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2.2 A TEORIA DA HISTÓRIA DE JÖRN RÜSEN ENTRE A CIÊNCIA

2.2.4 Identidade e Identidade histórica

Na obra Teoria da história: uma teoria da história como ciência, Jörn Rüsen desenvolve uma longa descrição acerca da identidade histórica, diferenciando-a das concepções essencialistas de identidade, tanto no âmbito cultural/social, como em seus aspectos lógicos (identidade como aquilo que é, não podendo ser outra coisa) (RÜSEN, 2015, p. 260). Neste ponto, estaria dialogando diretamente com os pesquisadores pós-modernos e as discussões acerca da identidade.

Apesar das críticas à unidade da identidade, à sua compreensão essencialista e objetiva (por exemplo, o critério de sangue), ou “quase-objetiva” (os critérios étnico, racial, de gênero, tribal, de classe, de língua, de localidade), que resultaram no contraconceito de hibridismo, no entendimento da identidade como um mosaico e na guinada em direção à linguística, Rüsen assume o conceito de identidade a partir do seu entendimento como uma constante mínima, “uma permanência temporal do eu humano”.

O sujeito humano relaciona-se sempre com algo fora de si (em termos psicológicos, chamado usualmente de “objeto”). Isso pode ocorrer de diversas formas. Uma forma de relacionamento pode consistir em identificar- se com algo que não se é, apropriando-se dele. Com essa apropriação (em termos psicológicos chamada também de “introjeção”), o eu ganha perfil, forja suas características individuais. A subjetividade humana forma-se em uma miríade de diferentes identificações, com intensidade diversa e com alto grau de variação. Ela se constitui, por assim dizer, em inúmeras identificações pelo mundo afora. Essa realidade trivial serve, a alguns teóricos, para rejeitar uma identidade humana única. A pessoa teria não apenas uma, mas muitas identidades, contraditórias mesmo. Essa ideia distorce a questão relativa ao conceito identidade. Trata-se justamente de constatar que um mesmo eu se manifesta e sai vencedor, em meio à diversidade, dinâmica, mutabilidade e contraditoriedade dessas diferentes identificações e dos pert encimentos com ela conexos. Identidade é o retorno das identificações ao sujeito que se

identifica. O sujeito não se perde na multiplicidade das identificações. Pelo

contrário. Ele se constitui nelas e por elas, forjando assim suas características individuais. Isso vale, de início, para as pessoas individualmente, mas se aplica também, em princípio, a unidades sociais. Estas se constituem pela consciência do pertencimento como uma forma específica de identificação do sujeito com outros sujeitos, incluída a distinção para com todos os demais. (RÜSEN, 2015, p. 260, grifo do autor).

Para o autor, a vida humana estaria condicionada a que cada pessoa, por si e na relação com as demais, possua um mínimo de densidade e continuidade no processo temporal (RÜSEN, 2015, p. 260). Esta permanência no tempo consistiria de duas formas: a) na simples continuidade natural do próprio corpo entre nascimento e morte; b) no esforço humano em superar esta duração física e emoldurar sua permanência no tempo numa duração cultural que extrapole os limites da própria existência.

Deste desejo de permanecer no tempo, tem-se a conceituação de identidade: a densidade do eu como resultado de operações mentais, uma relação do indivíduo consigo mesmo, no processo de lidar – emocional e intelectualmente – consigo a ponto de durar como sujeito humano na evolução do tempo (RÜSEN, 2015, p. 260). Em outras palavras, como uma propriedade da subjetividade humana, a identidade seria o processo de identificação do sujeito aos marcos sociais e temporais, obtendo certeza de si, em meio às mudanças e contingências da sociedade.

