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Capítulo 1 – A ciência entre verdade e veracidade

1.1 Ian Hacking e a questão da verdade

Na primeira década dos anos 2000, após a publicação de Ontologia histórica (2002a/2009), Hacking se debruça mais diretamente sobre a questão da verdade, algo que o filósofo só realizou de maneira mais franca após mais de 30 anos de produção sobre temas afins. Isso não significa, como veremos, que ele não trate da questão, mas que seu modo de abordagem é bastante diferente do que pode ser visto, por exemplo, em abordagens como de Kirkham (1992) sobre teorias da verdade. Ele afirma abertamente o seu desinteresse por discussões sobre a natureza da verdade em diversos momentos: em Representar e intervir (1983/2012), por exemplo, afirma que não estaria interessado em questões sobre a verdade, mas em modalidades de verdade e falsidade. Posicionamentos como esse podem ser encontrados em diversos outros momentos, sempre desviando daquilo que ele nomeia, em The social construction of what? [A construção social do quê?] (1999), como “palavras elevadores”: palavras que levariam o debate filosófico para um “outro nível” — o que não lhe interessava particularmente por se distanciar de uma discussão mais concreta das práticas científicas e seus efeitos. Esses desvios, além de

7 A palavra “real” é utilizada com alguma frequência por Hacking, mas apresenta sentido diverso daquele

demasiado breves, eram marcados por um esforço notavelmente diminuto em apresentar seus motivos.

A partir de alguns textos publicados entre 2002 e 2012, além de seus cursos oferecidos no Collège de France entre 2002 e 2006, Hacking parece se preocupar mais em expor suas motivações para a evitação de discussões desse tipo. Não se trata de um resguardo sobre questões metafísicas, uma vez que ele mesmo afirma, em 1983 (2012), que o seu interesse principal na postulação de seu realismo de entidades é metafísico. Tampouco seria correto afirmar que se afasta de discussões epistemológicas, engajamento mais que presente em seus livros sobre pensamento estatístico e probabilístico que marcaram boa parte de sua carreira (Hacking, 1965; 1975a/2006; 1990), assim como em praticamente todos seus livros. O que se mostra curioso é, portanto, que há algo que o autor parece sempre abordar, embora diga que não; algo que não explicita a sua presença em grande parte de seus escritos, mas parece estar lá. Talvez o fato de o próprio autor afirmar que não tratará diretamente dessa questão implique que, ao mesmo tempo, não consiga descartá-la. E isso que faz parte desse movimento de presença e ausência liga-se justamente à questão da verdade.

É possível argumentar que, embora não trate diretamente dessa questão, Hacking estaria praticamente o tempo todo falando sobre isso. Afinal, seja no estudo rigoroso da emergência de um novo estilo de raciocínio, seja em reflexões sobre a invenção de pessoas, seja na crítica sóbria à ideia de construção social do conhecimento científico, a questão da verdade estaria sempre rondando. É um apontamento absolutamente pertinente, o que não diminui a novidade de como essa questão é abordada em dois artigos, um chamado “‘Vrai’, les valeurs et les sciences” [“Verdadeiro”, os valores e as ciências] (2002b), e o outro chamado “Truthfulness” [Veracidade] (2005), além das primeiras aulas de seu curso ministrado em 2006 no Collège de France (Hacking, 2006a; 2006b; 2006c; 2006d). Esse modo franco como a questão da verdade é abordada nesses momentos merece atenção, especialmente por produzir um efeito clarificador em relação a seus escritos anteriores, ajudando a organizar boa parte do projeto do autor. Desse modo, justifica-se que comecemos nosso trabalho sobre a obra de Hacking desse ponto já adiantado, fazendo retornos quando adequado.

