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2. Uma perspectiva cultural sobre as representações

2.3. Identidade e representação: o olhar sobre o mundo e sobre si mesmo

Ao aceitar que o mundo moderno é cada vez mais mediatizado, com indivíduos que inclusive preferem buscar informações e conteúdo simbólico nos meios de comunicação do que nas pessoas com quem interagem diretamente no dia a dia (THOMPSON, 2005, p. 125), os Estudos Culturais Britânicos dão o devido valor à pesquisa da identidade – tanto os que se referem às suas características na sociedade atual quanto aos que focam nas formas, hegemônicas ou não, que esta assume ou aparece na mídia. Afinal, a mídia é, entre outras instituições, uma grande formadora e propagadora de identidades, pois é por meio dela que “indivíduos puderam experimentar eventos, observar outros e, em geral, conhecer mundos –

36 tanto reais quanto imaginários – situados muito além da esfera de seus encontros diários” (THOMPSON, 2005, p. 233).

Como ponto inicial para esta discussão, é preciso destacar o caráter móvel que a identidade assume na modernidade – ou pós-modernidade, como rotulam alguns autores. Kellner (2001, p. 295) descreve-a como “mais móvel, pessoal, reflexiva e sujeita a mudanças e inovações”. Bauman (2004) concorda e acredita que, ao ganharem livre curso, cabe a cada indivíduo capturar as identidades em pleno voo, usando seus próprios recursos e ferramentas (BAUMAN, 2004, p. 35). Esta nova flexibilidade deve-se, em grande parte, à multiplicação dos sistemas de significação e representação, que, por sua vez, estão intrinsicamente conectados com o desenvolvimento dos novos meios e da globalização. Hall (2002) defende que, na pós-modernidade, as identidades são transformadas e multiplicadas na mesma medida que os próprios sistemas culturais aumentam e se modificam:

A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (...) À medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2002, p. 12-13).

Assim, mostrando um sincronismo entre as ideias dos principais autores que abordam este tema, Kellner (2001, p. 296) também afirma que “podemos escolher criar – e recriar – nossa identidade à medida que as possibilidades de vida mudam e se expandem ou se contraem”, o que vai ao encontro dos pensamentos de Hall (2002), que diz não existir uma identidade mestra: os indivíduos não são mais definidos apenas em termos de classe ou nacionalidade, por exemplo. São, sim, um conjunto mutável de identidades diversas. Além disso, Kellner (2001, p. 296-297) constata certas características da identidade na sociedade contemporânea, tais quais sua ligação com a individualidade, enquanto tradicionalmente era restrita à função da tribo; sua mutação constante em novas formas; a mediação do consumo para a sua criação; e sua dependência do outro para obter um reconhecimento socialmente válido. Tudo o que endossa seu caráter móvel, mas, por outro lado, que pode ser problemático e frágil.

Segundo Bauman (2004, p. 30), quando a identidade perde demais seus pontos fixos, a identificação e a sensação de pertencimento se tornam cada vez mais importante para os indivíduos, que acabam buscando tal “conforto” em grupos variados, por exemplo os eletronicamente mediados, que são fáceis de entrar e também de serem abandonados. É por

37 isso que, com a perda de referências sólidas, a identidade torna-se tão frágil na perspectiva destes autores:

À medida que o ritmo, as dimensões e a complexidade das sociedades modernas aumentam, a identidade vai se tornando cada vez mais instável e frágil. Nessa situação, os discursos da pós-modernidade problematizam a própria noção de identidade, afirmando que ela é um mito e uma ilusão. (KELLNER, 2001, p. 298)

A identidade no que seria a modernidade fluida – aquela em que nada se mantém por muito tempo, mudando pela influência até das menores forças – chegou a ser chamada de “manto leve pronto a ser despido a qualquer momento” por Bauman (2001, p. 37). Por esse motivo Hall (2002) vê a dificuldade em “conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural” (HALL, 2002, p. 74). Isto quer dizer que, no cenário globalizado, a força das identidades culturais sólidas e unificadas, como seria o caso da identidade nacional, pode estar em declínio, dando um inédito espaço às identidades globais. O autor, na verdade, defende que em vez de pensar as identidades culturais como unificadas, deveríamos pensá-las como representantes da diferença como unidade de identidade: “ elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural” (HALL, 2001, p. 61-62). A ideia reforça o argumento de que tanto as identidades nacionais quanto quaisquer outras não são inatas, mas formadas e transformadas no interior da representação. Se alguma vez responderam ao mito da unificação, foi por meio de construções simbólicas.

Embora este processo de formação da identidade possa significar a “supressão forçada da diferença cultural” (HALL, 2002, p. 59), o que nos leva novamente à questão de cultura como embate entre dominação e resistência, Bauman (2001, p. 21) acredita que ela deva ser construída e buscada, ou seja, ser ao menos um objetivo e não um fator predeterminado. Para ele, “a identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais” (BAUMAN, 2001, p. 21).

Por representações, pode-se entender “o uso dos variados sistemas significantes disponíveis (textos, imagens, sons) para ‘falar por’ ou ‘falar sobre’ categorias ou grupos sociais no campo de batalha simbólico das artes e das indústrias da cultura” (FREIRE FILHO, 2004, p. 45). Hall (1997, p. 15) completa dizendo que representação é uma parte

38 essencial do processo pelo qual os significados são construídos e compartilhados entre os membros de uma cultura. Em outra obra, Hall ainda fala que “sempre necessitamos de sistemas para representar o que o real significa para nós e para os outros” (HALL, 2009, p. 171), já que é por meio de tais sistemas que experimentamos o mundo, não existindo sequer experiência fora das categorias de representação. São consideradas, então, “processos de substituição de objetos por diversos tipos de símbolos e discursos, por meio dos quais os seres humanos tomam consciência dos objetos do mundo empírico ou imaginário” (SOARES, 2009, p. 263).

Intrinsecamente ligada à construção de identidades, portanto, as representações – assim como a cultura, tal qual foi abordado neste capítulo – se constituem de um campo de batalha cujo papel pode ser duplo: agir para a dominação ou para a resistência. É o que podemos resumir com as palavras de Freire Filho, Herschmann e Paiva (2004), que dizem que as representações, em específico encontradas nos meios de comunicação, podem operar no sentido de uma integração sociocultural de caráter heterogêneo ou, por outro lado, desenvolver processos de estigmatização. Assim, reassegura-se a importância dos estudos de representação, que permitem avaliar “de que maneira gêneros e artefatos culturais funcionam tanto para forjar a aceitação do status quo e a dominação social como para habilitar e encorajar os estratos subordinados a resistir à opressão e a contestar ideologias e estruturas de poder conservadoras” (FREIRE FILHO, 2005, p. 19).