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Não é difícil concordar com o fato de que, do ponto de vista sociológico, toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz respeito a como, a partir de que, por quem, e para que isso acontece. A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social (CASTELLS, 2008, p. 23).

Segundo uma das definições constantes no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, ide tidadeà à aà ualidadeà deà id ti o ,à algo que faz com que coisas ou pessoas tenham características em comum, sendo, portanto, semelhantes. No mesmo dicionário, o termo também aparece significando o o ju toà deà a a te esà p p iosà eà ex lusivosà deà u aà pessoa ,à o que as torna únicas em relação às demais, sendo, portanto, diferentes. Enfim, duas acepções discordantes e completamente opostas.

As questões referentes à identidade são bastante polissêmicas e difíceis de serem sintetizadas, até porque elas interessam a muitos ramos do conhecimento e foram sendo elaboradas ao longo do tempo com base nos mais diversos entendimentos – sociais, culturais, econômicos ou religiosos. Assim, uma série de desvios e rupturas se configurou no decorrer do percurso, o que acabou por tornar o debate praticamente insolúvel e interminável.

Desse modo, as subjetividades individuais e coletivas, com suas complexidades e dinamicidades, também revelam um campo teórico bastante prolífico. Diversos teóricos estudaram, elaboraram e defenderam suas próprias concepções, engrossando o rol de discussões e controvérsias. Para o sociólogo jamaicano Stuart Hall, por exemplo, as noções de sujeito podem ser simplificadas e resumidas em três concepções básicas: a do Iluminismo, a sociológica e a pós-moderna.

Segundo ele, o sujeito do Iluminismo era um indivíduo centrado, uno, completo e coerente – um ser soberano, dotado de razão, consciência e ação. A sua essência estava no seu interior, que, embora se desenvolvesse no decorrer da vida, vinha à tona no momento do seu nascimento e continuava fundamentalmente idêntica, durante toda a sua existência. A narrativa do sujeito era individualista e, diga-se de passagem, masculina.

Já o sujeito sociológico, embora ainda tivesse um núcleo interior, não era autossuficiente, mas formado e modificado através do diálogo entre o indivíduo e as outras pessoas, que mediavam para ele os símbolos e valores da cultura na qual se encontravam inseridos. Nesse sentido, a identidade preenchia o interstício entre o mundo pessoal e o mundo exterior, suturando o indivíduo a todo seu conjunto de ideias, crenças, interpretações, manifestações e práticas sociais. É uma visão mais unificadora e mais estruturada, pois estabiliza, reciprocamente, os sujeitos e seus mundos culturais.

Este modelo sociológico interativo, com sua reciprocidade estável entre interior e exterior, é, em grande parte, um produto da primeira metade do século XX [...] Entretanto, exatamente no mesmo período, um quadro mais perturbado e perturbador do sujeito e da identidade estava começando a emergir dos movimentos estéticos e intelectuais associado com o surgimento do Modernismo. Encontramos, aqui, a figura do indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano de fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal (HALL, 2011, p. 32-33).

Através da multiplicação dos sistemas de significação e representação da cultura, a noção de identidade, antes imaginada como sendo essencial, plena, equilibrada e permanente, mostra-se irreal. O indivíduo, na medida em que vai se tornando progressivamente mais integrado à sua estrutura social, vai também se descontinuando e se fragmentando, modificando os padrões de referência que antes lhe garantiam certa segurança e estabilidade.

Forjada por várias identidades simultâneas que podem se apresentar, dependendo do momento e da circunstância – não apenas diferentes, mas até mesmo discordantes – a concepção de sujeito pós-moderno tem seu caráter de mobilidade e transitoriedade afirmado a toda hora, através das sucessivas reformulações e deslocamentos a que é exposto. Suas múltiplas personas travam uma luta constante entre si, na tentativa de afirmar sua hegemonia e se consolidarem.

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2011, p. 13).

A velha identidade, ligada aos fundamentos de um determinado código moral, basilares para a estabilidade do ambiente social, entra em colapso e a nova identidade que emerge nesse cenário apresenta uma plasticidade e uma abstração ímpares, não permitindo identificações automáticas nem exclusivas com quaisquer modelos, estimulando, inclusive, posicionamentos não apenas com base nas semelhanças, mas, sobretudo, fundamentados nas diferenças.

Figura 25. Marilyn, serigrafia, Andy Warhol, 1967 | Wadsworth Atheneum Museum of Art.

Tal desconjuntura da identidade, que parece, em um primeiro instante, um transtorno perturbador e difícil de remediar, também aponta para a possibilidade de novas articulações, a criação de novos enredos e a multiplicação de perspectivas. Hoje, asà identidades podem ser adotadas e descartadas como u aà t o aà deà oupa à BáUMáN,à p. 1998, 112). De tal modo, não parece mais pertinente recorrer a classificações deterministas como adjetivações capazes de compor quadros homogêneos.

