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186 Elmo retirado da capa do livro de TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Lisboa: Moraes Editores, 1977.

Imagem 2 (p.190)

Símbolo angelical retirado da capa do livro de USQUE, Samuel. Consolaçam ás

Tribulaçoens de Israel. Coimbra: França-Amado Editor, 1906.

7. ANEXOS

7.1 CLÁUDIO, Mário. De Barnabé, Mestre-Cozinheiro da Nau-Capitânia, na Primeira Viagem a Caminho das Índias. In: Itinerários (Contos). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993.

Não é que seja uma prenda do Senhor a minha aldeia de Ucanha, atravessada pelo Varosa, aonde ia nadar, com os companheiros mais ladinos, quando era rapaz. E viam-nos, lá no fundo, os monges de Salzedas, do alto da ponte que tinham mandado construir, e punham-se a ralhar-nos muito forte, chamando-nos madraços e mariolas, mandando-nos trabalhar nos campos. Partindo para Lisboa, enfim, para embarcar, como cozinheiro de Vasco da Gama, lembro-me de todas estas coisas juntas, e de algumas outras, do sabor da baroa, nas tarde húmidas de Outubro, do paladar do anho, pelo São João. E futuro que nada disto irei preparar, para os marinheiros da Índia, porque de outras espécies se alimentarão os que vogam sobre as ondas, e nem mesmo acerto com o que hão-de desejar que lhes arranje, para que não morram de fome, durante todo esse tempo. Aprendi a acender, desde tamanhinho, o fogo do pão, a confeccionar o bolo, e a postá-lo na pá, a retirá-lo, apenas, no ponto de ser comido. E desvanecia-me eu, ao temperar o assado, com sal e com alho, no meio das castanhas, para que fosse o centro da festa, e pudéssemos cantar, como num lausperene, <<Ó meu São João Baptista, de que quereis vós as capelas? De cravos e mais de rosas, com cravinas amarelas>>.

Por entre armaria e cordoalha, bombardaria e amarração, lá estavam, prontos a serem estivados, naquele cais, tonéis e pipas e barris, de água e de vinho e de azeite e de farinha, de carne e de legumes e de coisas de botica. Denominavam-se as naus, São Gabriel e São Rafael e Bérrio e São Miguel. E entrámos todos, depois de termos rezado, na noite de sete para oito de Julho, naquela ermidinha de Nossa Senhora de Belém, e de

187 se ter celebrado a missa, numa comprida procissão, com larga cópia de povo, e com todos os navegantes, transportando círios, após o Rei e o capitão Vasco da Gama, que seguiam na frente. E não podia eu desviar os olhos daquele poderosíssimo soberano, que era de ombros anchos e mui maciço, e que usava uma gorra de veludo verde, com uma pena branca, e se mostrava sorridente, para nos dar ânimo, acompanhando-nos num batel, até largarmos para o vasto oceano. Visitei as cargas, então, perguntando-me como iria sustentar toda aquela marinharia que, passadas as primeiras horas de saudoso pranto, começava a berrar ordens e a remexer-se, pelo convés, com uma sanha que anunciava um apetite, dentro em breve assustadoramente devorador. Botei contas à minha vida e, logo ali, inventei o que conseguisse, com a matéria de que dispúnhamos, satisfazer-lhes a barriga de portugueses esfaimados.

Com muita decepção, porque não sou homem que goste de ser enganado, e melhores provisões mereceria, em meu parecer, a frota das Índias, mirei em redor, apto para minhas tarefas. E pouco mais avistei eu, na verdade, do que fogareiros e fogareiros, por entre o feijão e as salmouras, com que se iria abarrotar aquela malta. Lá lhes fui arremedando o que adregava, porque voracidade nunca lhes falecia e, com alguma lenha, de que nos abastecêramos, e a aguada milagrosa, que fizéramos no Cabo Verde, a fortaleza que haviam ganho revigorara-lhes a vontade de mascar. E não falavam de mais do que de tortas e de guisados, de caldeiradas e de coscorões, e achegavam-se ao lume, quando as tarefas os não convocavam, e magicavam em iguarias, nem sei se autênticas, se fantasiadas, porque nisso, para além da memória das mulheres, é que lhes andava a cabeça. Nem era raro, até, que se acercassem das vitualhas, no propósito de me arrebatarem as peças, com muito afobo, das mãos, cozinhando-as eles, com os olhos tão luzentes como as brasas que as tostavam. E que mágoa que nos causava que se revelasse o nosso Capitão, homem discreto e sisudo, em tudo, tão frugal que não se confeccionava manjar, por mais escolhido e mais saboroso que fosse, que lhe motivasse, sequer, um pequeno elogio! Uma tarde, apenas, me intimou ele, a fim de que viesse à sua presença, e me declarou, muito sério, <<Mandaste-me cabrito em demaisa, atenta bem, cuida-me dessa matulagem, que eu, por mim só, cá me irei acomodando>>.

Nas calmarias da Guiné, com a equipagem em funda prostração, eis que adormeci eu, de uma feita, na coberta, em sítio bem resguardado do sol. E assaltou-me um sonho, como nunca me visitara igual, e que era assim, mais ou menos, ora escutem.

