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Ideologia, educação e alienação segundo a tradição marxista

Não é a toa que Karl Marx e Friedrich Engels (1982) sustentaram veementemente que a história é única ciência. Em sua relação dialética, a história dos seres humanos e a natureza determinam-se mutuamente, de forma a gerar mediações que resultam da atividade humana sobre a natureza, atividade concretizada por meio do trabalho (MÉSZÁROS, 2006). Todavia, nas mediações de segunda ordem, que se frise que aqui se discutiu a prevalência – mas não

unicidade - de representações deturpadas (distorcidas) do real, as quais acabam

tradicionalmente por se encarnar em um corpus de ideias assim chamado de ideologia.

Grande parte da polêmica travada entre Marx e os chamados jovens hegelianos relaciona-se com a apropriação inadequada que estes faziam da filosofia de Hegel, que para Marx possuía como grande valor a sua lógica, como apropriada pelos velhos hegelianos. A filosofia alemã encontrava-se presa a uma renitente crítica às representações da consciência, sobretudo das representações religiosas:

Como para os Jovens-Hegelianos as representações, ideias, conceitos, em geral os produtos da consciência, por eles autonomizada, valem como os grilhões autênticos dos homens, do mesmo modo que para os Velhos-Hegelianos significam os verdadeiros elos da sociedade humana, percebe-se que os Jovens-Hegelianos também só tenham de lutar contra estas ilusões da consciência. Como, segundo a sua fantasia, as relações dos homens, tudo o que os homens fazem, os seus grilhões e barreiras, são produtos da sua consciência (MARX; ENGELS,1982, p. 4).

Estes grilhões ilusórios acabaram por consumir grande esforço e tempo destes filósofos que em nenhum momento se deram conta de que é a partir da realidade material histórica do ser humano e de sua relação com a natureza que emergem as representações desta mesma realidade, ou seja: “Não ocorreu a nenhum destes filósofos procurar a conexão da filosofia alemã com a realidade alemã, a conexão da sua crítica com o seu próprio ambiente material (op. cit., p. 5)”. Esta concepção materialista é consequência de uma dialética que assume a

62 contradição como o motor da história, em especial as contradições existentes nas relações de produção fundadas em um contexto de intensa divisão do trabalho social, que acaba por gerar representações estranhadas, alienadas da real condição histórico-social da humanidade. Por isso: “A produção das ideias, representações da consciência está a princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real (IBIDEM, p. 8)”.

Sedimenta-se, em decorrência desta noção de realidade, uma filosofia profundamente diferente e de certa forma até oposta daquela defendida pelos jovens hegelianos. Deste momento em diante, dar-se-á uma inversão na base filosófica de Hegel, já que:

Em completa oposição à filosofia alemã, a qual desce do céu à terra, aqui sobe-se da terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente activos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos [Reflexe] e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasmagorias no cérebro dos homens são sublimados necessários do seu processo de vida material empiricamente constatável e ligado a premissas materiais. A moral, a religião, a metafísica, e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de antinomia. Não têm história, não têm desenvolvimento, são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio material que, ao mudarem esta sua realidade, mudam também o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua consciência. (MARX; ENGELS, 1982, p. 8).

O significado e a função que as ideologias possuem no pensamento marxiano se concretizam no claro propósito de representação na consciência humana as objetivações provenientes do intercâmbio material que o ser humano mantém entre si (relações sociais) e com a natureza. O problema está nas ideologias fundadas em concepções mitológicas, idealistas ou mesmo empiristas, as quais possuem epistêmes que distanciam o conhecimento resultante da realidade material.

Karl Marx sustentava num determinado momento a função alienadora, dissimuladora do real, como explica Chauí (op. cit. p. 11): “Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das ideias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, dar por diante, um sistema de ideias condenadas a desconhecer sua relação real com o real”. Bem, se assim se construiu a concepção de ideologia, dado seu caráter histórico, esta

63 pode, e provavelmente tem assumido funções desveladoras, críticas e emancipatórias. Isto pode ser constatado mesmo na obra de Marx.

Não se pode enganar, aqui se encontra uma perspectiva de processo, de construção gradual da emancipação. Pois esta só se dará na materialidade da história. Como afirma Marx: “A supra-sunção da propriedade privada é, por conseguinte, a emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos; mas ela é esta emancipação justamente pelo fato desses sentidos terem se tornados humanos, tanto subjetiva quanto objetivamente (MARX, 2008b, p.109)”.