Características individualizantes passam a ter, simultaneamente, significados agregadores e desagregadores. O que parece virtude, em uma análise mais superficial, também revela a fraqueza e a vulnerabilidade das identidades. O direito à multiplicidade e à diversidade pode propiciar, a partir do realce de diferenças amorfas e difusas, o não reconhecimento das similaridades, levando a um certo grau de alheamento do outro e ao encapsulamento dos indivíduos.

A identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, um objetivo; como uma coisa que ainda se precisa construir a

partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta (BAUMAN, 2005, p. 22).

Esse jogo que descentra os sujeitos também traz consigo importantes consequências políticas. O fortalecimento das individualidades tem como efeito o afastamento entre as pessoas, permitindo, notadamente nos não-lugares, maior controle das massas. Divide-se para melhor comandar, fazendo com que iguais que acreditam ser diferentes possam coabitar – muitas vezes comprimidos, oprimidos e apagados – recintos majoritariamente utilitários, sem relevantes transgressões.

Embora se sintam desconfortáveis e, porventura, cheguem até mesmo a reclamar, a frágil apropriação de tais espaços faz com que seus usuários não se revoltem ao enfrentar o metrô superlotado, as filas quilométricas dos parques temáticos ou o inclemente congestionamento dos carros nas ruas. Fragilidade essa também revelada no ambiente estéril dos aeroportos e shopping centers, que expressam autoridade disfarçada de privilégio e domínio mascarado de escolha.

Assim, a compreensão da noção conceitual de não-lugar, uma das múltiplas faces da supermodernidade, não pode e não deve restringir-se, meramente, ao campo da arquitetura, já que seu entendimento passa, inegavelmente, por questões psicanalíticas, sociológicas, filosóficas e antropológicas. Os saberes de tais disciplinas, além de algumas outras, ajudam a compor um quadro teórico poliédrico, mais robusto e de maior credibilidade.

O atual estado das coisas, ao demonstrar a fluidez e a diluição das certezas, viabiliza o controle externo, não sendo mais permitido ao sujeito, de forma consciente, alcaçar uma real autonomia. Ele passa a se enganar e, muitas vezes, repete discursos que não são exatamente seus, acreditando caminhar rumo a uma emancipação que, na verdade, molda- lhe as vontades. Tal mecanismo de abnegação da própria essência é, analogamente, apresentado no filme Persona, dirigido por Ingmar Bergman e lançado pela Svensk Filmindustri em 1966.

A perturbadora abertura, que parece uma colagem de vários elementos soltos, onde muitas referências são apresentadas freneticamente – uma crucificação de um cristo

qualquer, um pênis ereto, uma aranha peçonhenta, uma antiga comédia de cinema mudo, o abate de uma ovelha sendo sangrada e estripada – termina com um menino que acorda entre cadáveres e acaricia uma face feminina, a imagem de um rosto, de uma máscara que oculta um passado de histórias que constitui aquela mulher enquanto pessoa.

Com enredo aparentemente simples, o filme se desenvolve tomando como ponto de partida o fatídico emudecimento de uma atriz, durante a encenação de uma peça teatral – a tragédia grega Electra. A partir de então, inicia-se uma investigação para descobrir o que haveria de errado com Elizabet, personagem interpretada por Liv Ullmann. No desenrolar desse quebra-cabeça, e descartadas possíveis causas patológicas ou psicológicas, começa a ser revelada a realidade: trata-se de uma opção voluntária pelo silêncio, dada a constatação da impossibilidade do sonho de ser, e não apenas parecer; a comprovação da existência do abismo entre o que se é e o que se representa para os outros; os desejos mais íntimos apagados, a vontade de ser vista por dentro, ainda que cortada até às vísceras, ainda que isso signifique o aniquilamento do ser.

A incapacidade de realizar esse mais íntimo desejo pode levar a um suicídio que, senão consumado com a morte, passa a ser representado em vida com o silêncio e a paralisia: eis aí uma solução intermediária que eliminaria toda a mentira, traduzida pelo deliberado ato de se calar, bem como através da anulação de toda representação física daquilo que não é genuíno e não a representa verdadeiramente, uma imobilidade que elimina todas as expressões e gestos falsos. Sua ação é a apatia. Seu grito é o silêncio. Sua reação, a letargia. Agora, seu principal papel enquanto atriz é o não-papel. Passa-se a ser não sendo, ou recusando-se a ser o que não se é.

Em síntese, a opção pela abdicação da linguagem falada e dos movimentos corporais motiva-se não somente pela conscientização da sua condição de mera intérprete – sendo sintomático que a crise existencial da personagem seja desencadeada justamente durante a encenação de uma peça –, mas, sobretudo, pelo grande desejo de expor, de por para fora tudo o que está por debaixo de sua máscara, sendo a profissão de Elizabet o retrato perfeito da vida em sociedade, onde tudo o que se resta fazer é atuar, repetindo e reinterpretando discursos previamente escritos.

