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O deslocamento epistêmico trazido pelo grupo Modernidade/Colonialidade

Capítulo 01 - Identidade e Diferença: conceitos e representações

1.4 O deslocamento epistêmico trazido pelo grupo Modernidade/Colonialidade

A construção do conhecimento científico que temos atualmente surge com a

obediência epistêmica da matriz colonial que por muito tempo reforçou apenas o discurso da

igualdade, deixando de lado as diferenças e todas as consequências herdadas de um passado

colonial de opressão. Nesse sentido, Quijano (2005, p. 237) afirma que, apesar da existência

de outras grandes civilizações, como “as chamadas altas culturas (China, Índia, Egito, Grécia,

Maia-Asteca, Tauantinsuio) anteriores ao atual sistema-mundo”, a cultura europeia se torna

notável por ter sido capaz de “difundir e de estabelecer essa perspectiva histórica como

hegemônica dentro do novo universo intersubjetivo do padrão mundial de poder”. Temos,

assim, o primeiro padrão de poder efetivamente global da história conhecida, o que pode ser

explicado da seguinte forma:

Os dominadores coloniais de cada um desses mundos não tinham as condições, nem provavelmente o interesse, de homogeneizar as formas básicas de existência social de todas as populações de seus domínios. Por outro lado, o atual, o que começou a formar-se com a América, tem em comum, três elementos centrais que afetam a vida cotidiana da totalidade da população mundial: a colonialidade do poder, o capitalismo e o eurocentrismo (QUIJANO, 2005, p. 239).

O eurocentrismo refere-se ao modo de produção do conhecimento, a partir de uma

racionalidade ou perspectiva própria, particular e específica de conhecimento que “se torna

mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou

diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo”.

Vejamos:

A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir conhecimento se reconhecem como eurocentrismo. (QUIJANO, 2005, p. 243)

A hegemonia na produção de conhecimento eurocêntrico, também denominado

Colonialidade do saber (QUIJANO, 2000, p. 211), recebe o enfrentamento feito pela teoria

Pós-colonial como forma de estabelecer a ruptura epistemológica que busca alterar os

métodos e pressupostos cognitivos da ciência eurocêntrica, visto que “o padrão de poder

baseado na colonialidade implicava também um padrão cognitivo, uma nova perspectiva de

conhecimento dentro da qual o não europeu era o passado e desse modo inferior, sempre

primitivo”. (QUIJANO, 2005, p. 246).

Nessa perspectiva binária e dualista, ainda segundo o autor, os demais povos, que não

os europeus, seriam de raças diferentes e inferiores a estes, uma vez que a modernidade e a

racionalidade são colocadas como experiências e produtos oriundos do sistema mundo

capitalista/eurocêntrico, que excluía os indígenas até mesmo das novas categorias que

surgiram para contrapor o eurocentrismo. Isso, para o autor, configura-se como a

Colonialidade do Ser:

Deste ponto de vista, as relações intersubjetivas e culturais entre Europa, quero dizer, Europa Ocidental e o resto do mundo, foram codificados em um jogo inteiro de novas categorias: Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno. Em suma, Europa e não-Europa. Incluso assim, a única categoria com a honra de ser reconhecida como o Outro da Europa e "Ocidente", foi "Oriente". Não há "índios" da América, tampouco os "negros" da África. Estes eram simplesmente "primitivos". (QUIJANO, 2000, p. 127, tradução nossa).

Essa colonialidade do ser é apontada por Maldonado-Torres (2007, p. 133, 144) como

a desumanização racial da modernidade: “falta de humanidade nos sujeitos colonizados”, que

reflete na desvalorização, na subalternização dos sujeitos e, consequentemente, nos modos de

ser, saber e viver desses povos, distanciando-os da modernidade, da razão e das faculdades

cognitivas.