188 Estava eu deitado, muito gordo, por debaixo de uma mesa, com a nuca encostada num almofadão damasco-negro, e nela se viam frutos encetados, ovos cozidos e frangos lourinhos e, em derredor, espoja-se um ganso, meio moribundo, num gomil de estanho, e passava, apressadamente correndo, um leitão de pele estaladiça, conduzindo uma faca, prestes a cortá-lo, espetada nele. Mas o melhor de tudo era uma certa banqueta, guardada por um soldado, onde se ofereciam queijos e queijos, mais ou menos curados, que era como se nos implorassem que, logo ali, os comêssemos. E estava eu, entrementes, quase acordado, cheio de pavor de que meus camaradas, que pesadamente roncavam, à beira, despertassem de seu sono, finalmente, e me roubassem tanta abundância E era esta a visão, naquele torpor da costa da Guiné, e ansiava por que chegasse um bom presunto, destinado a mais ninguém do que a mim próprio, para que o cavalgasse eu, tripulando-o como um anjo, e que me transplantasse ele, pelos ares, para longe daquelas paragens.

Erraram os antigos, ao compararem as Índias a um gigantesco elefante, julguei eu, ao atracar, pois que me surgiam elas, à fé de quem sou, como uma elevada cascata de arroz. Sobre este, contavam os nativos, dissera o sumo deus Vishnu, apaixonado por Retna Doumila, ao apreciá-lo, em bagos de ouro, sobre o túmulo de sua armada, <<Numa planta assim, se contém toda a alegria da bela Retna, e baptizá-la-ei de vrihi>>. Na sociedade desses grãos amigáveis, saboreávamos nós o que o país nos fornecia, sentados em pequenos palanques, sob a copa das palmeiras, escutando o grunhido dos macacos travessos, que habitavam os templos de Calcutá. Apurávamo-lo muito especiosamente, com caril e com leite, com cebola e com alho e com miolo de coco, e considerávamo-nos felizes. Não havia quem caçasse os marujos, nem o nosso digno Comandante, divididos entre as negaças das fêmeas e o remanso de suas empanzinadelas, de papo para o ar, fartos e refartos, triunfantes da empresa. E não eram escassos os que, de volta de meu lume, me requeriam a receita daquele pitéu, e lá tinha o pobre do Barnabé de recitar, uma vez mais, <<Ferve-se o leite, deita-se no coco, e mete-se isto numa caçarola, e tira-se das chamas, e consente-se que repouse, e filtra-se o líquido, com uma tela fina, e refoga-se a cebola picada e o alho inteiro, em manteiga, e extrai-se o alho, logo que escuro, e acrescenta-se o caril, e mais o arroz, sobejamente lavado, e revolve-se, e tempera-se, com o sal, e adiciona-se o leite de coco, mui quente, e ainda água fervente, e volta-se a revolver, e tapa-se, e coze lentamente>>.

189 Numa noitada de estrelas, em que tudo decorria a preceito, com os príncipes de quejandas nações, eis que lobriguei eu o incomparável Vasco da Gama a uma távola de pau-de-jacarandá, sozinho e tranqüilo, com uma escudela de prata, diante de si. Estendia a mão, de dois anéis, para a arrozada branca, que aí se acumulava, a qual, na frouxa luz nocturna, como que semelhava cintilar, e trazia-a à boca, numa extrema solenidade. Minúsculos corpos alvíssimos, daquela delícia única, quedavam-se-lhe pendentes, como camarinhas, das barcaças negras. E infundia-nos tal cena, estai certo vós todos, a desmedida soberba de sermos lusitanos, papando desse modo, nas outras partes do mundo, ensinando a humanidade que quem não manduca não labora, e que não é raça famosa, dessa não há quem me arrede, a que não sabe mover, como o nosso Almirante, uma dentuça excelente, como a dele, bem afiada, também.

Mas a maior ensinança, de toda aquela navegação, foi a que tomamos, no caminho do retorno, em certa ilha escondida, com seu bosque de palmares. Vieram receber-nos, à praia mansa, moças que nem tocavam as areias, carreando bastas folhas, repletas de ananases, de peixes e de pássaros estufados. Possuíam elas nomes de outras, de que o nosso Capitão, apenas, detinha o significado, e espremiam-nos, na boca seca, sucos frios e vinhos capitosos, enquanto nos entregavam, para que nos servíssemos, abanicos com que nos refrescássemos. E, com falas desvairadas, celebravam estes festins, propondo-nos ao gostinho, a cada instante, moluscos azulíssimos e crustáceos avermelhados. Perseguíamos nós, depois de refeitos, e rolávamos, na relva, com elas, de membros ensarilhados, e eis que nos ofertavam pratadas novas, que nos obrigavam a arrotar, impetrando-lhes que nos não rebentassem, acaso, mercê da abundância dos petiscos com que nos cumulavam. E a lua, até percebida por entre as ramas, se configuravam como pomo sumarento, que se lograria trincar, se tanto nos apetecesse E os poucos que restavam, da suprema aventura, pois que o escorbuto, mui feramente, a inúmeros dizimara, se recompensavam de sua braveza, assim, e o nome, mesmo, dos territórios a que encostávamos, Angediva, Mogadoxo Melinde, Mombaça e Zanzibar, cobravam um travo de profunda doçura. Só ao abeirarmo-nos das rochas de Portugal, e porque nos não havíamos refreado, na gula com que consumíamos a comida toda, nos deparamos forçados a colocar sola de molho. E lá estava eu, Barnabé, filho de Ucanha, nas margens do Varosa, Mestre-Cozinheiro da Nau-Capitânia, a arribar a Lisboa, aos vinte e nove de Agosto de mil quatrocentos e noventa e nove, polvilhando o mais perfeitamente que alcançava, com alguma pimenta e com algum cravinho, aquela

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