• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2. A cultura como factor de (des)envolvimento

60 Idem, ibidem, p 1 61 Idem, ibidem, p 2.

grandes centros comerciais funcionam, em diferentes graus, como lugares de deslocalização da personalidade dos sujeitos.,62

O museu tem, assim, o privilégio de falar a linguagem dos tempos, que é uma linguagem inteligível para todos e em todos os lugares. O museu toma-se, assim, parte do nosso modo de vida e em breve poderá vir a constituir um complemento necessário e paralelo a todas as nossas actividades.

2.3 espaços e práticas culturais

Perante o processo de globalização, a cidade e a cultura urbana reforçam a sua autonomia própria face a influências sociais exteriores. A cidade é hoje um espaço fragmentado, multifacetado e plural onde se cruzam e combinam «universos imaginários com práticas sociais

e modos de apresentação estilizados».

Para Boaventura de Sousa Santos globalização é um «mecanismo pelo qual

determinada condição ou entidade local consegue estender a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival».63

Deste confronto entre local e global resulta uma aparente «caoticidade cultural» e cada território terá que desenvolver a capacidade e vencer o desafio de proceder à reterritorialização dos fenómenos globais face ao actual processo de desterritorialização dos fluxos económicos, financeiros, tecnológicos, informativos e culturais. O global e o local surgem então como conceitos de forte carácter relacional.

A cultura e a arte assumem, cada vez mais, um papel de relevo no desenvolvimento e na (re)valorização dos territórios e mais especialmente das cidades. A relação da cultura e da arte com a cidade tem um valor que podemos apelidar de «economia simbólica» o qual abre a possibilidade de a arte se constituir em ingrediente de identidade da cidade. Este valor está por centro presente na ideia surgida em 1983 de eleger anualmente uma (ou mais) cidade «capital europeia da cultura».

Idem, ibidem, p. 34.

63 citado por Carlos Fortuna, «Sociologia, cultura urbana e globalização», in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização: ensaios de sociologia, Oeiras, Celta Editora, 1997, p. 15,16.

Com este projecto deseja-se "promover a cultura local/regional da cidade anualmente

designada e, deste modo, pôr em evidência a natureza plural das experiências culturais da Europa".64

No auge da relação global/local, na imensidão de cruzamentos e (des)territorializações possíveis "a metrópole releva-se na pluralidade dos seus significados, polissémica,

entrecruzada, sobreposta, transgressora, estonteante, irrepetível e sem fronteiras".65

Por tudo isto, e como refere Louis Wirth, "a cidade tem sido o lugar onde, historicamente,

se fundem raças, povos e culturas e um terreno altamente favorável à criação de novos híbridos biológicos e culturais.'66

Retomando a problemática do valor da «economia simbólica» podemos constatar que ele está presente em muitas políticas culturais que têm a cidade e os territórios envolventes como objecto-alvo. O projecto denominado «Cidade/Capital Europeia da Cultura» (proposto em 1983 por Melina Mercouri, Ministra da Cultura da Grécia) tem subjacente a ideia do reconhecimento de todas as entidades culturais na sua diversidade e tenciona dar oportunidade para o desenvolvimento e promoção de uma cidade enquanto pólo cultural da/na Europa. Como grandes objectivos desta política europeia podemos apontar o sustentar de uma imagem de cultura europeia e permitir que a cultura da cidade se torne acessível a um público europeu e internacional.

Outra medida similar é a nomeação de Património Mundial pela UNESCO, título que já premiou cidades como Évora, Sintra, Porto e Guimarães e que visa assinalar espaços, territórios, monumentos, paisagens as quais «simbolizem que uma cultura se universaliza a partir de fragmentos patrimoniais específicos».

Ainda no espaço urbano podemos apontar outras políticas que visam a recuperação física e humana e a animação/vitalização de um certo território, degradado ou não, e que ancoram em actividades de carácter eminentemente cultural como sejam museus, livrarias, galerias, ateliers, espaços e actividades associadas às «novas tendências».

Carlos Fortuna, «Sociologia, cultura urbana e globalização», in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização: ensaios de

sociologia, Oeiras, Celta Editora, 1997, p. 19.

^Idem, ibidem, p. 23.

