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4 O “PARADIGMA DA PROTEÇÃO INTEGRAL” E AS MODERNAS

4.1 S OBRE OS “ PADRÕES INTERNACIONAIS ” DE ADMINISTRAÇÃO DA J USTIÇA

Por certo, os países capitalistas contemporâneos encaram problemas fundamentais distintivos da modernidade. No contexto de colapso do Welfare-state e de expansão das ideologias neoliberais, a distribuição desigual da riqueza e do acesso ao trabalho remunerado (CHRISTIE, 1993; ALMEIDA et. al., 2008; BERING; BOSCHETTI, 2008; WACQUANT, 2012a) veio atrelada aos processos de desenvolvimento e diferenciação cultural decorrentes do fortalecimento dos Estados burocráticos (GARLAND, 2005; LINERA, 2010; WACQUANT, 2012a) e do esvaziamento das instituições democráticas (SANTOS, 2015), afetando diretamente as relações Estado-mercado e Estado-sociedade bem como a subjetividade coletiva e as relações entre o “eu” e o “outro” (BAUMAN, 2005). Neste contexto, a incessante busca pela prevalência dos interesses do capital internacionalizado, a construção do “outro distante” (GARLAND, 2005) como produto, e a intolerância para com aqueles que são “inúteis” ao mercado, conduziu à adoção de medidas repressivas, à incessante busca pela ampliação e pela especialização da capacidade de controle do Estado e, consequentemente, à uma importância maior para o encarceramento.

Atualmente, mais e mais pessoas não conseguem se adequar ao completo funcionamento do ciclo econômico, deixando de ter um “lugar” na estrutura social compatível com o Estado e o sistema capitalistas (BAUMAN, 2005). Para administrar este deslocamento e as consequências da crise de ansiedade e insegurança que afeta comportamentos e tomadas de decisão, uma extensa trama governamental de

controle e produção da ordem foi desenvolvida nas últimas décadas com o objetivo de conter aqueles que poderiam colocar em xeque o processo social (CHRISTIE, 1993; GARLAND, 2005; BAUMAN, 2005; SCHUCH, 2005, WACQUANT, 2010; 2012a; 2012b; 2013). Bauman (2005) discorre sobre a produção de “pessoas rejeitadas”, um “lixo humano” que vem sendo produzido nos lugares em que a economia capitalista foi perpetrada. Para neutralizá-lo, desenvolveu-se então uma “indústria de remoção” na forma do imperialismo político e militar. Sua face mais perversa se expressa naquilo que Garland (2005) chamou de “indústria carcerária” e que Christie (1993) definiu como a “indústria do controle do crime”. Em seu interior,

Se aparta a la poblacion potencialmente peligrosa y se la mantiene bajo total control como materia prima, o como partes, del mismo complejo industrial que la volvio inutil y ociosa fuera de las paredes. Son la materia prima del control o, en todo caso, consumidores cautivos de los servicios de la industria del control (CHRISTIE, 1993, p 124) 36.

Nesse sentido, a “indústria de remoção” e a “indústria do controle do crime”, além de dar conta dos processos de neutralização e despersonificação do “outro estranho”, deslocando-o e coisificando-o, transformam-no em mercadoria, cumprindo uma função econômica e racional, isto é, produzindo lucro e gerando trabalho, ainda que de forma marginal (WACQUANT, 2012b). Esta extensa trama governamental de controle e produção da ordem social dirigida à regulação punitiva da pobreza foi sendo reconfigurada nos países capitalistas ocidentais entre fins dos anos 80 e inicio dos anos 90, a partir de um conjunto de fatores os quais Wacquant (2012a) descreve como: a) a compressão do Estado por órgãos multilaterais supranacionais e pelo capital financeiro internacional; b) a normalização da insegurança social e; c) a restauração da autoridade da elite dominante.

No campo das políticas públicas destinadas à população infanto-juvenil, seu conteúdo passou a ser difundido pelas normativas internacionais da ONU, as quais compuseram o conjunto de obrigações e contrapartidas impostas, aos países em desenvolvimento, por organismos multilaterais como o Banco Mundial, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD e o FMI, no bojo dos acordos político-econômicos com eles estabelecidos (Almeida et al., 2008; BERING;

36 Tradução nossa: “Anula-se a população potencialmente perigosa, mantendo-a sob total controle como matéria prima ou, como partes do mesmo complexo industrial que a tornou inútil e ociosa fora dos muros. São a matéria prima do controle ou, em todo caso, são os consumidores cativos dos serviços da indústria do controle” (CHRISTIE, 1993, p. 124).

BOSCHETTI, 2008). Assim como estes últimos, a ONU é também o resultado do contexto de tentativa de reconstrução do capitalismo internacional (ZANELLA, 2014) iniciado em Bretton Woods após a Segunda Grande Guerra e atende, portanto, aos interesses do capital internacional que justificaram sua criação.

Depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a Declaração Universal dos Direitos da Criança (ONU, 1959) e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) passaram a ser os principais instrumentos responsáveis pela transmissão dos princípios de “internacionalização” de uma infância “universal”, da “prioridade absoluta” da criança e do adolescente no campo das políticas e dos orçamentos públicos e da “partilha de responsabilidades” entre o Estado, a família e a sociedade em geral para a garantia de seus direitos. Estes princípios foram sintetizados naquilo que se convencionou chamar de “paradigma da proteção integral”.

Os documentos internacionais publicados a partir de 1980 tornaram-se o baluarte que viria garantir à criança e ao adolescente, através de um reconhecimento jurídico-formal e de um “reordenamento político-conceitual” e “político-institucional” (SCHUCH, 2005; ALMEIDA, et al., 2008), a condição de “sujeito de direitos”. Seu conteúdo, no entanto, se constituiu em instrumento de abordagens individualizantes, com foco no controle da família e em sua “nuclearização”, concentrando a responsabilidade estatal exclusivamente nas instituições e instrumentos judiciais de repressão e controle (SCHUCH, 2005).

No que concerne a peculiaridade das políticas públicas, instituições e práticas profissionais voltadas para a administração da criminalidade juvenil, três documentos internacionais merecem destaque devido ao contexto histórico de seu surgimento e também devido à relevância que neles é dada para os processos de racionalização, especialização, individualização e burocratização dos aparatos de Justiça Juvenil. São eles: as Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil (ONU, 1985a), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a administração da justiça de menores (ONU, 1985b) e as Regras das Nações Unidas para a proteção de jovens privados de liberdade (ONU, 1990). Os modelos de gestão e de governança presentes nestes documentos, bem como seu processo de legitimação, estiveram, desde o princípio, atrelados a intenção de se validar a racionalidade econômica imposta por organismos multilaterais como, por exemplo, o FMI (BOURDIEU, 1998; ZANELLA, 2014). Esta penetração da racionalidade

econômica e da ideologia empresarial na administração estatal acabou dando maior importância ao desempenho (SOUZA, 2006), aos resultados, a produtividade e a eficiência (CHRISTIE, 1993) implicando assim um grande distanciamento burocrático (HULSMAN; CELIS, 1993) dos sujeitos e de suas reais necessidades, levando inclusive, a “punições” desmedidas. Analisando o que chama de constituição de um “campo de atenção ao adolescente infrator” no Brasil, Schuch (2005) busca também compreender as relações entre o “universal” e o “local” na constituição deste campo. Seu trabalho demonstrou, dentre outras coisas que,

Na metodologia de produção de um documento com validade internacional [...], mais do que resultados consensuais baseados numa concepção ontológica do homem, essas legislações são resultado de lutas entre filosofias políticas particulares. Isto é, estão imbricadas em relações de poder e dinâmicas políticas complexas (SCHUCH, 2005, p. 17-18).

A perspectiva de um “homem transcendental” reforçou a ideia de justiça e de políticas públicas com foco no indivíduo (SCHUCH, 2005) em detrimento de suas relações históricas e materiais, desconsiderando a complexidade de sua relação com as instituições e também a construção de sua subjetividade. Esta concepção de ser “humano universal” e de “sujeito pleno de direitos”, cujo valor relativo e lugar social são fortuita e culturalmente determinados, está implicitamente incrustada nas consciências a partir da dominação simbólica e institucional exercida tanto pelo Estado quanto pelo mercado (SOUZA, 2006). Segue a lógica totalizadora e transformadora do “antigo” e do “pré-moderno” em “novo” e “moderno”.

Apesar de cunhados no campo dos Direitos Humanos, o que estes documentos internacionais expressam é exatamente a sua incompatibilidade com eles. Trazem consigo “a lógica da dominação material e simbólica tipicamente impessoal e opaca do capitalismo [...] que engloba e redimensiona, segundo sua própria lógica, todas as relações sociais” (id. Ibid., p. 66). A partir da racionalização e da divisão do trabalho, da especialização de instrumentos jurídicos centralizados e da individualização do sujeito, impedem que as instituições e seu corpo de especialistas concentrem esforços para os problemas tal como eles são apresentados e vivenciados em seu dia a dia pelos sujeitos (HULSMAN; CELIS, 1993). São, portanto, “programas” para a criação e/ou a “reforma” de estruturas jurídico-administrativas estatais cujos resultados a serem alcançados representam exatamente o seu contrário.

Os documentos internacionais da ONU foram ratificados pelo Estado brasileiro, passando a integrar seu ordenamento jurídico e determinaram, de forma expressiva, o conteúdo do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, as demais legislações afetas à área e também as suas alterações posteriores.

4.2 RACIONALIZAÇÃO, INDIVIDUALIZAÇÃO E CONTROLE GERACIONAL: O ESTATUTO DA