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3 IDENTIDADE: ENTRE A PSICOLOGIA E A SOCIOLOGIA

3.2 IDENTIDADE SOB A PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA

Consideramos importante a compreensão do constructo identitário sob a perspectiva das teorias sociológicas, uma vez que tais concepções frequentemente se destacam no meio acadêmico quando se trata de estudos voltados para as questões do processo de formação da identidade profissional. Ao mesmo tempo, justificamos a utilização do pensamento sociológico nesta pesquisa, destacando a sua pertinência e os seus possíveis diálogos com os campos conceituais da Psicologia. Nesse sentido, refletimos aqui o conceito de identidade na perspectiva sociológica, apresentando especificamente as contribuições de Castells (1999) e Dubar (2005) como representantes conceituais da corrente teórica que fundamenta o constructo identitário a partir da socialização.

Castells (1999) distingue dois tipos gerais de identidade: individual e coletiva, concentrando seus estudos basicamente na compreensão do constructo identitário coletivo, sem deixar de considerar a identidade individual como um fruto da identidade coletiva. O autor entende identidade como o conjunto de significados e experiências acumuladas historicamente por um povo. Para ele, os atributos culturais se inter-relacionam e prevalecem sobre outras fontes de significado, perpetuando modos e maneiras coletivas de ser. O significado cultural, que confere e marca a identidade, organiza-se em torno de uma identidade primária que estrutura as demais de modo autossustentável ao longo do tempo e do espaço.

A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço (CASTELLS, 1999, p.23).

De acordo com o autor é necessário estabelecer uma “distinção entre identidade e o que tradicionalmente os sociólogos têm chamado de papéis sociais” (p.22). Para ele, os papéis sociais são definidos e estruturados pelas organizações que instituem as sociedades. Nesse sentido, identidades são consideradas fontes de significado mais importantes que os papéis, podendo se dizer, em termos mais genéricos “que identidades organizam significados, enquanto papéis organizam funções” (p.23).

Castells (1999, p.23) afirma que do ponto de vista sociológico não é difícil compreender que toda e qualquer identidade é construída. Para ele, o principal

questionamento sobre o processo de constituição das identidades diz respeito “a como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece”. Aventa a hipótese de que o conteúdo simbólico das identidades, bem como seu significado, em grande medida é construído nas relações de poder e dominação. Nesse sentido, o autor propõe uma distinção entre três formas de construção das identidades:

Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no

intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais (...).

Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/condições

desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos (...).

Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de

material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo de buscar a transformação de toda a estrutura social. Esse é o caso, por exemplo, do feminismo que abandona as trincheiras da resistência da identidade e dos direitos da mulher para fazer frente ao patriarcalismo, à família patriarcal e assim, a toda a estrutura de produção, reprodução, sexualidade e personalidade sobre a qual as sociedades historicamente se estabelecem (CASTELLS, 1999, p.24, grifos do autor).

Dentro da mesma perspectiva sociológica, Dubar (2005) concentra seus estudos em torno do processo de construção das identidades sociais e profissionais a partir do fenômeno da socialização, sugerindo que a socialização é um processo primordial sem o qual não há individualização. O autor reflete que a abordagem psicogenética piagetiana pode ser útil à análise sociológica, mesmo em oposição aos seus fundamentos clássicos, ressaltando que as condições sociais de uma criança (e de sua família) podem afetar diretamente nos estágios de seu desenvolvimento mental. Enquanto para Piaget a identidade se constitui nas sucessivas adaptações entre o EU e o mundo, para a Sociologia o indivíduo também deve passar pela transição entre seus desejos individuais e os valores coletivos. Para o autor, a análise genética do desenvolvimento cognitivo não pode ser isolada da análise cultural dos sistemas simbólicos e das representações sociais.

