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I LEGALIDADE : AS REGULAÇÕES E A EXCLUSÃO TERRITORIAL

“As constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias são fenômenos correntes em toda a história da América do Sul” (Holanda, citado por MARICATO, 1996, p.55).

MARICATO (2001) ressalta que no Brasil a lei pode ou não ser aplicada, dependendo da correlação de forças que existe em cada caso específico. Geralmente faltam critérios para elaborações e aplicações, e são utilizadas conforme convém a uma sociedade patrimonialista e clientelista e, no caso das favelas, como convém ao mercado imobiliário formal – se as ocupações se dão em terras particulares, interferindo nos interesses econômicos e políticos, a lei pode ser uma; se as ocupações estão em áreas públicas, desvalorizadas pelo mercado imobiliário formal, a lei pode ser outra.

Cabe ressaltar que a legislação detalhista e rigorosa contribui para a prática da corrupção, e constitui exemplo de contradição entre a cidade do direito e a cidade do fato, pois a lei do mercado é mais eficiente que a lei reguladora oficial. Para terras ocupadas por pobres não há lei – a não ser quando incomodam os ricos. Para terras ocupadas pela classe mais alta, existem leis, mas permeadas por corrupção, falta de fiscalização e troca de favores.

ALFONSIN & FERNANDES (2003) salientam que esse ”caldeirão” urbano – segregação espacial, ilegalidades, violência, desigualdades, enfim, todos

os problemas urbanos vistos principalmente nestas duas últimas décadas do século XX e no início do XXI – é regulado por duas forças historicamente aliadas, sendo a primeira o mercado imobiliário e sua lógica mercantilista erigidas sobre os sólidos alicerces da propriedade privada, retificada pelo Código Civil; e a segunda, a combinação da gestão e legislação da ordem urbanística voltadas exclusivamente para os interesses das elites.

O desenho das cidades, marcadas por segregações e grandes desigualdades, não ocorrem por acaso; são resultados de disputas ocorridas por classes sociais e pelo espaço na cidade. A lógica dessa dinâmica de ocupação e urbanização do território exclui a população carente da possibilidade de acesso, através do mercado formal, da terra e da moradia, que, sem outra opção, ocupa terrenos ociosos para poder exercer o “direito de morar", enfrentando a insegurança quanto à permanência e à precariedade das condições urbanas locais. Conforme VILLAÇA (1998, p.150), ”a segregação é um processo necessário à dominação social, econômica e política por meio do espaço."

Apenas uma pequena porcentagem das ocupações por favelas se dá em áreas privadas, rejeitadas pelo mercado imobiliário. As favelas geralmente se localizam em áreas públicas situadas em regiões desvalorizadas, como beiras de córregos, encostas de morros, terrenos sujeitos a enchentes, áreas de proteção ambiental, onde a vigência de legislação de proteção combinada com a ausência de fiscalização definem a desvalorização. São áreas carentes de investimentos públicos, pois muitos políticos utilizam o argumento da necessidade de legalização para depois proceder à urbanização.

Assim, os investimentos públicos são concentrados em bairros de classe média e alta, onde o poder político e econômico dominam, e ideologicamente essa região começa a se identificar como a cidade. Conforme Fernandes, citado por MARICATO (1996, p.57), ”os excluídos são necessários para a existência do estilo de dominação burguesa que se monta dessa maneira.”

A maior parte das habitações produzidas no Brasil se deu de maneira informal, e pior, durante toda a história, o Estado não se colocou contrário a todo esse sistema que sempre excluiu muitas pessoas, principalmente através de legislações que privilegiaram a propriedade privada individual, indo na contra- mão da função social, contribuindo para a acumulação de capital, incentivando o

mercado imobiliário e omitindo-se de seu papel de intermediador nas questões habitacionais, inclusive facilitando o processo de ocupações.

Segundo SMOLKA (2003), as ocupações são convenientes, pois liberam os cofres públicos para outros empreendimentos, ou seja, o Estado investe em outros projetos, enquanto a população sem moradia se “ajeita” como pode nas ocupações.

A maioria da população pobre, por falta de alternativa, vem se adequando como é possível para sobreviver, sem o mínimo de higiene e segurança nas favelas. Entre outros, perfuram-se poços para captação de água nas proximidades das fossas, despejam esgotos diretamente nos solos e, devido à falta de coleta pública, depositam lixo em locais impróprios. Nessas ocupações, geralmente não existem áreas de lazer, encontrando-se simplesmente maciços de casas modestas amontoadas, que favorecem a violência, principalmente entre os jovens moradores.

Dados da PNAD de 1999 revelam que o Brasil está muito aquém das necessidade básicas com relação à distribuição dos serviços básicos de saneamento. Assim, a exclusão territorial existente nas favelas, além de se dar pela posse da terra, ocorre pela falta de saneamento básico. SMOLKA (2003) analisou o crescimento da informalidade tanto nas periferias como na densificação de áreas já consolidadas nas grandes cidades latino-americanas, por exemplo, São Paulo e Rio de Janeiro, nas últimas décadas – período no qual se constata queda na taxa de crescimento populacional, esfriamento da imigração e relativa estabilização de pobres –, atribuindo o problema ao aumento absoluto e relativo de pobres urbanos, caracterizado pelo desemprego, pelo subemprego e outros.

Assim, milhões de brasileiros vivem na informalidade e na ilegalidade. Nesse sentido, ALFONSIN (1997) alerta que se faz necessário o desenvolvimento de uma política habitacional que contemple a regularização fundiária, amenizando minimamente o impacto vivido pelas populações moradoras das áreas não reconhecidas pela cidade formal, restabelecendo a cidadania que lhes é negada pela perversa lógica de acumulação de terra e riqueza nas cidades brasileiras, possibilitando segurança de permanência no local ocupado, com possibilidade de legalização de um título de concessão ou de propriedade, propiciando financiamentos, inclusão social, diminuindo as desigualdades e a discriminação.

Algumas causas dessa construção ilegal podem ser atribuídas às falhas nas políticas públicas e de mercado, que não produzem moradias suficientes para a camada da população de baixa renda, e ao planejamento urbano elitista e tecnocrático desenvolvido na maioria dos municípios.22

Conforme MARICATO (1996, p.60), ”a ilegalidade em relação à posse da terra parece fornecer freqüentemente uma base para que a exclusão se realize em sua globalidade”, ou seja, exclusão aos serviços públicos, ao emprego e, conseqüentemente, à qualidade de vida.

Outro grande causador da ilegalidade urbana é o reconhecimento da propriedade individual em detrimento da sua função social. Porém, embora tenha havido avanços em relação ao tratamento da propriedade privada no Brasil, esta sempre foi e ainda continua sendo sinônimo de status, ou seja, quem tem propriedade tem mais direitos em relação a quem não tem.

3.2 O CÓDIGO CIVIL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: PROPRIEDADE PRIVADA X

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