Nos Manuscritos Econômicos-filosóficos de 1844, Marx se concentra eminentemente na apropriação privada e na característica progressivamente concentradora e cumulativa do capital, como o motivo essencial da alienação material humana. O ser humano deixa de ser propriamente humano. Ao mergulhar nas minucias da produção capitalista constata que a intensificação da divisão social do trabalho constrói um estranhamento maior e mais complexo do ser humano:

(...) porque o capital é trabalho acumulado, portanto, na medida em que sejam retirados das mãos do trabalhador cada vez mais produtos seus, que o próprio trabalho cada vez mais se lhe defronte com a propriedade alheia, e cada vez mais os meios de existência e de sua atividade se concentram nas mãos do capitalista. A acumulação de capital aumenta a divisão do trabalho, a divisão do trabalho aumenta o número de trabalhadores; inversamente, o número de trabalhadores aumenta a divisão do trabalho, assim como a divisão do trabalho aumenta o acúmulo de capitais (MARX, 2008b, p. 27).

Esta dialética entre a intensificação da divisão do trabalho e acúmulo do capital acaba por aumentar exponencialmente a alienação dos trabalhadores. Isto está explicitado n’O Capital, onde compreende-se que o resultado do trabalho humano não é de propriedade do trabalhador, sendo-lhe estranho, alienado. O trabalhador não reconhece o processo produtivo como um todo e se sente alheio (e de fato é), num sistema de relação de trabalho inerentemente desigual. Uma alienação material, portanto, acaba por resultar em uma alienação da consciência, um tipo determinado de ideologia.

Ideologia, no sentido de consciência é aqui tomada como um processo que vai do imediato aparente, mas que progressivamente vai atingindo o mediato, a essência. Ou seja:

A consciência é, pois, logo desde o começo, um produto social, e continuará a sê-lo enquanto existirem homens. Consciência, naturalmente, começa por ser apenas consciência acerca do ambiente sensível imediato e consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas fora do indivíduo que se vai tornando consciente de si; é, ao mesmo tempo, consciência da natureza, a qual a princípio se opõe aos homens

64 como um poder completamente estranho, todo-poderoso e inatacável, com o qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e pelo qual se deixam amedrontar como os animais; é, portanto, uma consciência puramente animal da natureza (religião natural) (MARX; ENGELS, 1982, p.12).

Para compreendermos melhor o fator consciência, consideremos as relações materiais de produção, na qual a humanidade se constrói historicamente, em três momentos:

(...) a força de produção, o estado da sociedade e a consciência, podem e têm de cair em contradição entre si, porque com a divisão do trabalho está dada a possibilidade, mais, a realidade de a actividade espiritual e a actividade material, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo caberem a indivíduos diferentes; e a possibilidade de não caírem em contradição reside apenas na superação da divisão do trabalho (op. cit., p.13).

A determinação mútua entre força de trabalho, as relações sociais e a consciência, por meio das contradições intensificadas pela divisão capitalista do trabalho determinam a consciência, a ideologia, não o inverso. Em meio às contradições acirradas pela divisão social do trabalho, questiona-se sobre as possibilidades de mudanças estruturais e sobre o papel da ideologia neste processo. Marx, sobre esta questão, assim se posiciona:

Quando se consideram tais transformações, convém distinguir a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser consideradas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas e religiosas, artísticas e filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência deste conflito e o levam até o fim. É preciso explicar a consciência (ideologias dominantes) pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção (MARX, 2007, p. 46).

Fica claro, portanto, que as transformações processuais das relações de produção se darão no seio das relações materiais econômicas, mas que as ideologias são um instrumento de aquisição de consciência e de aprofundamento (desvelamento, crítica radical) dos conflitos de classes. De fato

(...) a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal, não pode ser superada na sociedade de classes. Sua persistência se deve ao fato de ela ser constituída objetivamente (e constantemente reconstruída) como consciência prática inevitável da sociedade de classes, relacionada com a articulação de conjunto de valores e estratégias rivais que tentam controlar o metabolismo social em todos os seus aspectos básicos. Os interesses sociais que se desenvolvem ao longo da história e se entrelaçam conflituosamente manifestam-se, no plano da consciência social, na grande diversidade de discursos ideológicos relativamente autônomos (mas, é claro, de modo algum independente), que exercem forte influência sobre os processos materiais mais tangíveis do

65 metabolismo social. (...) Uma vez que as sociedades em questão são elas próprias divididas, as ideologias mais importantes devem definir suas respectivas posições tanto quanto “totalizadoras” em suas explicações e, de outro, alternativas estratégicas umas às outras. Assim, as ideologias conflitantes de qualquer período histórico constituem a consciência prática necessária em termos de quais as principais classes da sociedade se inter-relacionam e até se confrontam, de modo mais, ou menos, aberto, articulando sua visão de ordem social correta e apropriada como um todo abrangente (MÉSZÁROS, 2004, p. 65)7.

O filósofo afirma ainda que, enquanto consciência prática necessária ao funcionamento e evolução histórica das sociedades, as ideologias, por vezes, podem assumir diferentes funções e posições sociais. Uma dada ideologia pode afirmar ou sustentar uma determinada formação social na manutenção orgânica de seu poder tradicionalmente instituído, por outro lado, pode assumir uma função crítica e revolucionária, fundamentando posições contra- hegemônicas insurgentes.

