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EVANGÉLICOS E POLÍTICA NO BRASIL: SUPERANDO FRONTEIRAS

3.2 Identidade pentecostal e política

Em geral, as análises sobre o pentecostalismo chamam a atenção para a ênfase ao autocontrole moral e emocional que os fiéis expressam no cotidiano. Em alguns casos, atribui-se a esse comportamento mais rígido a origem do distanciamento das tensões políticas. Rolim (1985) aponta a semelhança entre a matriz norte-americana protestante e o

54 pentecostalismo no que se refere ao proselitismo religioso e à rigidez moral que por sua vez leva a certo atavismo político.

Dada a própria importância da conduta pessoal na construção da identidade pentecostal, as análises do pentecostalismo costumam tocar na moralidade familiar destes grupos com alguns pesquisadores interpretando a ênfase nesta temática como sinal de alienação política (ROLIM, 1985; D‟EPINAY, 1970). Os pentecostais, por várias décadas no Brasil, foram considerados distantes das questões políticas em seus diversos segmentos. No entanto, a preocupação do grupo com os problemas sociais esteve presente desde a chegada dos primeiros missionários ao país num plano mais assistencial do que político (MACHADO, 1996).

Segundo Aquino Júnior (2008), a relação entre religião e política é um fato historicamente verificável, visto que a teologia cristã comporta em sua estrutura de revelação e fé elementos políticos. Dessa maneira uma configuração do religioso opera segundo uma lógica de deslocamento de fronteiras e ressegnificação ou redescrição de práticas. O efeito mais marcante destes dois processos é o de que o aprofundamento da experiência religiosa como algo pessoal, individual, íntimo se dá ao par com uma desprivatização ou publicização do religioso.

No contexto do pós-Segunda Guerra, reinou soberana uma episteme, fundada num dualismo entre espaço público e vida privada, política e religião, profano e sagrado. Mesmo entre correntes de pensamento crítico do liberalismo, este dualismo colocava-se com força: estava reservado à religião um papel subordinado na configuração da sociedade contemporânea (CASANOVA, 1994)

Em matéria de especificação deste papel no campo político, a episteme liberal definia três grandes linhas normativas: (i) primeiramente, a de que os assuntos e convicções religiosas dizem respeito à esfera privada dos grupos, e indivíduos, mantendo aí sua legitimidade ainda quando envolvendo práticas exóticas ou repulsivas a uma mentalidade moderna e letrada (CASANOVA, 1994)

Em seguida, sendo a religião um assunto privado, e em vista de assegurar a liberdade necessária para que decisões de caráter público sejam implementadas visando à justiça, ou o bem-estar do maior número, duas outras linhas normativas são requeridas: (ii) a neutralidade do estado (tomado como sinônimo do espaço público) diante das disputas pela verdade das questões religiosas das demandas por proteção ou favorecimento feito por grupos e instituições religiosas ao estado; e (iii) a separação entre igreja e estado, no sentido de autonomia institucional de um

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domínio em relação ao outro sob o amparo de algumas garantias constitucionais como liberdade de consciência e culto, e independência das autoridades civis e políticas em relação à autoridade eclesiástica (BEYER, 1994, p. 189)

Este quadro se reproduziu amplamente. O modelo ocidental de democracia e economia liberal seduziu elites nacionais ciosas de alcançar a independência, ou o desenvolvimento. Mas, aos poucos, foi se acumulando uma evidência contrária às expectativas, à eficiência do marco conceitual e institucional liberal da politização do catolicismo e do protestantismo latino-americanos nos anos 1970 e 80, mas, sobretudo, do crescimento vertiginoso dos pentecostais, mais precisamente no Brasil, cuja área de abrangência envolve principalmente as capitais do país (GOMES, 1990).

Esse crescimento ocorreu principalmente na periferia das metrópoles, onde a ineficiência do estado em oferecer serviços públicos, como saneamento básico, segurança pública, favorecem o trabalho das igrejas pentecostais que ali se alojam, e exercem por vezes o papel do estado, através de seus projetos e programas sociais voltados para a população local “As igrejas pentecostais chegam aonde a Igreja Católica não entra. E estimulam a incorporação de pessoas à sociedade através de diferentes redes de sociabilidade” (IDEM, 1990).

Esta desprivatização da religião que leva a uma força social e política é, a nosso ver, importante, se estamos pensando na relação religião e política. Se há de fato alguma volta aqui, para efeito de nossa discussão, é a da religião à esfera pública; uma penetração ou reabertura dos espaços públicos institucionalizados ou não à ação organizada de grupos e organizações religiosas, como é o caso do atual pentecostalismo brasileiro e não tanto um reavivamento da adesão religiosa, que teria quase desaparecido e regressaria à esfera da cultura (PIERUCCI, 2000, p. 79).