Verdade e veracidade

Em seu artigo “‘Vrai’, les valeurs et les sciences” (2002b), Hacking elenca diversos modos tradicionais de consideração da questão da verdade para indicar um problema que persiste entre eles. Primeiramente, ele retoma a noção de “verdade por adequação” (ou

correspondência), na qual reúne pensadores como Aristóteles, Descartes e Kant. Essa vertente, que se basearia na ideia de que o verdadeiro é aquilo que corresponde ao que realmente é, teria suas variações em relação ao que a palavra “verdadeiro” corresponderia, mas não ao tipo de relação que se propõe. Como ele assevera:

Para Descartes, e para toda a filosofia moderna em seus primórdios, são as

ideias que são verdadeiras; e elas são verdadeiras quando são representações

adequadas de seu objeto. Para Kant, o que é verdadeiro são os julgamentos. No século XX — em que estamos, de partida, fascinados pela linguagem —, são as frases, os enunciados, as proposições que são verdadeiras. Eu acredito que é a abordagem mais fiel ao próprio Aristóteles. Mas se o principal pretendente à verdade for um pensamento, uma ideia, um julgamento ou um enunciado, para muitas filosofias tradicionais, o que é verdadeiro é aquilo que é pensado ou dito — e é verdadeiro na medida em que está em adequação ou correspondência com o objeto em questão. (Hacking, 2002b, p.14-15, tradução nossa)

Essa não seria, entretanto, a única concepção de verdade presente na história do pensamento ocidental. Segundo o autor, haveria outra concepção que, embora menos presente em discussões filosóficas, seria central para se pensar a ciência. Trata-se de uma concepção encontrada na Bíblia, mobilizada pelas palavras emeth ou emunah, que diriam respeito a ideias de estabilidade: “Essa verdade não diz respeito a enunciados, julgamentos ou proposições. Ela fala de constância, de segurança, de confiabilidade” (ibidem, p.15, tradução nossa).

Essa conjunção entre a verdade como adequação e como constância é retomada também em momentos posteriores, em que a questão da verdade é abordada de modo franco. Talvez o principal motivo dessa consideração mais direta sobre a questão da verdade, inclusive apontada pelo autor, seja a publicação de um livro chamado Truth and Truthfulness: An Essay in Genealogy [Verdade e veracidade: um ensaio em genealogia], por Bernard Williams (2002). Hacking inicia tanto o supracitado artigo de 2005 quanto suas aulas de 2006 apresentando o modo como a leitura desse livro impactou seu pensamento, como se Williams tivesse oferecido a Hacking algumas palavras que faltavam. Em linhas gerais, é possível reconhecer que o filósofo canadense reafirma a questão da verdade como algo atemporal, a-histórico:

Aristóteles ensinava que “dizer do ser que ele é, e do não ser que ele não é, é o verdadeiro”. Em outra tradução, “dizer que isso que é, é, e que isso que não é, não é, é verdadeiro”. Aristóteles fala de qualquer afirmação, em qualquer língua. Essa definição está fora do tempo, fora da história. Ela atravessa todo discurso informativo. Se o conceito da verdade teve um início, é na emergência da própria linguagem — sem dúvida um acontecimento na história do gênero humano, talvez mesmo o começo de nossa espécie. (Hacking, 2006a, p.3, tradução nossa)

Ele afirma o mesmo sobre o célebre enunciado de Tarski sobre a brancura da neve: a neve é branca se, e somente se, a neve for branca. Segundo Hacking, trata-se de enunciados puramente formais. É importante notar que ele reconhece que essa ideia de uma verdade sem história e sem conteúdo seria uma convenção proposta por tradições filosóficas bem definidas e contrapostas por outros pensadores, como, por exemplo, Hegel ou Foucault. E aí explicita (em 2005 e 2006a) a sua escolha por não entrar em um debate sobre a natureza da verdade: isso tornaria mais complexas certas discussões que poderiam ser mais simples. Ponto em que retoma a sugestão que ouvira de ninguém menos que John Langshaw Austin sobre evitar palavras com ares importantes, uma vez que a grande maioria dos problemas prescindiria delas e dos problemas que carregam (Hacking nomeará, como indicado anteriormente, esses termos como “palavras elevadores”).

Entretanto, o autor apresenta também outra questão relacionada à escolha de não discutir a natureza da verdade, em seu artigo “‘Vrai’, les valeurs et les sciences” (2002b). Não se trata de um desvio com o intuito de fugir de uma discussão demasiadamente densa — o que, inclusive, não condiz com a obra do autor, que sempre se debruçou sobre temas de alta complexidade —, nem de evitar problemas que só seriam relevantes em discussões muito sofisticadas. Como ele afirma nesse momento — e, curiosamente, esse parece ser o único momento em que estabelece isso com clareza —, sua evitação do termo “verdade” enquanto algo atemporal diz respeito a um problema contido na aplicação de teorias da verdade às ciências:

Aplicada às ciências, a concepção aristotélica encontra um outro problema: não é certo que possamos encontrar um sentido verdadeiro para a ideia de correspondência ou de adequação. Os aristotélicos de hoje em dia dizem que isso que nós dizemos é verdadeiro quando está em acordo ou em

correspondência com aquilo que é o caso. Nós frequentemente lhes objetamos

que seria impossível determinar “o que é o caso” ou “os fatos” sem recorrer precisamente à proposição que supostamente estaria em adequação ao estado das coisas. Existe, então, uma circularidade em uma teoria da verdade como essa. (Hacking, 2002b, p.17, tradução nossa)

Hacking afirma ainda, mesmo que rapidamente, que a teoria de Austin também não funcionaria para as ciências uma vez que o caráter pragmático não seria suficiente para sustentar os processos de produção de conhecimento científico, enquanto Tarski teria sido sempre perspicaz e prudente ao afirmar as limitações de suas proposições. Segundo ao autor,

Ele [Tarski] sublinhava que sua concepção semântica da verdade não permitia determinar o critério do verdadeiro, que isso seria a função das ciências particulares: cada ciência determina seus critérios de sua maneira. Esse aspecto das ideias de Tarski não é levada suficientemente a sério por seus comentadores, em minha opinião. (ibidem, p.18, tradução nossa)

Vemos, dessa maneira, um posicionamento que já coloca problemas em relação à proposição de Erwin (2015): fica clara a fragilidade de simplesmente tomar a concepção tarskiana de verdade e aplicá-la diretamente à afirmação de uma observação enquanto uma evidência. O que se estabelece é, na melhor das hipóteses, uma circularidade que afirma que é evidente aquilo que afirmamos ser evidente de maneira unívoca; porém, a passagem da proposição lógica do “se e somente se” para a evidência empírica continua sem fundamentação. Isso fica ainda mais claro quando o filósofo canadense afirma que os problemas encontrados na aplicação de teorias da verdade por adequação ou da teoria semântica de Tarski ao conhecimento científico seriam exemplos de um problema maior, que diz respeito à relação entre o conhecimento e suas aplicações sobre os objetos8. Teorias podem ser coerentes e estabelecer relações lógicas consistentes sem que isso signifique que sejam aplicáveis aos objetos visados. Um impasse, segundo ele, reconhecido no campo da matemática por Paul Benacerraf (1973)9, que indicaria a disjunção entre as teorias que explicam o conhecimento matemático e as que explicam a existência dos objetos matemáticos, também entendida como teoria das verdades matemáticas. A questão seria, então, que embora o pensamento matemático fosse capaz de produzir provas sobre a coerência de seu pensamento, ele não seria capaz de fazer a articulação entre essa demonstração e a verdade de seus objetos. Por outro lado, aqueles capazes de provar a existência de seus objetos, falhariam em demonstrar a coerência do pensamento.

Algo similar, indica Hacking, ao que se passa dentro de um laboratório: a passagem da teoria aos fatos não responde a uma teoria geral e atemporal, mas a critérios locais e históricos. O que leva o autor a propor essa passagem, então, a partir de seu trabalho sobre estilos de raciocínio:

8 Vale lembrar rapidamente certa proximidade com a divisão proposta por Gilles-Gaston Granger em Pensée

formelle et sciences de l’homme [Pensamento formal e ciências humanas] (1960/11967) e A ciência e as ciências

(1993), que coloca a matemática como um polo de formalização em relação ao qual sempre haveria algum tipo de perda ao se passar às ciências empíricas. Granger, por sua vez, encaminha essa questão ressaltando a importância de outros procedimentos que deveriam fazer parte da prática científica, especialmente a experimentação e a reprodutibilidade de experimentos.

