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O interesse por questões identitárias teve um aumento significativo na área das ciências humanas desde a segunda metade do século XX, principalmente no que se refere às múltiplas identidades do sujeito. Não por coincidência, nesse mesmo período, o fenômeno da globalização45 culminou na exposição e constatação do caráter provisório que rege as práticas das sociedades, mas que era ignorado até o início da modernidade (HALL, 2006). Desdobramentos deste fenômeno, como a compressão espaciotemporal (GIDDENS, 1991) e o estabelecimento de uma zona de fronteira ampliada entre o tecnológico e o cultural (BUZATO, 2009) vêm tendo um impacto considerável na identidade cultural dos sujeitos.

Antes desse período, os discursos dominantes do Iluminismo propagavam que o sujeito era formado por uma única identidade que não se alterava do nascimento até a morte. Segundo Hall (2006), alguns autores argumentam que o desenvolvimento científico mundial e as mudanças sociais, econômicas e políticas que começaram no século XVI46, e se tornaram mais intensas na segunda metade do século XX47, culminaram na fragmentação do sujeito atomístico e no descentramento dos sujeitos centrados. Nessa perspectiva, o fenômeno da globalização só escancarou uma característica que, na verdade, vinha se desenhando desde a instauração da modernidade A noção de unificação e equilíbrio foi assim enfraquecida pela de um sujeito formado por várias identidades que não necessariamente viviam/vivem em harmonia umas com as outras, nem tampouco precisavam/precisam ser coerentes entre si (HALL, Ibid.).

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Kumaradivelu (2006) afirma que a globalização não é um fenômeno novo e que tem significados diferentes, de acordo com a situação mundial de cada época. Este estudo refere-se especificamente aos seus efeitos sociais a partir do século XX.

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O nascimento do protestantismo começa a desencadear mudanças no comportamento social e econômico no século XVI. A fim de ilustrar a formação das culturas de classe, Cuche (2002, p. 161) cita o estudo de Weber (1905) acerca da relação entre o pensamento protestante e o desenvolvimento do capitalismo.

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Dentre as teorias citadas por Hall (2006) que surgiram nesta época, e que podem ter contribuído para o descentramento do sujeito estão: a descoberta do inconsciente por Freud, a constatação de Lacan sobre a formação do eu a partir do olhar do outro e a teoria de Foucault sobre a submissão do sujeito a um poder disciplinar que tinha como objetivo produzir sujeitos controláveis. Hall (2006) chama a segunda metade do século XX de modernidade tardia. Para esse autor, os avanços no conhecimento humano nesta fase provocaram mudanças radicais nos modos de viver e pensar que sinalizam mais para uma continuidade do projeto da modernidade, do que para o início de uma nova era pós-moderna.

Para Bauman (2005), o reconhecimento dessa característica e o estímulo à exposição das identidades, à medida que os desdobramentos da globalização se desenvolveram, provocaram mudanças radicais de comportamento, cujas consequências eram/são imprevisíveis. Segundo esse autor, a instabilidade das identidades construídas neste século torna inviável a conclusão definitiva sobre nós mesmos e sobre os outros. A modernidade líquida proposta por Bauman (Ibid.) para denominar o período atual da história está relacionada, entre outros fatores, à constante negociação de nossas múltiplas identidades na nova dinâmica do ser e viver em sociedade. A diferença em relação a épocas anteriores está no caráter provisório das relações, assim como na rapidez com que mudanças de comportamento e sentimento acontecem.

Ademais, as identidades construídas nas relações estabelecidas no novo meio de comunicação – em páginas de perfil no Facebook, por exemplo – parecem acompanhar a dinâmica do marketing global virtual, fruto da globalização. Nela, para que a percepção de um produto/artista no espaço online esteja garantida, novas informações, promoções, mensagens, curiosidades, etc. precisam ser constantemente criadas, incorporadas, e anunciadas. As estratégias de marketing utilizadas são inovadas e reinventadas, a partir das relações mais estreitas estabelecidas entre produtor/artista e consumidor/fã na internet. Estes podem opinar e participar de discussões sobre o produto/artista em páginas de perfil oficial, que são atentamente vigiadas por seus administradores, a fim de agilizar possíveis mudanças de estratégia. Por traz da aparente democratização do ser e do dizer nesses espaços, portanto, há uma constante e crescente produção de saberes, e portanto, de poderes, sobre quem as pessoas são, como pensam, do que gostam, etc., que configura na verdade, na opinião de Buzato e Severo (2010), um deslizamento de um tipo de estratégia de dominação que Foucault (1988) denominou o poder lei, vinculado à interdição e à disciplina, para outro, que o autor chama de poder prazer, este vinculado à necessidade de os sujeitos estarem o tempo todo falando de si e fazendo circular o que pensam, o que sabem, etc.