As posições ideológicas dependem da intencionalidade do discurso, sendo, portanto, um discurso classificado como acrítico; crítico, mas viciado pelas contradições de sua posição classista; e crítico-histórico, quando questiona a viabilidade histórica da própria sociedade de classes (op. cit.). Por isso, a ideologia tem por função primaz “ordenar essas decisões isoladas em um contexto de vida geral dos seres humanos e esforçar-se por esclarecer ao indivíduo como é indispensável para sua própria existência avaliar as decisões segundo os interesses coletivos da sociedade (LUKÁCS, 2010, p. 42)”.

Todavia, uma sociedade cindida em classes integrada à divisão social do trabalho, acaba por criar um ser social que não reconhece seu semelhante e possui uma consciência precária da realidade. Some-se a este fato a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual que incorre numa consciência divorciada do real, o que resulta em alienação.

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7 Passagens em negrito do original.

O ser social, uma vez desintegrado como indivíduo e como espécie, passa a ser portador de um pensamento restrito e desprovido de totalidade. Em termos racional-discursivo, se aproxima apenas da empiria imediata e mecanicista, não alcança a dialética materialista e histórica. Dito em outros termos: passa a ser um discurso ideológico, em seu sentido

66 tradicional negativo. Mas isto não quer dizer, conforme Konder (2009) esclarece, que por ser ideológico, este pensamento não possa contribuir para a composição/estruturação da sociedade, contribuindo, por vezes, com mudanças históricas relevantes. Deste raciocínio, compreende-se que é que sob a atual forma histórica de trabalho “a ideologia é uma forma de pensamento estruturalmente comprometida com a alienação (op. cit., p. 71)”. O autor esclarece ainda que considerando a alienação criada pelas condições de trabalho, a ideologia “é o produto típico de indivíduos que se ressente das condições em que vive, dentro de um mundo dividido, dentro de sociedades que sentem os efeitos da divisão de classes. É o produto típico de uma unidade de um todo desintegrado (IBIDEM, p. 73)”.

A presente discussão sobre a relação entre alienação e ideologia se justifica por dois motivos: o lugar ontológico da alienação e a tensão entre os níveis fundamentais do ser social enquanto gênero (espécie) humano, que são os ser social em-si e o ser social para-si. Tertulian (2014) esclarece que no processo histórico de multiplicação das qualidades do indivíduo, a alienação desloca o centro de gravidade da autoafirmação como singularidade (individualidade autônoma) emancipada, para a mera seguridade da sobrevivência e manutenção social. Complementarmente, durante a formação da pessoa autônoma, que se desenvolve livremente de forma autocondicionada (formação do ser para-si); eventualmente, o sujeito acaba por se sujeitar aos ditames ideológicos-alienantes da reprodução social, acabando por permanecer num estado quiescente, no que se refere ao desenvolvimento de suas aptidões e qualidades (o estado da espécie em-si). À educação socialista convém se debruçar sobre este processo de transição do ser em-si para o ser para-si. Na possibilidade de superação da alienação a partir do exercício intelectual de apropriação dos conhecimentos acumulados na história da humanidade.

Estamos, na verdade, tratando aqui da relação entre possibilidade, necessidade e contingência. A educação, ao nosso ver, deve ser uma atividade problematizadora das possibilidades em articulação com as contingências do real. Já que “a possibilidade encontra- se, dessa forma, fortemente subordinada à cadeia de determinações reais, necessárias para a sua realização (op. cit., pp. 44-45)”.

A relevância da educação socialista é redimensionada quando pensada a partir dos processos históricos de alienação com vistas à emancipação e formação do ser omnilateral. Uma educação com função de

67 (...) ‘negação e supressão da autoalienação do trabalho’, em sua dimensão contingente ou dimensão necessária. O que significa que a transcendência da autoalienação do trabalho, que Marx colocou como sendo o problema da “unidade da teoria e da prática”, é o problema da consciência de classe capaz de constituir efetivamente o lugar ontológico da classe social do proletariado. Na perspectiva histórico-ontológica, só há classe social se houver consciência de classe (ALVES, 2012, p. 58).

Esta autotranscendência positiva enquanto meta da educação escolar deve ser o fulcro da educação socialista, centralizando a formação do sujeito centrada na noção de Aufhebung = consciência (de classe) = classe (sujeito coletivo que nega e supera). Claro, esta não poderia ser realizada sem um esforço crítico sobre o currículo, sobre a didática e sobre o sistema educacional como um todo: “tornando evidente o caráter ideológico de tais conteúdos e práticas escolares na sociedade capitalista (VAISMAN, 2012, p. 9).”