional da citação e subsequente discussão, operação de que também esta tese está repleta.

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Duas frases:

A primeira delas, de Les Faux-monnayeurs: ce sentiment est si nouveau pour moi

qu’il n'a pas encore su inventer son langage.171 A outra, que imediatamente é invocada pela primeira, foi proferida por uma professora e colega para quem eu contava, num café ao

171 “Esse sentimento é tão novo para mim que ainda não soube inventar a sua linguagem.” Les Faux-

lado da BNF, que, ao longo da tese de doutorado, havia me tornado DJ, e que essas duas práticas se relacionavam entre si de forma associativa e livre. Ela sorriu e disse: tu devrais

inventer quelque chose.172

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Num excerto de Le Traité du Narcisse, de Gide, lemos o seguinte:

À force de les contempler, il ne se distingue plus de ces choses : ne pas savoir où l'on s'arrête – ne pas savoir jusqu'où l’on va ! Car c'est un esclavage enfin, si l’on n’ose risquer un geste, sans crever toute l’harmonie. – Et puis, tant pis ! cette harmonie m’agace, et son accord toujours parfait. Un geste ! un petit geste, pour savoir, - une dissonance, que diable ! – Eh ! va donc ! un peu d'imprévu.173

O conteúdo do excerto sugere tédio em relação à harmonia, à previsibilidade dos sistemas, à ausência de riscos e do perigo, à perfeição. Trata-se de um desejo ardente pelo desacordo, pela dissonância, que termina com a expressão que diabos! O tema desse trecho dirige-se todo à ânsia pelo imprevisto. Mas a sua forma é também inteiramente entrecortada pelos traços e pela pontuação: é uma forma que não se desenrola com fluidez, segundo os operadores da língua que permitem o desdobramento do pensamento e o ocultamento de suas rachaduras, os operadores que condicionam a linearidade. Em algum sentido, é uma forma que prioriza o sobressalto e os cortes, as pausas e a imprevisibilidade, e que não deixa de conter a sua própria respiração. Vale ainda dizer que

172 “Você deveria inventar alguma coisa”.

173 “À força de as contemplar, ele não se distingue mais dessas coisas: não saber onde se para – não saber

até onde se vai! Pois é uma escravidão, enfim, se não se ousa arriscar um gesto sem arruinar toda a harmonia. – E depois, tanto faz! Essa harmonia me irrita, e seu acordo/acorde sempre perfeito. Um gesto! Um pequeno gesto, para descobrir, – uma dissonância, que diabos! – É! Que seja! Um pouco de imprevisto”. GIDE, A. Le

esse Traité du Narcisse se manifesta como um pastiche simbolista dedicado a Paul Valéry. Mas é, junto do pastiche, também um Tratado do Narciso André Gide; reemergem, de forma intrusa, inúmeros traços do próprio Gide no decorrer da escrita que se propõe a falar como seu mestre. Essa presença, que deixa rastros, sobressai sob a forma de pequenas imperfeições, do truncamento e da imprecisão na pretensa fluidez do pastiche.

É possível ouvir, em Gide, uma constante dissonância que não se resolve, não importa a fase em que apareça, o contexto em que esteja inserida, nem mesmo a idade do escritor – ela brota desde os escritos da mais precoce juventude, atravessa os períodos conturbados, o engajamento, a militância, o escândalo em torno da sexualidade, a incessante autoafirmação e ainda sobrevive no horizonte mais pacífico de sua velhice, ainda quando Gide deseja acima de tudo deixar-se fluir um pouco. Em outro momento do

Traité du Narcisse, lemos: le paradis est toujours à refaire.174 A imperfeição é o gatilho para o movimento, para o tropeço no qual se torna possível criar e se reajustar; o erro é precisamente a ocasião em que se coloca alguma coisa no mundo.

As falhas são, assim, aquilo que produz a possibilidade de intervir. Em vez de simplesmente seguirmos nos enrijecendo no desgosto em relação àquilo que não concebemos como o paraíso (o que é, diga-se de passagem, o movimento mais comum, sobretudo por parte da crítica e de uma parcela da militância das redes sociais que está em voga),175 as falhas e os erros são a fresta aberta à intervenção – primeiramente, com a leitura de que há algo a se ajustar, o que não necessariamente é dado; segundo, com a possibilidade de, a partir disso, construir outra coisa, rosquear o parafuso um pouco mais para lá ou para cá, colocar-se. É evidente que isso não é fácil ou aproblemático em qualquer

174 “O paraíso precisa sempre ser refeito”, Ibid., p. 20.

contexto, e reconheço que os caminhos tendem a se fechar. Mas trata-se ainda, trata-se continuamente de

apropriar-se da potência

contida na igualdade entre os seres falantes, fundamentar uma subjetividade

na viabilidade do erro; no trajeto, na viabilidade da escuta.

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Este texto – o fluxo de seu pensamento, a perseguição constante que sinto, o grande fantasma que este texto significou durante anos, em sua complexidade, na profunda angústia, em todas as suas nuances, na pura transformação (mudar) – é uma das melhores experiências da minha vida.