66 Louis Wirth, «O urbanismo como modo de vida», in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização: ensaios de sociologia,

Neste caso encontramos na cidade do Porto uma zona denominada por alguns de «Sono» (em analogia ao Soho de Londres), pela quantidade de galerias aí implantadas, o Bairro Alto em Lisboa ou a antiga zona portuária de Bilbau entretanto «revolucionada» pelo Museu Guggenheim.

Através desta actuação é possível constatar que a cultura urbana «tradicional»67

(caracterizada pelo domínio das elites tradicionais e pela restrição de públicos) tem vindo a dar lugar a um outro modelo com três linhas de orientação:

a) alargamento e diversificação de audiências com o crescimento das novas classes médias urbanas potenciado pelos processos de tercearização e urbanização. Estes factores conduzem ao surgimento de novos públicos com maiores níveis de instrução e de rendimento que podem resultar em procuras mais diversificadas. Contudo, registam-se fracos índices de públicos pelo que são necessários estudos mais profundos sobre os públicos;

b) profissionalização da produção e difusão cultural através da multiplicação de empresas de produção e promoção;

c) complementaridade das formas de apoio financeiro à cultura com formas mistas público/privado nos financiamentos.

Quanto ao alargamento da participação cultural pela via de formação e do ensino artístico verifica-se que tal ainda não se concretizou pois ainda não se efectivou o ensino artístico em muitos níveis de ensino.

"Numa altura em que a liberalização económica, os avanços tecnológicos e a conjuntura do comércio internacional não favorecem as prioridades culturais, caberá ao Estado...preservá- las..™

A propósito do domínio da cultura urbana recordemos Louis Wirth no texto «O urbanismo como modo de vida», in Carlos Fortuna (org.), Cidade, Cultura e Globalização: ensaios de sociologia, Oeiras, Celta Editora, 1997, p. 47: 'A preponderância da cidade, especialmente da grande metrópole, pode considerar-se resultante da sua elevada concentração em instalações e actividades industriais, comerciais, financeiras e administrativas, vias de transporte e linhas de comunicação, equipamento cultural e recreativo como a imprensa, estações de rádio, teatros, bibliotecas, museus, salas de espectáculo, óperas, hospitiais, instituições de ensino superior, centros de investigação, editoras, organizações profissionais, instituições religiosas e de assistência social."

Algumas perspectiva consideravam que os entraves à democratização cultural eram principalmente obstáculos materiais, financeiros e geográficos e que os poderes públicos através de uma política de preços e de equipamentos seriam capazes de combater.

A imagem do público indiferenciado e homogéneo é errónea mas a representação simplista entre praticantes assíduos e ocasionais não dá conta de toda a multiplicidade de combinações possíveis quanto à frequência e natureza de saídas/visitas. Não existe, por isso, uma homologia directa entre nível de conhecimento e práticas culturais.

A forte ligação entre nível escolar e interesse pela vida cultural fizeram crer que o aumento da escolaridade se iria reflectir no aumento da apetência para o consumo cultural.

Em França, depois de 30 anos de democratização escolar constata-se que aumentou o conhecimento sobre o património artístico e que a televisão se constituiu como uma segunda escola, um meio de

divertimento e de evasão e responde a uma cultura de curiosidade e de informação mas não se constitui num vector de difusão da cultura cultivada.

Nem os esforços ao nível da oferta cultural, nem a elevação dos níveis de escolaridade e do poder de compra, nem o desenvolvimento dos meios de difusão multimedia e das indústrias culturais conseguiram aumentar de modo significativo o círculo dos «amadores» da literatura, teatro ou arte contemporânea. Há que repensar as estratégias, propiciar processos de desconstrução de modo a potenciar novas inteligibilidades e porque não novas «utopias» enquadradoras da acção para este novo milénio.

A posse de um alto grau de escolaridade é garante, até certo ponto, da elevada intensidade de práticas culturais quaisquer que elas sejam: cinema, leitura, música, teatro... Contudo, não podemos esquecer que consumos culturais mais eruditos são minoritários mesmo entre os mais escolarizados (leitura de poesia, ida ao teatro, assistência a concertos, visita a museus). "Assim, a escolarização, apesar de necessária, não é condição suficiente para o acesso a bens e

práticas mais discriminativas, mesmo no interior dos grupos sociais elevados em termos de status sócio-económico e capital escolar".69

As políticas culturais têm seguido uma lógica que, pelo que foi anteriormente descrito, pode ser colocada em causa e é ela. O simples facto da multiplicação da oferta cultural e a expansão dos níveis de instrução não conduzem à resolução dos problemas de acesso à cultura e à democratização.

