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1. JESUS CRISTO, A IGREJA E A MISSÃO CRISTÃ: RELAÇÃO FUNDANTE E

1.6. A IGREJA, LUGAR DO ANÚNCIO E DA MISSÃO: O PROFETISMO COMO

Se lançarmos um olhar para o Antigo Testamento, vamos perceber que o culto de Israel organiza-se em torno de dois aspectos: o holocausto e a leitura do livro da Aliança, a pregação da lei divina para o povo de Israel (cf. o relato de Ex 24, 5-8). Aqui, o anúncio é instrução para a vida nos caminhos da Aliança com Iahweh e parte do serviço dos sacerdotes. O homem é visto como parceiro na Aliança, e em sua vida deve tornar concreto o culto a Deus, a palavra deve fazer-se caminho para o homem.

Em paralelo a esta primeira modalidade de culto, aparece uma segunda modalidade: a dos profetas. Acentuando fortemente um caráter carismático e espontâneo, situa-se numa linha que tem relação direta com a fé de Israel e faz continuidade com ela, tentando fazer valer a fé original da aliança e do culto. O profeta, neste sentido, não age fora de Israel, mas procura acentuar o verdadeiro Israel, conservando a fé dos pais contra qualquer falsa atualização. Exatamente a dimensão profética do culto e do anúncio é que pretende manter a fé de Israel aberta ao futuro e não fechada no culto do templo. Essa linha profética é a

possibilidade aberta ao novo, à realização mesma das promessas da Aliança que irão se desenvolver e cumprir ao longo dos acontecimentos da história da salvação.

Neste contexto, o ambiente do anúncio e da pregação de Israel desenvolve-se concretamente na escuta dos profetas, pelo que o povo deve discernir esta perspectiva universalista que a fé em Iahweh aos poucos vai suscitando. O círculo dos ouvintes deverá ser ampliado. A assembleia de Israel deverá alargar seus horizontes e progredir em suas perspectivas messiânicas. De fato, a pregação de Jesus supõe esta perspectiva. Embora esteja ainda no contexto dos quadros proféticos de Israel, e o próprio anúncio de Jesus-Messias esteja impregnado da esperança de Israel - ver o cântico de Zacarias, em Lc 1, 68-79 - os evangelhos já se enquadram a uma abertura de horizontes. Em algumas das parábolas de Jesus, transparece exatamente esse caráter universalista de sua mensagem que o seu messianismo deverá suscitar: Mt 8, 5-13 (a cura da filha do centurião de Cafarnaum); 22, 1-14 (o grande banquete); Mc 7, 24-30 (a siro-fenícia); 12, 1-12 (parábola dos vinhateiros).36

Fica marcada aqui uma transformação profunda no relacionamento da ecclesia- assembleia com o acontecimento do anúncio-pregação. A Palavra, que é Jesus-Messias, recria esta relação, dando a ela um novo caráter de realização escatológica, determinando assim a plenitude-cumprimento de um tempo (cf. Gl 4, 4) no qual todas as possibilidades e esperanças da antiga aliança serão retomadas e transformadas em medida plena, a partir da palavra e ação de Jesus, que será então a verdadeira medida do anúncio e do culto. Jesus é a palavra que recria em si uma nova Ecclesia, que deverá constituir-se como caminho aberto a todos os homens de todas as raças, e não mais restringir-se ao círculo de Israel.

J. Ratzinger destaca aqui um novo dinamismo do conceito mesmo de ecclesia, em virtude de seu caráter universalista. A palavra de Jesus cria a ecclesia e fica relacionada com ela de modo novo, constituindo-se no âmbito neo-testamentário em um anúncio com duas formas básicas: como pregação aos já reunidos, que devem sempre ser reintroduzidos nela de novo, recebendo dela a orientação para a vida; e a pregação àqueles que ainda se acham fora do círculo da palavra e devem ser atingidos por ela, incorporando-se na assembleia, como um chamamento que vai para além das próprias fronteiras.

36 RATZINGER, J. Dogma e Anúncio. São Paulo: Loyola, 2007, pp. 17-22. Tratamos aqui o tema de forma sintética. Para consulta da exposição completa do autor sobre o tema e sua evolução, ver pp. 17-27 da referida obra.

Nos dois casos, a ecclesia é o ponto de referência da pregação, mas de modos diferentes: primeiro, como exercício da vida na Igreja já fundada e viva; em seguida, como o ato que a ultrapassa, pelo qual é fundada de novo, onde ainda não se acha. Para a vida correta da Igreja, é de significação decisiva que ambas as formas estejam presentes nela e na relação devida entre si. De um lado, deve existir o exercício interno da fé mesma, no qual ela continuamente se recebe de novo a si mesma, tornando-se simultaneamente mais rica numa história de crescimento e de vida. De outro, deve haver a superação contínua do círculo fechado e a proclamação da fé num mundo novo, no qual ela se deve tornar compreensível de modo novo, para atrair os homens que ainda lhe são estranhos. Ambas as coisas são igualmente importantes: uma Igreja que se limitasse à pregação interna, supondo sempre a fé como preexistente, transmitindo-a e desenvolvendo-a apenas no círculo daqueles que já são crentes, deveria tornar-se estéril, perderia em força de presença; subtrair- se-ia ao impulso do todos devem ouvir, contradizendo precisamente o realismo insistente do acontecimento de Cristo. Pelo contrário, uma Igreja que só olhasse para fora, que só tentasse bitolar-se pela capacidade de compreender dos contemporâneos do momento, não ousando mais viver alegre e despreocupada no interior da fé mesma, morreria internamente e terminaria finalmente mais nada a dizer nem sequer para fora. Deve haver lugar para as duas coisas; ambas têm de penetrar-se mutuamente.37

Fica claro para nós que, em Jesus, existe um aspecto de ruptura-continuidade, de identidade e diferença, de uma ecclesia em transição da antiga para a nova Aliança. De uma teologia do anúncio a partir dos ouvintes podemos então desenvolver uma teologia nova a partir de seu portador. Essa teologia aparece de forma sintética no prólogo da epístola aos Hebreus (Hb 1, 1-4), salientando que a palavra do Pai agora nos é dita pelo Filho, como resplendor da sua glória: “quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Esta teologia, desenvolvida a

partir do novo de Jesus, portador por excelência da palavra de Deus, é que nos vai permitir articular estes diversos elementos que a partir do evento fundante da palavra do Verbo, deixará transparecer uma nova realidade, que nos vem de uma nova ideia de Aliança: a Igreja é o lugar do anúncio do Reino de Deus e, portanto, lugar da missão. Assim como ela recebe esta palavra de seu Mestre e Senhor, deve refleti-la e transmiti-la. A ecclesia deverá viver desta unidade com a palavra fundante. Ela mesma é fruto desta palavra: ela não é a palavra, mas é propriamente o lugar teológico (locus theologicus) no qual habita a palavra, no qual deverá frutificar e ser testemunhada como vida e salvação.

1.7 A IGREJA, SUJEITO DO ANÚNCIO E DA MISSÃO: A RELAÇÃO IGREJA –