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Identificando os ativismos interseccionais feministas nas práticas das organizações de

2. COMPARTILHANDO IDEIAS E LUTAS POR JUSTIÇA SOCIAL:

2.3 Identificando os ativismos interseccionais feministas nas práticas das organizações de

A partir das discussões teóricas desenvolvidas nas últimas seções, torna-se claro que as estratégias de ações dos movimentos sociais, principalmente, os movimentos de mulheres e feministas se transformaram ao longo do tempo. Para lidar com os novos desafios impostos pelos novos governos conservadores de direita e pela lógica de exploração do mercado, os movimentos têm se engajado cada vez mais em lutas conjuntas, levando demandas plurais para as mesas de reivindicações. A presente seção buscará apresentar algumas delimitações do conceito de ativismos interseccionais feministas já mencionadas em momentos anteriores da presente Dissertação e conjugá-las com a prática dos movimentos de mulheres e feministas na construção da paz na Colômbia, principalmente no que tange os acordos de paz de La Habana (2016).

Por meio de pesquisas organizadas pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (NEPEM/UFMG) e pelo Centro de Interesse Feminista e de Gênero (CIFG/UFMG), coordenadas pela professora doutora Marlise Matos, tornou-se clara a estratégia empregada pelos movimentos feministas na América Latina que passaram a adotar ações de lutas conjuntas com outros movimentos sociais invisibilizados. Essas ações têm sido denominadas dentro das discussões no NEPEM/CIFG e pelo trabalho produzido por Matos e Simões (2018) de ativismos interseccionais feministas e integram uma série de ações interconectadas entre agentes sociais. Esses modos de ativismos podem ser encontrados de formas e expressões

diversas através, por exemplo, do ativismo online, participação em conselhos e fóruns organizados pelo Estado, a partir da ocupação de cargos na burocracia, via ação direta, entre outros. O que torna relevante ressaltar é o conteúdo das lutas organizadas pelos movimentos de mulheres e feministas, que apresentam um caráter interseccional, intersetorial e transversal abrangendo demandas centrais nas lutas de outros movimentos sociais, como a luta contra a LGBTIfobia, o racismo e o reconhecimento da causa indígena, por exemplo.

O que nos chamou atenção ao realizar o levantamento a respeito das literaturas sobre ativismo e interseccionalidade foi perceber que poucos foram os estudos que buscaram conjugar ambos os conceitos. A própria Butler (2018), ao trazer para o seu foco de análise a necessidade de construção de alianças entre movimentos expostos a processos de precariedade e a forma como esses se engajam em manifestações performativas na arena pública, não menciona o próprio caráter interseccional dessas lutas e a presença delas em diversas outras instâncias, como dentro do próprio Estado. É necessário ampliar essas formas de análise, principalmente quando estamos lidando com os movimentos sociais da América Latina.

Grande parte das/os autoras/es que trabalham com a abordagem ativista seguindo uma lógica interseccional são aquelas/es que estudam sobre os movimentos de mulheres e feministas na América Latina e são autoras/es latino-americanas/os. Podemos pensar, talvez, que como as vivências desses autores e a estruturação de suas lutas ativistas ocorrem no sul global, estas se desenvolvem a partir de enquadramento de fronteiras, ou seja, as lutas reconhecem a pluralidade de experiências e demandas, não assumindo categorias como sendo fixas e universais. Nessas lutas, os indivíduos participantes afirmam a necessidade de articulação de ideias e lutas conjuntas baseadas nos entendimentos interseccionais, onde identidades são formadas por múltiplas camadas de características/marcadores sociais que afetam sua vivência em sociedade e influenciam na forma como atuam frente aos movimentos sociais.

O caráter interseccional apresenta-se, assim, intrinsecamente ligado às diferentes formas de ativismos que ocorrem nos países latino-americanos. Dessa maneira, não seria possível abordar a organização de lutas sem levar em consideração as intersecções e o compartilhamento de demandas e reivindicações por direitos. Nesse sentido, o caso colombiano é um ótimo exemplo para compreendermos o engajamento de grupos plurais em lutas conjuntas – e o documento final do acordo de paz pode ser entendido como reflexo das articulações ativistas interseccionais feministas.