Perante os efeitos já descritos podemos avançar com a ideia de que a democratização cultural, quer no sentido mais lato (direito à cultura como direito de cidadania), quer no sentido mais restrito (alargamento da cultura erudita através de uma apropriação mais alargada de obras), ainda não se concretizou.

Augusto Santos Silva70, face a esta realidade, propõe uma estratégia dupla: por um lado

consolidar uma oferta cultural coerente e persistente de forma a estabilizar o público já existente, aumentando a intensidade e a frequência; por outro conquistar públicos virtuais (não-público) com potencialidades no que se refere, pelo menos, ao capital escolar.

Depois dos conturbados anos do pós-25 de Abril e da consolidação da democracia em Portugal, os anos 90 assistiram à definição de políticas culturais mais objectivas distinguindo-se duas actuações: por um lado iniciativas que visaram reforçar a imagem externa de cidades ou de países (Europália, Lisboa 94, Expo'98, Porto 2001, Euro 2004), e por outro uma preocupação em criar infraestruturas e equipamentos culturais que possibilitaram espaços de alguma concentração de actividades antes dispersas. Nesta área temos assistido a um planeamento mais cuidado e a um gradual aumento da despesa da administração pública central e local embora ainda não se tenha alcançado o tão desejado valor de 1% do PIB para a cultura. Enquanto as autarquias investem mais no sector tradicional (património, publicações, recintos e actividades socioculturais), a administração central investe mais no sector «emergente» como a música, as artes cénicas e plásticas, o cinema e a fotografia.

Face ao recuo/diminuição do investimento central é quase evidente a dificuldade das autarquias em continuarem a apoiar sozinhas as despesas com a cultura e é urgente o estímulo à criação de parcerias entre o sector público, o privado e o associativo. A ausência do Estado acaba por conduzir à concentração das iniciativas nos pontos privilegiados de Lisboa e Porto e dá mais espaço à imposição das regras do mercado.

Em Portugal, como na Europa, assiste-se à tendência da privatização e comercialização das actividades culturais que se traduz no aumento dos preços dos bens e serviços. Tal tendência reforça os «mecanismos de acesso selectivo e segregado dos públicos da cultura em

Portugal, ao mesmo tempo que fará ampliar o universo de práticas culturais que decorrem no domínio privado da domesticidade»7\ Deste modo os espaços públicos sofrem uma retracção enquanto lugares de relacionamento entre indivíduos e a cultura e reforça a segmentação e a elitização. De novo está em causa a produção de formas mais democráticas de produção e consumo de cultura.

2.5 as políticas culturais em Portugal

A política da cultura é um tema muito recente no contexto europeu e mais recente ainda se pensarmos na realidade portuguesa.

O estabelecimento de uma política cultural é uma matéria de grande complexidade técnica e política com fortíssimas implicações em outras áreas da vida do país, como o ambiente, o ordenamento do território, a educação, as relações entre os poderes local e central, a economia, o turismo, as obras públicas, etc. Não podemos deixar de, uma vez mais, reforçar a ideia de que no âmbito do desenvolvimento harmonioso e sustentado a identidade cultural inscreve-se como um dos elementos estruturantes e potenciadores desse mesmo desenvolvimento.

É em França, com o Ministro da Cultura André Malraux (década de 60 do século XX), que as políticas culturais se formalizam. O Estado usa o seu poder para intervir intencionalmente através de políticas e instrumentos práticos e específicos integrados numa ordenação geral, lógica e coerente. O património assumiu lugar de destaque nos primeiros tempos, seguindo-se medidas de apoio à criação. No presente a atenção é colocada na economia da cultura e os agentes que intervêm são plurais e envolvem o Estado, a sociedade civil (criadores e público) e o denominado 3o sector (associações, cooperativas, etc).

É pois em França, face a esta valorização da cultura, que surge o Estatuto de Excepção Cultural que visa «proteger» os bens culturais do processo de «mercadorização» típico do sistema de mercado livre.

A cultura não é um produto e por isso não deve ser sujeita às regras de comércio internacional que colocam entraves aos subsídios estatais e às quotas de difusão. Temos então o mercado assistido que salvaguarda os direitos dos artistas e onde o estado assume um papel activo na construção de infra-estruturas e equipamentos e na promoção da circulação e do acesso às obras. Promove-se a democratização na esfera da criação e no acesso à cultura.