Conforme apresentado no capítulo 1, com seu foco no estreitamento de relações entre amigos representadas na forma de redes egocêntricas, o Facebook incentiva a postagem de diversos assuntos pessoais ou não, que podem ser visualizadas e que incentivem os amigos a comentar sobre o que foi postado e sobre os comentários dos

outros sobre o mesmo assunto, criando um mecanismo poderoso de contextualização social da informação semântica rastreada pelo sistema computacional.

Nesse sentido, a compreensão de privacidade como um direito e as referências e relações comunitárias locais perderam boa parte de sua força na constituição das dinâmicas identitárias, que agora se apoiam em práticas de participação online e publicização da vida privada.

Ademais, o aumento fenomenal nas rotas e mecanismos de conexão entre pessoas de países diferentes, tanto virtuais como físicas, por exemplo, via viagens internacionais, trânsito de profissionais especializados por empresas mundializadas, ou participação em grandes eventos globais, etc., aponta para o potencial de relações em língua estrangeira para ampliar o leque de identidades e saberes disponíveis. A experimentação desse potencial acontece ao mesmo tempo em que se faz sentido das possibilidades e limitações da nova relação de tempo-espaço.

Outra característica dessa nova relação de tempo-espaço é a abertura e popularização da internet que veio acompanhada de uma homogeneização de atitudes e gostos generalizada, incentivada pelo consumismo excessivo característico da etapa atual do capitalismo globalizado48. Para Hall (2006), essa a difusão do consumismo (mesmo que na forma de um sonho) no meio virtual ajudou a construir um tipo de identidade compartilhada que ao mesmo tempo em que favoreceu o surgimento de uma homogeneização cultural, incentivou manifestações contrárias à homogeneização.

Assim como o contexto sociocultural mais amplo, as relações interpessoais (e transnacionais) estabelecidas também influenciam a construção de identidades, tanto no espaço virtual quanto fora dele, pois é o contexto relacional que determina a afirmação ou repressão de determinada identidade (CUCHE, 2002). Neste estudo, acredito que as construções identitárias verificadas nos dados e que aconteceram mais frequentemente no contato com estrangeiros de origem norte-americana, foram pautadas em subjetividades encenadas, absorvidas na fronteira entre os espaços on e offline.

48Alguns autores, dentre eles, García Canclini (2005), ressaltam a forma desigual com que a globalização

chega em países que ainda não vivem a pós-modernidade (ou modernidade tardia) em termos sociais, culturais e educacionais.

Por exemplo, a descrição de um país perfeito, e ao mesmo tempo, a necessidade de mostrar um conhecimento do global pareceu promover a construção das identidades das participantes brasileiras neste estudo. No entanto, a análise do contexto local em que vivem essas participantes mostrou que essas descrições representaram um todo (EUA, no primeiro caso e, nação brasileira, no segundo) que apagou de certo modo as especificidades das partes (estados/regiões do Brasil). Corresponderam, no entanto, às descrições das identidades culturais e nacionais que elas almejavam apresentar, facilitadas pelos recursos da internet. À medida que interagiam com os estrangeiros, construíam e reconstruíam aspectos peculiares de representação, conforme as declarações e opiniões de seus interlocutores. A autorrepresentação neste caso foi construída por partes de todos os lugares e discursos que as alcançaram em situações reais ou veiculadas pela mídia, para então serem vividas, pelo menos no imaginário, ou ainda, na experiência digital.

Simon (1979) afirma que a identidade construída é sempre fruto da negociação entre uma “autoidentidade” e uma “heteroidentidade”, sendo a primeira definida pela própria pessoa, e a segunda definida por terceiros. Uma se sobressairá à outra, dependendo da relação de forças simbólicas estabelecidas entre os grupos em contato. Muitas vezes, os grupos menos poderosos acreditam ter uma heteroidentidade negativa perante os mais poderosos, e com o intuito de mudar essa situação, usam estratégias para construírem-se de determinadas maneiras que se opõem à representação dos supostos estereótipos. Holliday (2011) argumenta que essa construção é formulada no contradiscurso que reúne elementos fortes da cultura para competir com o discurso do interlocutor.

Na história da constituição dos Estados-Nação, os símbolos culturais que legitimam o grupo nacional foram criados na formulação de estratégias que tinham o objetivo de florescer um sentimento de pertencimento a um território, e assim, de identificação com os acontecimentos e conquistas deste lugar. Criada no século XVIII, esse tipo de estratégia não surgiu por acaso, mas a partir das necessidades dos governos. Para discutir como se deu esse percurso, a próxima seção traz uma perspectiva do estabelecimento da identidade nacional na era moderna.

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