Este processo de identificação com o tempo ocorreria em dois sentidos: interno (identidade pessoal) e externo (identidade social). A primeira identificação é uma resposta possível à pergunta “quem sou eu?”, no âmbito das próprias experiências, e se relaciona com a operação da consciência histórica de recuperar, montar e contar a própria biografia. Esta identificação/permanência de si mesmo também se relaciona com a capacidade da consciência de projetar futuros, ou seja, a habilidade de se prolongar no tempo naquilo que espera para si, deseja ou teme. No âmbito externo, a identificação temporal ocorreria a partir das histórias encontradas no cotidiano e selecionadas, as quais auxiliariam na permanência temporal a partir do sentimento coletivo de pertencimento.

Assim, podemos indicar que a identidade não é algo fixo e dado, mas uma disposição múltipla, mutável e dependente do contexto. Neste ponto, Rüsen aproxima- se das críticas pós-modernas. Contudo, afasta-se destas ao apontar que elas colocaram em dúvida a existência e a eficácia prática de uma relação estável e coerente do sujeito humano consigo mesmo.

A relação a si é elementar e obviamente evidente, por exemplo, na certeza de ser eu quem sente a dor, gosta ou não gosta de tal fragrância ou sabor, ou prefere essa ou aquela cor. Seria possível flexibilizar tal relação, ou mesmo dissolvê-la discursivamente? Isso resultaria certamente na morte psíquica da pessoa em questão. Isso não quer dizer, contudo, que a relação para consigo só se constitua de forma estática. Pelo contrário, ela está na base de todas as formas flexíveis, como relação transcendental ao sujeito. (RÜSEN, 2015, p. 263, grifo do autor).

Assim, nesta angústia de permanecer o mesmo, a identidade histórica seria o

suprassumo de uma diversidade de identificações articuladas coerentemente em perspectiva temporal, integrando acontecimentos, pessoas e fatos do passado na relação de um sujeito pessoal ou social consigo mesmo (RÜSEN, 2015, p. 263). O critério dessa coerência é uma concepção de tempo que viabilize a consistência e a vida do eu humano em sua extensão temporal, isto é, a identificação temporal deve permitir ao sujeito do tempo presente (ser-agora) recorrer ao passado no entendimento dos processos de construção, entre tantas possibilidades, da realidade presente (ter-sido), possibilitando um agir futuro (tornar-se), sintetizando, assim, experiências e expectativas. Para Rüsen, o conhecimento histórico científico participa deste processo e qualifica as instituições de identidade, como um “meio de humanização na cultura histórica” (RÜSEN, 2015, p. 265).

De modo complementar, menos teórico e mais ilustrativo, para Bodo Von Borries, este passado (conhecimento comum e principalmente o conhecimento histórico científico) colabora nas autodefinições dos indivíduos, grupos e coletivos: uma definição de identidade histórica – alinhada à teoria rüseniana – como os processos de identificação que se fundamentam nas experiências da história. Trata- se das experiências internalizadas, polêmicas ou criticadas da história regional e nacional (movimentos de independência e ditaduras, guerras de ataque e derrotas, genocídio e escravidão, libertação das mulheres e movimento da classe trabalhadora, etc), e também de particularidades locais, geracionais, específicas de gênero e classe, que auxiliam (ou definem) as proximidades entre as pessoas, os reconhecimentos, as

identificações. De modo também dialético, as “posições políticas, morais e

econômicas mostram-se decididamente como historicamente influenciadas e como influenciadoras da compreensão histórica” (BORRIES, 2016b, p. 19). O componente histórico se manifesta como a substância que nutre e potencializa as relações e identificações interculturais:

A história deve nos mostrar como ‘nós’ nos tornamos o que ‘nós’ somos, como os ‘outros’ se tornaram o que ‘os outros’ são, como as delimitações entre ‘nós’

e ‘os outros’ surgiram e se modificara e em que ‘os outros’ e ‘nós’ mesmo assim coincidem e são mutuamente dependentes. (BORRIES, 2016b, p. 29).