Figura 26. Cena do filme Persona, Ingmar Bergman, 1966.

A referência a esse filme mostra-se oportuna ao ressaltar o aspecto mimético e ressonante dos paradigmas estabelecidos pela sociedade. Os sujeitos passam, então, a elaborar um autoconceito relativamente estável, acreditando serem indivíduos donos de uma ideologia própria, com poder de decisão quanto às opções que lhe são apresentadas, sendo, na verdade, apenas sujeitos obedientes às circunstâncias e artifícios que regem as sociedades. A identidade contemporânea, capitalista especificamente, seus conteúdos simbólicos e sua estrutura psiquíca, assim como a realização ou frustração do indivíduo enquanto construto social, está calcada, fundamentalmente, na lógica do consumo que rege as relações dos homens com seus semelhantes e consigo mesmo.

Quanto mais somos estimulados a comprar compulsivamente, mais aumenta a insatisfação. Desse modo, a partir do momento em que conseguimos preencher alguma necessidade, surge uma necessidade nova, gerando um ciclo em forma de bola de neve que não tem fim. Como o mercado sempre nos sugere algo mais requintado, aquilo que já possuímos acaba ficando invariavelmente com uma conotação decepcionante. Logo, a sociedade de consumo incita-nos a viver num estado de perpétua carência, levando-nos a ansiar por algo que nem sempre podemos comprar (LIPOVETSKY, 2007, p. 23).

A busca do bem-estar por meio do prazer momentâneo em consumir – e, diga-se de passagem, sempre insaciável – retroalimenta o gozo fetichista e a constante sensação de incompletude que os indivíduos contemporâneos vivenciam em relação a um ideal utópico e praticamente inatingível, projetado a todo instante pelas campanhas de propaganda e marketing – inclusive no campo da arquitetura, haja vista a atuação dos starchitects com seus projetos de grife mercadologicamente espalhados ao redor do globo –, transformando imagens em ícones e objetos de desejo, provocando um estado de débito permanente em relação aos egos.

Jamais na história da humanidade os homens tiveram tanta possibilidade de estar conectados uns com os outros pelas redes de comunicação e jamais tiveram um sentimento tão forte de isolamento. É esse estado de solidão e de miséria subjetiva que fundamenta, em parte, a escalada consumista, que permite à pessoa oferecer a si mesma pequenas felicidades como compensação pela falta de amor, de laços ou de reconhecimento (LIPOVETSKY; SERROY, 2011, p. 56).

áà vidaà o ga izadaà e à to oà doà o su oà ... à deveà asta à se à o as:à elaà à orientada pela sedução, por desejosà se p eà es e tesà eà ue e esà vol teis à BáUMáN,à 2001, p. 90). O imperativo é mercantilizar todas as experiências em todo lugar, a toda hora ... à eduzi àosà i losàdeàvidaàdosàp odutosàpelaà apidezàdasài ovaç es à LIPOVET“KY,à ,àp.à 13). De tal modo, em vista da volatilidade e instabilidade intrínsecas de todas ou quase todas as identidades, é a capacidade de ir às compras no supermercado das identidades [...] ueàseàto aàoàve dadei oà a i hoàpa aàaà ealizaç oàdasàfa tasias (BAUMAN, 2001, p. 98). Eis um tipo de sociedade que substitui a coerção pela sedução, o dever pelo hedonismo, a poupança pelo dispêndio, a solenidade pelo humor, o recalque pela libertação, as promessas doàfutu oàpeloàp ese te à LIPOVET“KY,à ,àp.à .

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de supermercado cultural (HALL, 2011, p. 75).

Figura 27. Brand baby, digital art, Borjana Ventzislavova, Miroslav Nicic & Mladen Penev, 2004 | Tabula Rosa.

Tentar montar um quadro inteligível sobre as transformações sofridas pelo conceito de identidade ao longo do tempo, bem como identificar os fatores que mais influenciaram sua conformação até os dias de hoje, além de reconhecer os possíveis resultados de tais interações é tarefa muito árdua. Obviamente existem algumas diretrizes e aspectos recorrentes na discussão; em linhas gerais, o sistema se mantem aberto e o mosaico nunca se completa; novas contribuições teóricas sempre despontam e novas interrogações se revelam.

Depois de Teseu matar o Minotauro, seu navio foi conservado no porto de Atenas para que o povo se recordasse de seu feito heroico. Com o passar do tempo, quando uma peça de seu navio se deteriorava, esta era substituída por outra. Com tantas substituições, a certa altura, já não existia nenhuma peça original do navio. Supõe-se também que as peças originais, que foram substituídas foram montadas, e à out oà lo al,à aà o figu aç oà o igi alà doà avio.à De t eà estesà doisà avios,à ualà seria o navio de Teseu? O que teve suas partes substituídas ou o que foi remontado com as peças originais? (PLUTARCO [Grécia Antiga], In: HAWLEY, 2004).

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