Capítulo 01 - Identidade e Diferença: conceitos e representações
1.5 Identidade indígena: fortalecimento identitário, silenciamento ou negociação?
As ligações efetivadas entre povos diferentes ao longo da história resultaram em
conflitos e deram origem às relações de poder. Historicamente vimos isso acontecer com os
impérios Otomano, Persa e Romano, que impuseram sobre os povos próximos a sua forma de
ser e viver, quando não os condenaram à morte. Assim ocorreu com o imperialismo europeu a
partir do século XV, porém em escala global, quando este se apropriou de territórios e impôs
sua cultura e identidade ao redor do planeta.
Homi Bhabha (1998, p. 132), citando Macaulay (1835), aponta para uma identidade
que é forjada no meio da imposição colonial dos valores construídos pelos detentores do
poder. No exemplo utilizado pelo autor, os indianos são impregnados da cultura inglesa de tal
forma que se sentem ingleses, porém com sangue e cor que definem fenotipicamente que não
o são. Em vista disso, eles se tornam "‘uma classe de pessoas que são indianas em sangue e
cor, mas inglesas em gosto, opiniões, moral e intelecto’ em outras palavras, um imitador
educado ‘por nossa Escola Inglesa’". Esse fato muitas vezes os leva a serem discriminados,
tanto em sua terra natal como na Europa.
Esse mesmo entendimento se pode ter com relação aos povos indígenas no Brasil, que
por séculos, ou mesmo milênios, transmitiram seus conhecimentos de forma oral,
desenvolveram uma agricultura de subsistência e retiraram do meio ambiente os alimentos
para o seu dia a dia, sem destruí-lo. Com a invasão europeia, eles tiveram sua organização
social, sua forma de transmissão de conhecimentos, incluindo suas línguas e sua
espiritualidade, subalternizadas e relegadas ao exótico e ao folclore. Os conhecimentos
eurocêntricos foram impostos a esses povos, desde a chegada dos jesuítas por volta de 1530,
obrigando-os a deixarem de lado seus conhecimentos milenares para utilizarem os
conhecimentos europeus, que lhes foram passados como sendo superiores aos seus.
A presença de um instrumento estatal como a escola dentro das Terras
Indígenas/Aldeias possibilitou a esses povos reformularem seus objetivos com relação à sua
forma de ser e viver, como mencionam Nascimento e Aguilera Urquiza (2010, p. 114). Os
autores identificam, todavia, o protagonismo indígena na busca de uma escola diferenciada,
cujo propósito seria quantificar a construção de sua autonomia e sustentabilidade, trazendo,
como consequência, o fortalecimento de sua identidade.
Nesse ínterim, os movimentos sociais indígenas buscavam a utilização da escola como
ponto de apoio para a valorização do seu modo de ser. O empenho desses povos resultou na
inclusão – nos principais ordenamentos jurídicos do país, como a Constituição Federal de
1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/1996 – da garantia do
direito à sua organização social própria e à educação escolar específica e diferenciada,
inclusive com o uso da língua materna nas suas aulas e no seu material didático. O respeito
que se tem atualmente no País por esses e outros de seus direitos afetam diretamente a
concepção e a valorização da identidade dos indígenas. Esse fato pode ser comprovado pela
elevação do número deles no Brasil, conforme dados do IBGE (2010c):
Tabela 1 - Aumento da população indígena – População residente, segundo a situação do
domicílio e condição de indígena no Brasil entre 1991 e 2010.
População residente, segundo a situação do domicílio e condição de indígena – Brasil
1991/2010 1991 2000 2010 TOTAL 146.815.790 169.872.856 190.755.799 Não indígena 145.986.780 167.932.053 189.931.228 Indígena 294.131 734.127 817.963 Fonte: IBGE (2010).
Esse crescimento e essa reafirmação étnica têm provocado uma maior identificação
dos povos indígenas, inclusive com o ressurgimento de algumas etnias que haviam sido
consideradas extintas, visto que no final do século XX e início do XXI várias famílias de
etnias diferentes foram obrigadas a se integrar à sociedade envolvente ou a outras etnias
dominantes, passando a se identificar etnicamente com estas. Esse fato se deu com etnias
como a Tupinambá, de Olivença, na Bahia, e os Kinikinau, em Mato Grosso do Sul, que, por
meio da etnogênese, passaram a se reconhecer enquanto indígenas acreditando que “essa
re-descoberta do passado é parte do processo de construção da identidade”. Outro caso idêntico
pode ser percebido em matéria veiculada no site do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
4que diz que, em 2014, depois de um século, os indígenas Kinikinau realizaram sua primeira
assembleia tendo como pauta a busca do fortalecimento de sua identidade étnica.