Dubar (2005) fundamenta por meio de estudos antropológicos que a personalidade dos indivíduos é frequentemente um produto da cultura e das instituições com as quais o indivíduo está em contato desde o seu nascimento. Os estudos apresentados pelo autor admitem que todos os indivíduos de uma dada sociedade guardam traços comuns de personalidade. Nessa perspectiva, a cultura é concebida como algo exterior ao indivíduo quando ele nasce, e se torna parte integrante de sua personalidade quando adulto. O autor apresenta concepções da corrente funcionalista para refletir o mesmo tema. Explica o campo

de ação humana em quatro subsistemas funcionalmente interligados: biológico, psíquico, social e cultural.

Dubar (2005) retoma as definições clássicas da palavra habitus para explicar o processo de constituição das identidades a partir do fenômeno da socialização. Para ele, habitus é uma estrutura geradora das práticas, no entanto, não deve ser visto essencialmente como a cultura do grupo social de origem, mas como a orientação de sua descendência. Conhecer o habitus de um indivíduo requer conhecer o habitus de seus pais e de seus próximos, e não somente as condições em que esse indivíduo foi educado. Cada classe ou fração social é definida por seu modo de vida; uma classe social se torna assim um grupo de indivíduos dotados de um padrão dos mesmos habitus. Esses padrões por sua vez também definem as classes dominantes e dominadas. Nesse sentido, o autor concebe o fenômeno identitário fruto de um processo biográfico de incorporação das disposições sociais advindas não somente da família ou da classe de origem, mas também do conjunto dos sistemas de ação atravessados pelo indivíduo no decorrer de sua existência. Assim, se as identidades sociais são produzidas pela história dos indivíduos, elas também são produtoras de sua história futura.

De acordo com Dubar (2005), as abordagens culturais e funcionais da socialização reduzem-na em uma forma de integração cultural e social unificada, pressupondo que o mundo social, o tradicional e a economia impõem sozinhos a todos os membros das sociedades modernas sua lógica. O autor discorda criticamente desses pressupostos, apresentando a interação e a incerteza no centro de suas discussões. Nessa perspectiva, o indivíduo não é visto como ser unicamente passivo, reduzido a cultura de seu grupo. A socialização, assim, não pode se reduzir a uma única dimensão, devendo reconhecer e integrar sua dualidade (sujeito produtor/reprodutor).

A partir das críticas da teoria psicanalítica da personalidade e da formação do ego, Dubar (2005) ressalta que a identidade individual não pode ser separada de sua identidade coletiva, acrescentando que o indivíduo nunca pode ter certeza de que os outros veem sua identidade da mesma forma que ele vê. Nesse ponto, o autor assinala que cada um pode ser identificado por outrem de um modo e se definir de outra forma completamente diversa. Para aprofundar esse tema, discute categorias de identidades: o processo relacional e o processo biográfico; identidade para o outro e identidade para si; e identidade virtual e identidade real. O processo biográfico é definido pelo autor como uma construção no tempo, pelos indivíduos, de identidades sociais e profissionais a partir das categorias oferecidas pelas instituições gerais (família, escola, mercado de trabalho, empresas, etc). O processo relacional concerne

ao reconhecimento das representações atribuídas pelos outros ao indivíduo. Enfim, o autor concebe que a constituição identitária é marcada pela dualidade do processo biográfico e pelo processo relacional.

Em meio a tantas perspectivas e abordagens, conceituar identidade não é uma tarefa simples. Como vimos, o termo encontra múltiplos enraizamentos na Psicologia e na Sociologia, não havendo entre os autores um consenso que satisfaça "empiricamente" qualquer rigor positivista. A complexidade da identidade e de seu processo de constituição pertence à vasta categoria de aspectos subjetivos humanos impossíveis de serem diretamente manipulados, como uma substância específica no interior de um tubo de ensaio.

Nesse sentido, a compreensão da dinâmica constitutiva da identidade requer olhar criticamente para uma diversidade de elementos sociais, históricos, culturais, biológicos e subjetivos que se inter-relacionam dialeticamente, produzindo essa característica psicológica que chamamos de identidade.