9 O artigo de Hacking cita esse texto como tendo sido publicado em 1971, entretanto somente o encontramos como

Penso que certas maneiras de raciocinar nascem em um momento preciso e que elas duram séculos, que elas se tornam quadros mais gerais dentro dos quais nós raciocinamos. Só posso dar aqui uma visão geral disso que chamo de “estilos de raciocínio científico”. Eles têm a ver com a razão, no sentido de Bourdieu, mas, sobretudo, têm a ver com a verdade, a objetividade e a estabilidade das ciências. (ibidem, p.18, tradução nossa)

Trata-se de algo muito próximo da opção que fará, três anos depois, pelo termo veracidade. Um termo, segundo ele, menos conhecido dos filósofos — que estariam mais acostumados com a verdade —, mas que instrumentaliza a discussão sobre a verdade de maneira a pensar eventos específicos. Ao fazer isso, nesse momento, declara inclusive a especificidade de sua localização na filosofia da ciência:

Porque nossas pesquisas filosóficas são ligadas a uma história das ciências. É uma história de longa duração, e por causa disso muito diferente das histórias das ciências que encontramos hoje em dia, mas é, ainda assim, uma história. E eu retomo, do meu jeito, a convenção admitida por todos os grandes lógicos, de Aristóteles a Alfred Tarski: a verdade não tem história, nem de curta nem de longa duração. (Hacking, 2005, p.3, tradução nossa)

Retomando, assim, a ideia da verdade enquanto algo puramente formal, o autor afirma que há algo de não formal nisso tudo, que reside no fato de que a verdade se liga àquilo que “se diz”. A questão da formalidade da verdade apontada em Aristóteles e Tarski encontraria seu limite, então, no fato de que essa verdade teria de ser enunciada. E é aí que ela perderia sua pureza, seu caráter atemporal e neutro. Pois, se a verdade não tem história, o dizer tem. A verdade, ao ser dita, demanda que alguém a diga, e é nesse ato de enunciação que se passaria à veracidade. Ele afirma, assim, que a veracidade estaria ligada ao ato de dizer o verdadeiro, o que inclui dois aspectos: é necessário que aquele que diz o verdadeiro forneça informações exatas (conformes à realidade), e que seja sincero. Trata-se, portanto, de uma questão ligada ao conteúdo e outra à intenção da enunciação.

Como coloca o autor, “a veracidade é uma virtude que tem duas virtudes associadas: a exatidão e a sinceridade. É evidente que se fizermos uso dessas palavras, nós andaremos em círculos” (ibidem, p.4, tradução nossa), o que pode ser entendido a partir de sua crítica à aplicação de teorias da verdade às ciências. Pois se não há nada que garanta, epistemologicamente, a passagem de uma teoria da verdade aos fatos, então algo de outra ordem deve advir. O modo de evitar um pensamento circular infrutífero e deslocar a questão para um campo em que ela possa ter tração é justamente localizar as tentativas de enunciação da verdade na história. Ou seja, a veracidade só é um conceito produtivo se historicizado, ao que se soma

que não haveria um único modo de enunciação. Há, portanto, possibilidades diferentes de se dizer o verdadeiro: “a verdade não tem história, mas isso que nós dizemos, isso que nós podemos dizer, isso tem uma história” (ibidem, p.4, tradução nossa). Desse modo, em linhas bem gerais, vemos que a resposta de Hacking à impossibilidade de garantia da relação entre as coisas e as teorias é a partir da historicização, como uma espécie de sutura que seria produzida de modo contextual a partir de procedimentos locais que serviriam como uma espécie de acordo pontual sobre aquilo que deve, ou não, ser considerado enquanto verdadeiro. A grande questão é, nesse sentido, sustentar que esse acordo não tira o valor do conhecimento.

Quando apontamos, anteriormente, o efeito retroativo de clarificação desse momento de Hacking sobre sua obra anterior, isso se liga diretamente à ideia de que há diferentes possibilidades de dizer o verdadeiro. Parece que com essa fórmula é possível articular diferentes vertentes em que seu pensamento se aventurou em mais de cinco décadas. Entre elas: o pensamento estatístico e probabilístico enquanto uma possibilidade de dizer o verdadeiro (1965, 1975a, 1990); os estilos de raciocínio como possibilidades de dizer o verdadeiro (1982, 1999, 2000, 2002a/2009); os efeitos ontológicos retroativos de discursos sobre o verdadeiro (1995/2000, 1998a, 2002a/2009); a inevitabilidade das descobertas científicas articulada a algum tipo de verdade, mesmo frente o reconhecimento de contingências (1999, 2000); e, finalmente, sua primeira argumentação de maior pretensão metafísica, que trata da verdade e da realidade a partir de uma crítica da noção de representação (1983/2012). Apresentaremos, portanto, uma leitura da obra de Hacking que orbita em torno da questão da verdade10. É uma leitura inspirada, como apresentado até este ponto, em textos posteriores à escrita da maior parte de seus livros, e que permitem essa costura.