Diante dessas colocações, citemos o seguinte princípio para abordar o pentecostalismo:

Trata-se tanto de um fenômeno sócio-religioso mundial quanto de um movimento alternativo na vida e missão da Igreja cristã. Partimos de uma premissa básica: o pentecostalismo é, antes de tudo, um movimento religioso e não uma “denominação” ou organização religiosa. Embora existam comunidades religiosas autodenominadas “pentecostais” e grupos religiosos conhecidos como “carismáticos”, no seio do protestantismo e do catolicismo, é o caráter de movimento que os dinamiza e produz suas expressões orgânicas e visíveis (MORANTE, 1996, p.49)

Consideraremos brevemente alguns pontos levantados por Mariano (2005), uma vez que os pentecostais tornaram-se, após a redemocratização, um player político importante e, com isso, atores co-responsáveis, portanto, pelos desdobramentos futuros de nossa democracia:

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O campo religioso brasileiro sofreu profundas transformações nas últimas décadas. A consolidação da liberdade religiosa, a pluralização do campo religioso, o enfraquecimento do poder religioso da Igreja Católica e a redemocratização do Brasil contribuíram decisivamente para transformar as relações dos grupos religiosos entre si e com a política partidária e o Estado. A acelerada expansão numérica dos evangélicos constitui fator dos mais relevantes para compreender parte das mudanças ocorridas recentemente nos campos religioso e político brasileiros (MARIANO, 2005, p.1)

Neste debate,

A ampliação da oferta religiosa e a competição entre as diferentes religiões, notadamente nos casos, em que uma religião estabelecida historicamente mantinha quase um monopólio da adesão, e procurava falar em nome da sociedade como um todo, gerou uma busca por assegurar espaços de representação política, por parte dos grupos religiosos emergentes, traduzidas quer em disputas eleitorais, quer no investimento de recursos públicos em iniciativas educacionais, filantrópicas ou mesmo em demandas internas das organizações religiosas (BURITY, 2008. p. 32)

Esses indicadores apontam para uma crescente oscilação e indecibilidade da fronteira religião/política, pois, nas condições em que as demandas são apresentadas,

acabam quase sempre em processos inconclusos, reversíveis e sujeitos a polêmicas que se arrastam por anos a fio, acionando frequentemente o sistema judiciário. Igrejas ou organizações civis e políticas publicam manifestos, apóiam abertamente candidatos a cargos eletivos, organizam manifestações de rua. O poder executivo conclama organismos religiosos a atuarem diretamente de forma subsidiária ou substitutiva na implementação de programas sociais em áreas como educação, saúde ou geração de emprego e renda (em moldes que vão das parcerias às políticas de desinvestimento estatal na área social, que transferem a organismos privados a oferta e gestão de serviços de interesse público).

Organizações da sociedade civil crescentemente se autodefinem como um “terceiro-setor”, público e não-estatal, com pretensões de interferir diretamente nas decisões políticas e nas práticas de mercado, e contam os organismos religiosos entre os que compõem este setor (NOVAES, 2002). Diante disso, segue:

As igrejas pentecostais e neopentecostais não crescem, portanto por serem repositórios passivos de indivíduos carentes, e desajustados, em estado de “anomia”, ou coisa que o valha, a despeito da difusão dessa imagem por um sem-número de reportagens e até por velhas teorias sociológicas, Crescem aceleradamente porque trabalham muito e sabem explorar, em seu benefício institucional, os contextos socioeconômico, político, cultural e religioso onde estão inseridas. Crescem porque aproveitam, eficientemente, as oportunidades advindas da ampliação da liberdade e do pluralismo religiosos, da rápida e maciça difusão dos meios de comunicação, da urbanização e da destradicionalização cultural, da abertura política e da redemocratização do país. Crescem porque, ao lado disso e do ativismo militante da parte considerável dos fiéis, sobretudo do sexo feminino, esforçam-se em oferecer respostas mágico-religiosas- às vezes em deliberada continuidade com elementos da religiosidade popular – para fiéis e virtuais adeptos interessados em superar, pela via ou com ajuda religiosa, problemas decorrentes do agravamento, nas últimas décadas,

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das crises sociais e econômicas, do aumento exponencial da violência, da criminalidade e da insegurança (MARIANO, 2005, p 72).

Mariano (2005) destaca em seus estudos uma diversidade no pentecostalismo brasileiro, e uma expansão diferenciada entre as denominações.

Apesar do crescimento institucional do pentecostalismo brasileiro ser muito desigual – isto é três igrejas – Assembléia de Deus, Congregação Cristã no Brasil e Universal do Reino de Deus que juntas concentram 74% dos pentecostais, isto é 13 milhões de pessoas. Isso permite atribuir o êxito eleitoral da Assembléia de Deus e da Igreja Universal, resulta, em parte de seu peso demográfico. Tamanha reviravolta no comportamento dos pentecostais remonta aos meados dos anos 1980, numa estratégia competitiva e de inserção social, várias igrejas pentecostais trocaram, repentinamente, o lema quietista “crente não se mete em política” pelo jargão corporativo “irmão vota em irmão”, baseado, tal como o mote anterior; não obstante a guinada radical, em interpretações bíblicas. Os expoentes desse ideário defenderam, num tom arrivista e triunfalista, que os evangélicos deveriam deixar de ser “cauda” para se tornar “cabeça” (MARIANO, 2005)