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3 POLÍTICAS PÚBLICAS, PRIVAÇÃO DE LIBERDADE E SOCIEDADES

3.6 I NSTRUMENTOS DE SELETIVIDADE PENAL : CRIME , ATO INFRACIONAL E

A definição do que é crime e de quem é criminoso é o resultado de processos de definição seletiva abertos à escolha social (HULSMAN; CELIS, 1993), não sendo, portanto, um fato social dado. Crime, criminoso, reincidente, criminalidade, ato infracional e reincidência são categorias jurídicas e profissionais historicamente construídas no campo estatal que refletem o que Hulsman e Celis (1993, p. 96) definem como sendo “os a priori” do sistema punitivo. Ou seja, o que se define como crime está separado, desde o princípio, de seu contexto e das relações individuais e coletivas. Pressupõe um autor culpável, um criminoso presumido “considerado como pertencente ao mundo dos „maus‟, [...]

antecipadamente proscrito” (id. Ibid.). São categorias que representam um estilo

punitivo exercido à distância por uma estrutura burocrática especializada, racionalizada e segregadora. As questões criminalizáveis constituem aquilo que Christie (1993) chama de “seletividade penal”. O exemplo trazido por Hulsman e Celis (1993) é bastante ilustrativo para confirmar tal seletividade:

Quando, por exemplo, um grande supermercado é „vítima‟ de um furto, teremos uma questão penal. Mas, quando um assalariado é vítima de uma rescisão abusiva do contrato de trabalho, isto não passara de uma questão civil. Por acaso, não é este último ato o que tem conseqüências mais graves para a vida das pessoas? Como reconhecer o que é ou não uma questão penal? (Grifo do autor, HULSMAN; CELIS, p. 118).

A definição do que é ou não crime e a demarcação das formas e instrumentos para a sua administração variam de acordo com o contexto

socioeconômico, com clima político-ideológico predominante e também de acordo com determinados grupos de pressão. Na conjuntura atual,

Não foi tanto a criminalidade que mudou, mas o olhar que a sociedade

passou a ter sobre algumas ilegalidades de visibilidade pública, ou seja, no

final das contas, sobre as populações deserdadas e desamparadas (por seu status ou origem) que começaram a recair a suspeita de crimes, desde o local que essas pessoas ocupam nas cidades, até os usos e tradições delas passaram a ser explorados nos âmbitos político e midiático (Grifo do autor, WACQUANT, 2010, p. 199).

Desse modo, a conformação institucional, jurídica, administrativa, temporal e territorial do que é crime segue as pressões por segurança, defesa da propriedade e do lucro e a necessidade de enfrentamento às vicissitudes originadas no interior do livre-mercado. Todavia, encontram no aparelho de Estado, interesses, culturas e ideologias que orientam sua disposição para defini-lo, a maneira como defini-lo e as formas de administrá-lo. Desse modo, o combate ao crime é um pretexto persuasivo para a redefinição do alcance da responsabilidade estatal. Nas sociedades capitalistas contemporâneas, o medo do crime tem sido, cada dia mais, interpretado como algo normal e integrado às rotinas da vida cotidiana. Assim,

El miedo al delito - o bien, la conciencia colectivamente construida acerca del delito - ha sido gradualmente institucionalizado. Se ha grabado en nuestro sentido común y en las rutinas de la vida cotidiana. Se ha incorporado a nuestros noticiarios, a las categorías de nuestras propiedades y a nuestros contratos de seguros y, de una forma más fantástica, a nuestros mitos urbanos y el entretenimiento televisivo (GARLAND, 2005, p. 270) 32.

Sob a perspectiva (de um ponto de vista ultraconservador) de garantir a

segurança da população e de manter “a lei e a ordem”, a implementação das

“penas” se deve a sua “capacidade de punir adequadamente os crimes, de impedir a reincidência e de reeducar adequadamente os apenados” (FALEIROS, 2004, p. 12). Todavia, além de não romper com as práticas delitivas, as instituições para sua administração tornam-se também violadoras de direitos e em sua falta de sentido, criam novos rótulos, estigmas e etiquetas que acabam por reforçar a criminalidade e a reincidência ao invés de enfrentá-la (CAIN, 1996; TEJADAS, 2005).

32 Tradução nossa: “O medo do crime – ou a consciência coletiva construída sobre o crime – tem sido gradualmente institucionalizado. Tem sido gravado em nosso sentido comum e nas rotinas da vida cotidiana. Tem se incorporado aos nossos noticiários, as categorias de nossas propriedades e a nossos contratos de seguros e, de uma forma mais fantástica, aos nossos mitos urbanos e ao entretenimento televisivo” (GARLAND, 2005, p. 270).