Seguiremos, portanto, na identificação de como a questão da verdade pode ser encontrada na obra de Hacking, dando destaque a três proposições em que ela apresentaria efeitos diretos em considerações epistemológicas: em seu realismo de entidades, na ideia de estilos de raciocínio, e na crítica que faz à ideia de construcionismo social da ciência.

10 É preciso salientar que, mesmo que muitas vezes o autor não empregue o termo verdade, ele emprega termos

que toma como correspondentes. Isso será visto, por exemplo, em relação ao termo realidade, nos momentos em que faz uma discussão sobre doenças mentais transientes e não transientes (1995/2000; 1998a; 1999). Ele mesmo afirma que, nesse contexto (ao se perguntar sobre a realidade de uma doença mental), a palavra realidade também tem o valor de verdadeiro. Sua escrita não se preocupa tanto com esse tipo de precisão. Talvez seja um efeito da sugestão — sempre aludida — de Austin, ou certa liberdade que o autor se permite por entender que existiria um trânsito entre alguns termos “superiores”, especialmente em relação a palavras como “verdade” e “verdadeiro”. Como ele afirma, “[...] nós não temos, parece, nenhuma reticência em traduzir diferentes palavras de numerosas línguas ocidentais por ‘verdadeiro’” (Hacking, 2002b, p.15).

Realismo de entidades e crítica da representação

Embora tenha sido publicado somente em 1983, Representar e intervir (1983/2012) é um compilado de cursos introdutórios que Hacking vinha oferecendo na Universidade de Stanford há alguns anos. Isso implica duas considerações: primeiramente, o caráter generalista de parte de seu conteúdo, em que o autor, ao comentar diversas tradições em filosofia da ciência, localiza seu pensamento; e, em segundo lugar, o caráter embrionário da ideia de estilos de raciocínio, que aparece poucas vezes no livro. Hacking afirma (2002b) ter sido em uma conferência de Alistair Cameron Crombie, em 1978, que ele entrou em contato com a ideia de “estilo” articulada ao pensamento científico pela primeira vez, muito embora seus trabalhos anteriores já carregassem ideias compatíveis. Isso pode ser visto, por exemplo, na influência da obra de Foucault, que já pode ser reconhecida em The emergence of probability [A emergência da probabilidade] (1975a/2006).

Se a ideia da historicidade do pensamento já estava presente em seu reconhecimento de que antes do século XIX não haveria nada muito próximo do pensamento probabilístico, a instrumentalização dessa ideia a partir do termo “estilo” ganha corpo no final da década de 1970. Em Representar e interevir (1983/2012), o que vemos são somente alguns momentos isolados em que o autor emprega esse termo, muito embora um de seus principais artigos sobre o tema, chamado “Language, truth and reason” [Linguagem, verdade e razão], tenha sido publicado em 1982, ou seja, antes da publicação do livro. É notória, entretanto, a pequena influência que esse artigo, depois republicado em Ontologia histórica (2002a/2009), exerce na linha argumentativa. O que se vê são textos absolutamente compatíveis, mas com caminhos bastante diferentes.

O livro (Hacking, 1983/2012) gira em torno da crítica à representação realizada a partir da defesa da importância da experimentação. Ele evita discussões sobre a determinação de parâmetros de verdade-e-falsidade, e tem uma linha de pensamento que trabalha com um recurso a uma descrição mais geral das ciências, mobilizando o pensamento de grandes autores em linhas mais gerais. Mesmo com uma marca de didatismo menos frequente em seus outros escritos, Representar e intervir (1983/2012) explicita o posicionamento de Hacking dentro de um debate bastante específico no campo da filosofia da ciência, muito embora com consequências amplas. Trata-se da discussão sobre a existência ou não de entidades invisíveis; e se, consequentemente, elas seriam entidades puramente teóricas, ou não.

Num sentido um pouco mais amplo, esse debate se insere dentro da disputa iniciada com a publicação de A estrutura da revolução científica, por Thomas Kuhn (1962/2013),

popularizada como Science Wars [guerras da ciência]. Essa disputa, como apontamos brevemente na introdução, é polarizada entre realistas e nominalistas, e teria sido iniciada pela publicação de Kuhn pelo fato de ser a primeira publicação — de alguém não distante da prática

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