• Nenhum resultado encontrado

Idiossincrasias da música para ficção

3. A Composição Musical Para Cinema Como Procedimento de Design

3.2 Idiossincrasias da música para ficção

Por outro lado, existem músicas que por si só, sem o auxílio de outro elemento, não são capazes de gerar sozinhas uma presença que exprima em si uma imaginação humana integrada à suprema beleza e ao supremo bem.

Segundo Szynkier (2016), música é a forja e composição de imagens, paisagens e narrativas desconhecidas, ativadoras de uma vida interior. Através da combinação de elementos são articuladas de maneira a convergir para um único objetivo: inundar o nosso espírito com novas paragens de realidade humana para a conhecermos com mais profundidade.

Essa parece ser também a última razão da ficção, de acordo com Carvalho:

“Quando você lê um romance ou peça de teatro, não tem como julgar a verossimilhança das situações e dos caracteres se antes não deixar que a trama o impressione e seja revivida interiormente como um sonho. Ficção é isso: um sonho acordado dirigido. Como os personagens não existem fisicamente (mesmo que porventura tenham existido historicamente no passado), você só pode encontrá-los na sua própria alma, como símbolos de possibilidades humanas que estão em você como estão em todo mundo, mas que eles encarnam de maneira mais límpida e exemplar, separada das contingências que podem tornar obscura a experiência de todos os dias. A leitura de ficção é um exercício de autoconhecimento antes de poder ser análise literária, atividade escolar ou mesmo diversão: não é divertido acompanhar uma história opaca, cujos lances não evocam as emoções correspondentes.” (Carvalho, 2008)

Ainda, tomando como ponto de partida Northrop Frye (1981), que expõe sua tese de que em última instância todos os enredos da literatura de ficção estão prefigurados nos livros sacros da Bíblia, Carvalho complementa que todos os acontecimentos das nossas vidas estão prefigurados

na literatura de ficção:

“Que é a ficção, afinal, senão o conjunto dos esquemas imaginários das vidas possíveis? Pelo menos assim o entendia Aristóteles, mestre de Frye.” (Carvalho, 2001)

Todavia, como discutido anteriormente, há músicas que não conseguem influenciar a gênese de uma imaginação e serem beneficamente transformadoras. Tomemos como exemplo, a obra do compositor Cliff Martinez, concebida para musicar a série americana The Knick (2014). Não há nessas músicas, por si só, nada mais do que uma ideia de timbre e de gravidade do timbre, criado pelo minimal synth, informando-nos uma espécie de temperatura e ambiência.

O som e o timbre realizam uma certa operação de informação direta, concreta e crua: uma coloração ambiental muito próxima das zonas alemãs a partir dos anos 70, reconhecível no mundo eletrônico experimental, que expressam a morte, a desesperança, um ambiente cercado por trevas, provavelmente gélido. Há somente a sensação de um sentimento sombrio, decorrida dessa experiência timbrística, sonora e não musical-imaginativa, nos seguintes termos: são experiências que transmutam-se de som para som e não se originam no aspecto melódico-harmônico que são o sangue e formam o organismo, a substância primordial da “Grande Música” mesmo, conforme define Szynkier:

“A música é a substância de potencial mais avassalador, modificador, dentre todas as que existem no átrio das artes. Isso porque ela é também a mais misteriosa (mais análoga ao próprio mistério sobrenatural originante) das substâncias da criação humana: sua fonte física (a acústica) seguida de sua transformação num mundo ordenado de intuições materializantes que pertencem à imaginação do músico, que origina uma canção ou uma peça musical que por sua vez modifica o espírito e enriquece a imaginação alheia, evidencia a mais inesperada das modificações de coisa bruta, vaga, amorfa para real no terreno das artes.” (Szynkier, 2016)

De forma menos metafísica, Carvalho define música como “uma sucessão auditivamente organizada de estados emocionais com equivalentes cognitivos variáveis conforme o nível de consciência de cada ouvinte”. Essa definição ainda abstrata é depois completada pelo autor quando diz que "pensar a música sem as emoções é como pensar um soco no nariz sem nariz.”, concluindo que a significação está na forma e em nenhum outro lugar. (Carvalho, 2017)

Por vezes, as músicas timbrísticas indicam uma substância harmônica e melódica, onde a música confirma-se como uma paisagem, um desenho em si. Nesse momento, a música se revela de fato o fruto de uma imaginação musical, portadora de uma possibilidade de abrir a imaginação musicalmente, não somente pelo apelo sensorial dos sons como agentes sensoriais, de uma maneira limitada que se encerra nesse situar-se ambientalmente, mas também o apelo musical, que ativa uma certa imaginação, onde uma atmosfera de detalhes de uma certa realidade seja oferecida.

Dando um passo à frente, surge a pergunta: qual o exato compromisso dessas composições, o porquê de elas existirem, a verdadeira atribuição e missão delas. Por quais motivos essas composições musicais foram compostas?

“Implicit, finally, is the assertion that the compositional process is the over subject of any text whatever: in short, what we learn when we read a text is how it was written. To put it more generally, a paramount signified of any work of art is that work's own ontogeny.” (Frampton, 1976)

Para Frampton, a técnica na música é o domínio de sua própria linguagem, e não de uma linguagem estatutária. E também é o domínio do cosmos de realização único da música: a composição tonal/modal, dentro das bases de uma linguagem individual.

Lembrando que as músicas que tomamos como exemplo inicial foram compostas para servir ao filme que elas integram, podemos encontrar nisso uma possível resposta: tornar a matéria musical pertencente ao mundo um específico (de uma diegese única construída) é essencial para revelar e dar substância a esse mundo. As imagens concretas podem dar sustentação vital, tirar um determinado trabalho musical da anemia e da inanição, encaixando nas grandes emoções. A música cria sentido no meio das imagens ao passo que as imagens elevam a potência de um espectro constitutivo (animado e incendiado) por essa música também. A música então ganha sentido vital.

Essa música, em si, torna-se parte da Grande Música? Sim e não. No sentido musical pleno e estrito talvez não, todavia a composição sonora junta da obra em si (série, filme), acaba por promover o que a Grande música se põe a realizar: uma abertura do indivíduo às emoções para uma emissão de correntes catárticas a um horizonte interior. A seu tempo, compreenderemos como este vetor se entrelaça dinamicamente com outras variantes metodológicas.