Além disso, outra discussão de que merece nossa atenção diz respeito a capacidade do Estado de institucionalizar determinadas categorias e demandas (interseccionais) dos

movimentos de mulheres e feministas em uma gramática de ação estatal. Tal entendimento denominado de institucionalização simbólica é trabalhado por Szwako e Lavalle (2019) inspirados no livro “Seeing Like a State. Why Certain Schemes to Improve Human Condition Have Failed” de James Scott. O termo se refere a processos de institucionalização de determinadas demandas e denúncias dos movimentos sociais por meio do estabelecimento de dinâmicas de interação entre esses agentes sociais organizados e instituições administrativas e políticas do Estado. A publicização das demandas e denúncias acabam por produzir formas simbólicas de classificação que passam a fazer parte da linguagem e dos entendimentos do Estado.

Por meio de interações com agentes não estatais, as categorias simbólicas se tornam parte central das formas pelas quais o mundo é apreendido pelos agentes políticos. Vale ressaltar que uma vez que institucionalizado determinada categoria dos movimentos sociais ou da sociedade civil organizada observamos uma alteração da atuação dos agentes sociais e das capacidades estatais. Fazendo com que haja um alargamento de seus repertórios e potencializando, em alguns casos, seus alcances (SZWAKO; LAVALLE, 2019).

Dessa forma, os autores afirmam a mútua constituição entre sociedade civil e Estado, entendendo que tanto as instituições como os agentes estatais não são resultados, apenas, do contexto externo das estratégias adotadas por eles. A institucionalização não ocorre de forma geral ou universal, mas por meio da “sedimentação” de entendimentos, ideias e reivindicações (ou parte delas) pelas instituições do Estado. Para os autores, “tal sedimentação cristaliza encaixes, os quais fazem funcionar a seletividade das instituições a favor dos atores sociais que os construíram” (SZWAKO; LAVALLE, 2019, p. 416).

A abertura ou permeabilidade do Estado às demandas de determinados agentes da sociedade considerados como outsiders devem ser entendidos enquanto construções específicas que são delimitados por períodos temporais e espaciais. Isso quer dizer que em um certo período histórico, o Estado foi capaz de institucionalizar (mesmo que parcialmente) algumas demandas ligadas aos movimentos sociais se aproximando desses atores, enquanto em outros períodos isso não ocorre (SZWAKO; LAVALLE, 2019). Acreditamos que o processo de institucionalização simbólica ocorre de forma mais frequente em períodos de transição ou pós transição democrática, como é o caso da Colômbia.

O conflito colombiano, em seus mais de 50 anos, afetou de forma desproporcional alguns segmentos da população. As mulheres, as populações afrodescendentes, os LGBTI+, as/os indígenas e as populações do campo foram expostos a diversas formas de violências, o que influenciou (diretamente) na sua atuação no projeto da construção da paz na Colômbia

(CENTRO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2018; HUMANAS COLOMBIA, 2017). As formas de articulação dos movimentos possibilitaram aos indivíduos a participação nos Fóruns Regionais e Nacional para as vítimas, na Subcomissão de gênero e na própria Conferência de paz em Havana, Cuba – conforme desenvolvido no capítulo 3.

Partindo da compreensão de que documentos são muito mais que simples junções de ideias, torna-se necessário compreender as tensões, silenciamentos e destaques dados ao que é/foi incorporado aos documentos como frutos de lutas políticas. A etnografia de documentos (VIANNA, 2014) pode ser apontada como instrumento necessário para nos ajudar a compreender, por exemplo, que o primeiro acordo de paz apresentado e votado em plebiscito reflete toda uma articulação dos movimentos sociais de institucionalizar de forma simbólica suas demandas de base interseccional, buscando criar, de forma conjunta, políticas sensíveis as especificidades das pessoas. A incorporação de um enfoque diferenciado e de gênero em cada um dos pontos dos acordos de paz, feita majoritariamente por mulheres na subcomissão de gênero, pontua e demarca uma posição de inclusão de diferentes experiências e visões de subalternidade durante os anos do conflito armado. Nos capítulos seguintes, buscaremos analisar as ações empreendidas pelos movimentos de mulheres e feministas no período compreendido entre os anos de 2012 e 2016, além de pontuar as conquistas de direitos presentes na primeira versão do documento de paz apresentado.

3. CONSTRUINDO UMA PAZ INCLUSIVA: A ATUAÇÃO DO MOVIMENTO DE