A colonialidade tem o condão de provocar o silenciamento e a invisibilização das
identidades indígenas, enquanto as escolas indígenas, que adotam uma teoria decolonial de
valorização e de legitimação dos saberes indígenas, fortalecem e ressignificam a identidade
étnica, como afirmam Calderoni e Nascimento (2012, p. 310), inclusive possibilitando que
esse fortalecimento étnico e esse protagonismo indígena cheguem à educação superior. As
autoras afirmam que “no fortalecimento desse protagonismo uma das estratégias tem sido o
acesso destes docentes [professores indígenas] às universidades, que acabam produzindo
marcas vivenciadas nos processos de formação superior”.
Vale lembrar que esses estudantes indígenas são sujeitos diversos pertencentes a
diferentes etnias, falando línguas diferentes, com culturas e tradições também diversas, mas
que tudo isso faz parte de sua trajetória enquanto pessoa e alicerça a sua identidade de forma
política, sociocultural e intelectual. Essa identidade precisa, portanto, ser levada em
consideração pelas instituições de ensino superior e seus gestores para que esses povos não
sofram com o preconceito e a discriminação enquanto acadêmicos indígenas, motivando-os
ainda mais a subverterem a colonialidade existente na academia.
As dificuldades inicialmente apontadas pelos acadêmicos indígenas são, de modo
geral, devidas às questões financeiras, mas há também a dificuldade de adaptação ao ambiente
universitário, como apontam Marta Brostolin e Simone Cruz (2010, p. 37). As autoras,
conhecendo o contexto da problemática vivenciada pelos indígenas ao ingressarem na
educação superior, apontam as dificuldades que eram (e ainda são) muitas e de diversos
modos, como, por exemplo:
[...] de ordem financeira: material didático (livros, xerox), alimentação, transporte, moradia; de ordem pessoal acadêmica: defasagem de conteúdos, de exclusão digital, de cumprimento de prazos e horários, de compreensão de textos científicos, o que exige um pensamento mais intelectualizado valorizado pela academia, diferente do estilo de aprendizagem perceptivo do sujeito indígena que aprende através de uma pedagogia indígena comunitária, na relação com a terra, seus pares e com a natureza; e de ordem socioafetiva: dificuldade no relacionamento com colegas e professores devido à timidez e reserva, um traço característico da personalidade do aluno indígena e, muitas vezes, a discriminação e o preconceito explícito ou implícito em atitudes de desvalorização e zombarias (BROSTOLIN; CRUZ, 2010, p. 37).
Para Amaral (2010, p.370), no processo de formação acadêmica desses estudantes é
gerada uma interlocução entre os conhecimentos acadêmicos discutidos nas aulas e os
conhecimentos tradicionais e culturais adquiridos na convivência familiar e comunitária que
eles trazem consigo, com maior possibilidade de identificação étnica. Vejamos:
Constata-se que, mesmo com a hegemônica forma eurocêntrico-ocidental, hierarquizada (haja vista a gradação de prestígio dos cursos de graduação) e não indígena das universidades brasileiras, os conhecimentos adquiridos e refletidos pelos estudantes indígenas provocaram neles uma leitura mais ampliada e crítica sobre o seu papel nas sociedades indígenas e não indígenas, ressaltados por todos eles, cada qual com o viés político-pedagógico dos seus cursos. Essa constatação se evidencia de forma mais contundente por muitos acadêmicos indígenas que passam a articular os conhecimentos acadêmicos debatidos na universidade com as necessidades, realidades e possibilidades de autossustentabilidade de suas comunidades. Constata-se nos relatos a ênfase em aspectos da cultura indígena que passam a ser redescobertos, pautados e afirmados pelos estudantes indígenas em seu processo de formação, gerando uma positiva e afirmativa interlocução entre os conhecimentos acadêmicos discutidos e os conhecimentos tradicionais e culturais.
Há, segundo Amaral (2010, p. 412) duas formas pelas quais os indígenas se
identificam quando ingressam na educação superior. Elas são descritas como pertencimento
acadêmico e pertencimento étnico-comunitário. Para ele, essas formas de pertencimento se
entrelaçam e se complementam, de modo que o pertencimento acadêmico à universidade pode
demandar a vinculação com sua família, sua comunidade de origem e sua identidade étnica.
Não se pode, pois, ignorar que:
Os vínculos de pertencimento que passam a ser construídos e dinamicamente reelaborados nesses espaços podem ser pautados ora nas expectativas, necessidades e contradições inerentes ao sistema capitalista – fundamentalmente nas lógicas da competitividade, da acumulação, do individualismo e da inclusão perversa -, ora nas formas de socialização vivenciadas nas terras indígenas (AMARAL, 2010, p. 62).