Neste mesmo sentido, no processo de identificação, cabe ainda ao conhecimento histórico desnaturalizar as estruturas e diferenças sociais, desconstruindo os “determinismos sociais, biológicos e raciais” que existem no cotidiano, superando as trivialidades das explicações circulares: “as coisas são porque elas sempre foram assim” (BORRIES, 2016a, p.175). Deste modo, a identidade histórica é uma forma particular de se identificar que tem por base uma “estrutura de explicações retrospectivas” e um entendimento processual da história.

E, por fim, ainda podemos apontar que, mesmo que o conhecimento histórico científico qualifique as afinidades e identificações no presente, estas identificações se dão em meio às relações sociais e culturais, portanto, carregadas de pretensões de poder e de conflitos, em contextos de interesses e dominações. Este é um entendimento de uma subjetividade que se forma em meio às tensas estruturas e contradições da vida prática, que precisam ser interpretadas constantemente nos processos de atribuições de sentido.

Acreditamos ter criado um entendimento provisório de alguns dos conceitos da teoria rüseniana. De modo sintético, destacamos: a relação entre ciência e conhecimento comum no ofício do historiador (e o destaque ao retorno e à presença deste conhecimento na sociedade como forma de orientação); o conceito de consciência histórica – e o seu contraponto, a consciência utópica –, como eixo central ao redor do qual orbitam os demais conceitos da teoria rüseniana; a maneira como Rüsen entende a expressão desta consciência histórica via as narrativas históricas; as formas variadas de recuperar o passado que implicam distintas formações identitárias; o modo como estas ideias expressas nas narrativas podem estar em relação com os dados da cultura histórica, sendo formadas de maneiras difusas, nos espaços da vida social; e o modo como diverge a identidade essencialista da identidade histórica como forma de orientação temporal e sentimento de pertencimento.

No próximo capítulo, apresentaremos uma breve discussão acerca do método de análise do projeto Jovens e a História (o software GNU PSPP), retomando as contribuições das principais publicações que já versaram sobre estes mesmos dados

e método, para, na sequência, realizarmos a nossa análise das questões selecionadas e refletirmos sobre a identificação dos jovens brasileiros de nossa amostra.

CAPÍTULO 3

O PROJETO JOVENS E A HISTÓRIA E A NOÇÃO DE PERTENCIMENTO LATINO-AMERICANO DE JOVENS BRASILEIROS

Tendo refletido sobre a concretude da integração, em seus aspectos políticos e econômicos, e sobre a ligação que existe (no âmbito teórico) entre o sentimento de pertencimento latino-americano e as ideias históricas dispostas na sociedade, o presente capítulo busca analisar os dados do projeto Jovens e a História, na intenção de identificar (ou não, ou em que proporção se verifica) este sentimento nos jovens de nossa amostra.

Num primeiro momento, realizaremos uma breve recuperação da história do projeto Jovens e a História no Brasil e uma reflexão sobre o método escolhido de coleta e sistematização dos dados – o Software GNU PSPP. Para tanto, retomaremos as principais publicações que já versaram sobre os mesmos dados do projeto, ao longo dos últimos dez anos, identificando os limites e possibilidades apontados por esta literatura quanto ao método específico de análise.

A seguir, realizaremos a nossa análise sobre as questões escolhidas, à luz das críticas e contribuições encontradas na literatura. Buscaremos também construir engates com as informações do primeiro capítulo – as quais foram apenas ilustrativas do contexto político e econômico em que se inscreveu a captura de nossos dados, mas que aqui podem nos auxiliar em nossa análise –, bem como também refletir sobre a teoria da história de Jörn Rüsen, que fundamentou a construção do projeto, e seus limites enquanto teoria de suporte para a análise dos mesmos dados. Ao final do capítulo, buscaremos traçar uma resposta provisória para a questão do pertencimento latino-americano do jovem brasileiro.

3.1 UMA BREVE ANÁLISE DA HISTÓRIA E DAS PUBLICAÇÕES DO PROJETO