Este estatuto é tão caro aos franceses que muito recentemente gerou-se uma grande polémica quando Jean-Marie Messier (responsável pela Vivendi Universal Enterteinment) proferiu afirmações em torno da «morte da excepção cultural francesa»72. Referia ele que a

excepção cultural à francesa não era mais válida e que hoje terá que prevalecer a diversidade cultural numa lógica mundial-nacional.

O conceito de «excepção cultural francesa» argumenta que a cultura não é um produto e que, portanto, não deve ser submetida às regras de comércio internacional que proíbem os subsídios estatais e quotas de difusão, nem deve ser guiada por princípios de rentabilidade.

Comentado esta discussão Augusto M. Seabra afirma: "Se a singularidade dos objectos

culturais não os pode fazer considerar num processo apenas mercantil, então a «excepção» só poderá ser profícua se o próprio conceito for considerado preventivamente como estímulo institucionalizado à prossecução da diversidade. Ê também um outro modo de reafirmação pluralista."73

A concretização do projecto euro, meta importante a nível monetário, político e simbólico, terá ainda que ser seguido do projecto de Constituição Europeia o que torna deveras pertinente a preservação da diversidade como parâmetro a considerar. A União Europeia, para além do seu carácter de mercado único, é um espaço político em que tem coexistido uma cada vez maior diversidade de expressões culturais, incluindo «mestiçagens» com correntes de proveniência exterior. Neste cenário, e num quadro pautado pela globalização, é cada vez mais necessário velar pela diversidade da cultura esse património comum da humanidade que é um dos factores que preserva a diversidade entre os povos.

72 Ana Navarro Pedro, «Messier defende diversidade cultural», in jornal Público, 5 Janeiro 2002, p. 42. 73 Augusto M. Seabra, «Excepção cultural? Diversidade?», in jornal Público, 13 Janeiro 2002, p. 8.

Em Portugal é com a tomada de posse do XIII Governo Constitucional e com a criação do Ministério da Cultura que se assume o compromisso de levar a cabo uma efectiva política cultural distinguindo-se assim dos governos da década anterior nos quais a "política cultural

liberal era claramente ornamental e instrumental, dominada pelo carácter pontual, fragmentário e incoerente das acções.'*4 O novo ministério assume claramente a ideia de que "a cultura

ocupa um lugar central no desenvolvimento do país e que a política cultural deve tanto quanto possível ser levada a cabo numa perspectiva transversal."75 Os objectivos então definidos

foram: dignificar a administração cultural, reforçar o estatuto da cultura, colocar a política cultural ao mais alto nível de discussão, dialogar e estabelecer sinergias com os restantes ministérios.

Definem-se cinco áreas estratégicas: o livro e a leitura, o património, a criação (artes plásticas, artes do espectáculo, cinema e audiovisual), a descentralização e a internacionalização. Outra medida logo apontada foi a do desenvolvimento da Lei do Mecenato. Alguns pressupostos assumidos são sintetizados na seguinte afirmação:

"Num país em posição de não-centralidade, e numa conjuntura em que os planos nacional e local permanentemente se entrecruzam com o plano internacional, a definição das políticas culturais necessita dotar-se de uma enorme abertura, actualidade e flexibilidade para repensar as relações entre o Estado, a sociedade civil e o mercado, numa tentativa de afirmação da diversidade própria sem localismos estéreis nem cosmopolitismos seguidistas.'*6

Uma breve resenha da evolução das políticas culturais permite-nos definir alguns cenários. Antes do 25 de Abril de 1974 as iniciativas culturais tinham um forte carácter nacionalista e historicista e pautavam a censura e a vigilância sobre as actividades criativas a bem da «saúde moral da vida portuguesa».

A denominada «primavera marcelista» realizou uma renovação na continuidade» e as mudanças efectivas não foram significativas.

No pós 25 de Abril são implementadas medidas que visam a mobilização de esforços para a erradicação do analfabetismo e a promoção da cultura nomeadamente nos meios rurais.

74 Ma. de Lourdes Lima dos Santos , As políticas culturais em Portugal: relatório nacional, Lisboa, OBS/OAC, 1998, p. 17.

"Idem, ibidem, p. 19.

Documentos relacionados