Importante ressaltar que o eurocentrismo propõe que a Europa foi o início da

civilização moderna e, por isso mesmo, do conhecimento válido como se tem hoje. Silva e

Backes (2015) salientam, todavia, que as primeiras universidades surgiram no continente

Africano, entre os séculos IX e X, no Marrocos e no Egito, embora a referência que se tem de

universidade seja europeia.

Desde suas origens, a academia moderna, envolvida com a formação de uma classe privilegiada e intelectualizada, corresponde aos interesses do capitalismo e do Estado-Nação. O modelo de universidade moderna, fundamentado no iluminismo, na modernidade, na superioridade do conhecimento científico eurocentrado e no ensino associado à pesquisa, ainda inspira as universidades atuais (SILVA; BACKES, 2015, p. 121).

Também Walter Mignolo (2008) chama atenção para a constituição geopolítica do

conhecimento, termo que remete à localidade de origem deste, há séculos reconhecendo

apenas a Europa/Ocidente como lócus de sua produção. Essa ideia reforça a necessidade de se

ter uma opção decolonial que necessariamente deverá ser também epistêmica, de modo que se

possa desvincular a origem do conhecimento, partindo-se da aceitação da Europa apenas

como fonte de conhecimento. Nas palavras do autor:

A opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento. Por desvinculamento epistêmico não quero dizer abandono ou ignorância do que já foi institucionalizado por todo o planeta (por exemplo, veja o que acontece agora nas universidades chinesas e na institucionalização do conhecimento). Pretendo substituir a geo- e a política de Estado de conhecimento de seu fundamento na história imperial do Ocidente dos últimos cinco séculos, pela geo-política e a política de Estado de pessoas, línguas, religiões, conceitos políticos e econômicos, subjetividades, etc., que foram racializadas (ou seja, sua óbvia humanidade foi negada) (MIGNOLO, 2008, p. 290).

O autor pontua ainda que quando se refere ao “Ocidente” denota a geopolítica do

conhecimento, de modo que a opção decolonial tem como foco principal aprender a

desaprender, esse conhecimento ocidental construído ao longo de séculos de imposição

colonial. Nesse sentido, Mignolo (2008, p. 288) afirma que, para que se alcancem os objetivos

da descolonização, seja ela política ou epistêmica, deve haver um movimento de

desobediência, visto que aqueles que são classificados como inferiores o são devido à negação

do direito ao reconhecimento de suas qualidades e conhecimentos que lhes foi feita ao longo

de séculos, em detrimento da valorização e do permanente domínio dos “conceitos modernos

e eurocentrados, enraizados nas categorias de conceitos gregos e latinos e nas experiências e

subjetividades formadas destas bases”.

Com base nesse entendimento, o grupo M/C se empenha e utiliza o conhecimento

vindo das populações originárias da América Latina, valorizando os conceitos, a metodologia

e a organização social, como é apontado por Walsh (2009) quando trata da interculturalidade

em sua vertente crítica. Vejamos:

Falar de uma política epistêmica da interculturalidade, mas também de epistemologias políticas e críticas, poderia servir, no campo educativo, para colocar os debates em torno da interculturalidade em outro nível, transpassando seu fundo enraizado na diversidade étnico-cultural e focalizando o problema da “ciência” em si; isto é, a maneira através da qual a ciência, como um dos fundamentos centrais do projeto da modernidade/colonialidade, contribuiu de forma vital para o estabelecimento e manutenção da histórica e atual ordem hierárquica racial, na qual os brancos, e especialmente os homens brancos europeus, permanecem em cima. Permite considerar a construção de novos marcos epistemológicos que pluralizam, problematizam e desafiam a noção de um pensamento e conhecimento totalitários, únicos e universais, partindo de uma política e ética que sempre mantêm como presente as relações do poder às quais foram submetidos estes conhecimentos (WALSH, 2009, p. 24-25).