Assim, a reincidência além de apresentar-se como a caixa de ressonância das políticas públicas, cumpre esse mesmo papel quanto ao Sistema de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional. A reincidência nega a efetividade do próprio Sistema de Atendimento, que, entre outros propósitos, visa preveni-la (TEJADAS, 2005, p. 68).

Tanto a ineficácia da privação de liberdade como suas contradições, conflitos e tensões podem ter na reincidência seu nó górdio (ADORNO, LIMA; BORDINI, 1989). Desse modo, elevadas taxas de criminalidade e elevados coeficientes de reincidência poderiam desvelar, em alguma medida, que as estratégias institucionais, administrativas e pedagógicas empregadas pelas instituições de privação de liberdade não têm conseguido alcançar seus objetivos. A reincidência expressa a complexa relação entre as condições de vida e as trajetórias dos sujeitos no contexto capitalista, assim como as condições sociais em que os sujeitos cumprem a pena aplicada “na particularidade de sua inserção na estrutura social” (FALEIROS, 2001 apud FALEIROS, 2004, p. 13). Ela aponta ainda o tipo de proteção social ofertado pelo Estado aos segmentos historicamente excluídos, como é o caso do jovem pobre e do infrator. Nesta mesma seara, de acordo com Tejadas (2005, p. 231), “a debilidade da intervenção do Estado inviabiliza a construção de estruturas de sociabilidade portadoras de sentido, as quais possibilitariam ao adolescente condição de projetar um futuro e de pertencer a uma estrutura societária”. Ou seja, a privação da liberdade e a falta de acesso às políticas públicas (básicas e especiais) impedem tanto o acesso a processos de socialização e de reconhecimento quanto à construção de sociabilidades, de sentidos e de alteridade. Não obstante, o fenômeno da reincidência tem relação direta com os processos de socialização e de construção da identidade (ZALUAR, 1997; TEJADAS, 2005), de reconhecimento e (não)pertencimento (TEJADAS, 2005), de visibilidade e dominação simbólica (ZALUAR, 1997).

Ao mesmo tempo, a reincidência não significa uma escalada automática na gravidade das infrações (CAIN, 1996). A maioria das infrações iniciais praticadas por adolescentes se refere a crimes contra a propriedade, nos quais os adolescentes acabam se “especializando”. Na compreensão do autor a reincidência tem uma forte relação com o tipo de medida aplicada em sua primeira infração. Nesse sentido,

Overall, the logistic regression model indicates that lower order penalties are associated with decreased likelihood of re-offending. On the other hand, custodial orders, the direct alternative to custody, the CSO, and orders involving supervision in the community, given as first penalties, are

associated with increased likelihood of juvenile recidivism. This relationship is independent of offence and other control variables (CAIN, 1996, p. 35).33 […] the more structured penalties, such as custody, community service work and, to a lesser extent, supervised community orders, are associated with more rapid re-offending. That is, the higher the level of supervision ordered, the shorted the interval between first and second offences is likely to be. This may reflect as much the characteristics of those juvenile first offenders punished by way of the “harsher” penalties as the effect of the structured interventions catering for such offenders (op.cit, p 46) 34.

.

Nos casos em que são adotadas medidas restritivas e privativas de liberdade (quando de uma primeira infração) tem-se uma possibilidade maior de reincidência do que naqueles em que são aplicadas medidas alternativas como, por exemplo, nos casos de advertência ou admoestação. Além disso, duas possíveis explicações para este fenômeno surgem como resultados prejudiciais do próprio encarceramento. Segundo Cain (1996), a custódia ou a supervisão do infrator (seja na comunidade ou em instituições especializadas), apenas suspende e não erradica a atividade criminosa, ou seja, “the relapse into criminal activity may occur because social control of the juvenile offender, whether in detention or in the community,

ends” (CAIN, 1996, p. 40) 35 e, do mesmo modo, a não separação entre “primários” e

“reincidentes” permite certo tipo de “aprendizado criminal” (CAIN, op. cit.).

Nesta perspectiva, se tanto as técnicas de controle e de encarceramento não permitem o desenvolvimento de alternativas que superem as condições que dão origem ao crime e a criminalidade, impedem que os sujeitos desenvolvam processos de socialização e modos de sociabilidade necessários ao equilíbrio entre a convivência com o “outro” e a afirmação do “eu” e, consequentemente, também não previnem a reincidência: porque nas últimas duas décadas houve um aumento

33 Tradução nossa: “No geral, o modelo de regressão logística indica que a determinação de penas menores está associada a uma menor chance de reincidência. Por outro lado, as ordens de prisão, a alternativa direta para a custódia, a determinação de serviços comunitários, e as determinações que envolvem supervisão na comunidade, dado como primeiras sanções, estão associadas com o aumento da probabilidade de reincidência juvenil. Esta relação é independente da infração e de outras variáveis de controle” (CAIN, 1996, p. 35).

34 Tradução nossa: “[...] as penas mais estruturadas, como a custódia, a prestação de serviços comunitários e, em menor grau, as determinações de supervisão na comunidade, estão associados a uma reincidência mais rápida. Isto é, quanto maior é o nível de supervisão, é mais suscetível de que seja menor o intervalo entre a primeira e a segunda infração. Isso pode refletir tanto as características daqueles infratores juvenis punidos primeiro por meio das sanções „mais duras‟, como o efeito das intervenções estruturadas de atendimento para tais infratores” (CAIN, 1996, p 46).

35

Tradução nossa: "a reincidência pode ocorrer porque o controle social do jovem criminoso, seja na detenção seja na comunidade, termina" (CAIN, 1996, p. 40).

significativo no número de adolescentes privados de sua liberdade e uma significativa expansão das instituições e instrumentos para a sua administração e controle? Sobre esta questão, algumas sínteses podem ser elaboradas a partir da análise crítica dos autores com os quais se dialogou neste capítulo.

Ou seja, o Estado moderno está constitutivamente orientado e organizado pelas exigências da acumulação capitalista ao mesmo tempo em que se torna a superestrutura da sociedade contemporânea, não sendo, portanto, o agente da sociedade e do interesse geral. Expressa, legal e institucionalmente os interesses da classe social dominante e sua estrutura material e institucional desenvolve-se, principalmente, em políticas públicas para o controle ideológico, a dominação política e a exploração econômica, tudo isso assegurado mediante o uso de um poder repressivo constitucionalmente legitimado e de uma coerção simbolicamente reconhecida. Sua relação com a classe dominante e a propriedade privada produz e também mantém as desigualdades socioeconômicas e seu principal elemento de coesão está na ideia de liberdade e igualdade, adquiridas a partir de leis e regras jurídicas formais e abstratas.

A constituição de uma estrutura administrativa e burocrática racionalizada, de um campo jurídico autônomo, de agentes especializados e de métodos específicos de gestão foi fundamental para sua consolidação e universalização. Do mesmo modo, um “saber-poder” particular garantiu a sua auto-legitimação e a de seus agentes, ao mesmo tempo em que produziu as “ideias-força” que são os principais elementos de coesão, classificação e divisão do mundo social. O poder estatal para a constituição de “problemas sociais universais” como, por exemplo, a criminalidade juvenil, atrelado ao papel que ocupa no disciplinamento de classe, priorizou o aparato judicial e penal (em detrimento de um Estado social) como programa político-econômico fundamental dentro do contexto neoliberal. A privação de liberdade, enquanto instrumento de controle estatal, seguiu o domínio do mercado visando solucionar os obstáculos trazidos pela própria lógica do livre- mercado. Sua materialização em estruturas especializadas e distintivas da modernidade penal se deu por meio da segregação, da vigilância e do controle social. Dentre as principais categorias submetidas a este tipo específico de gestão estatal empresarial está o adolescente em conflito com a lei, oriundo das classes exploradas e subalternizadas e dos territórios precarizados das grandes cidades. Para o controle do potencial explosivo dos segmentos jovens das classes

subalternizadas e de suas estratégias de negação e reação as adversidades, o Estado Penal deu origem a uma diversa gama de instrumentos jurídico-normativos, instituições específicas, agentes estatais especializados e processos formais.

Com base nestas reflexões, a investigação propõe que, tanto os instrumentos jurídico-estatais quanto as instituições e as práticas profissionais originadas e justificadas a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (erigido sob o “paradigma da proteção integral” das Nações Unidas) e, mais recentemente, incrementadas com a Lei do SINASE, estão inseridos no mesmo processo de modernização e diferenciação estrutural que se deu nos últimos anos a partir do fortalecimento das burocracias estatais e dos dispositivos especializados distintivos das sociedades capitalistas contemporâneas, o que será melhor explorado no capítulo que segue.

4 O “PARADIGMA DA PROTEÇÃO INTEGRAL” E AS MODERNAS FORMAS