Como forma de intervir nessa construção de novos marcos epistemológicos a autora

destaca a revitalização e revalorização dos saberes tradicionais, demonstrando que estes

saberes já foram valorizados em determinados momentos históricos e que apresentam

condições de ler, compreender e atuar no mundo contemporâneo.

A autora critica as práticas atuais que visam a incluir as categorias e os sujeitos até

então excluídos e colonizados. Essas práticas suscitam um cumprimento simbólico das

normas regulamentadoras nacionais e internacionais de inclusão dessas pessoas, porém sem

dar a eles a condições de superar a exclusão, de modo que eles passam a ser “excluídos na

inclusão”. Segundo ela:

A política multicultural atual sugere muito mais do que o reconhecimento da diversidade. É uma estratégia política funcional ao sistema/mundo moderno e ainda colonial; pretende “incluir” os anteriormente excluídos dentro de um modelo globalizado de sociedade, regido não pelas pessoas, mas pelos interesses do mercado. Tal estratégia e política não buscam transformar as estruturas sociais racializadas; pelo contrário, seu objetivo é administrar a diversidade diante do que está visto como o perigo da radicalização de imaginários e agenciamento étnicos. Ao posicionar a razão neoliberal – moderna, ocidental e (re) colonial – como racionalidade única, faz pensar que seu projeto e interesse apontam para o conjunto da sociedade e a um viver melhor. Por isso, permanece sem maior questionamento (WALSH, 2009, p. 20).

A perspectiva crítica da interculturalidade visa justamente a questionar o modelo de

sociedade vigente, que critica as relações estrutural-colonial-capitalista, no intuito de

transformá-las. Walsh (2009, p. 22) ressalta o sentido contra-hegemônico da

interculturalidade crítica, visto que ela “tem suas raízes e antecedentes não no Estado (nem na

academia), mas nas discussões políticas postas em cena pelos movimentos sociais”, fato que é

relevante quando tratamos dos povos indígenas no Brasil. De forma resumida, a diferença

entre a interculturalidade funcional e a crítica, segundo a autora, estabelece que:

O interculturalismo funcional responde e é parte dos interesses e necessidades das instituições sociais; a interculturalidade crítica, pelo contrário, é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização (WALSH, 2009, p. 21-22).

Com relação à influência dessa nova forma de produção e de conhecimento sobre as

identidades, Quijano (2005, p. 234) afirma que a Europa tinha o controle do mercado mundial

e pôde, assim, impor seu domínio colonial sobre todas as demais populações ao redor do

planeta, implantando seu padrão específico de poder. Para essas populações colonizadas, “isso

implicou um processo de re-identificação histórica, pois da Europa foram-lhes atribuídas

novas identidades geoculturais”.

Dentre essas novas identidades encontram-se os povos indígenas, que foram

deslocados de suas identidades ao longo do tempo, por meio de processos de colonização,

integração e/ou extinção bastante severo durante séculos, o que resultou numa drástica

redução do número de povos e línguas indígenas desde a invasão europeia até os dias atuais.

Para subverter essa lógica colonial, foi preciso acompanhar as mudanças ocorridas na

sociedade, como o acesso à educação formal e às tecnologias, fato que em determinado

momento foi assumido por algumas etnias como instrumentos de luta na busca por

reconhecimento étnico. Nascimento e Vieira (2011, p. 04), sobre o papel da escola, afirmam

que, apesar de promover “uma educação inadequada para as populações indígenas – por

fomentar uma educação para a mudança, para a ruptura com a sua tradição – por outro lado,

não se pode negar, na atualidade, a necessidade da escola nas aldeias”.

Galgando os degraus da educação formal, foi possível chegar mais recentemente à

educação superior, uma experiência ainda vivenciada por poucos, mas que já possibilita que

se conheçam as identidades e os efeitos relativos à passagem dos indígenas pela educação

superior, realidade que será enfocada mais adiante.

1.5 IDENTIDADE INDÍGENA: FORTALECIMENTO IDENTITÁRIO, SILENCIAMENTO