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Na primeira narrativa, ao me aproximar para observar a brincadeira de Rapunzel e Princesinha Sofia de cabelereira (p.68), as meninas me convidaram para participar e eu aceitei, buscando, sobretudo, a postura de uma participação periférica (CORSARO, 2011; FERREIRA, 2008), isto é, de nunca tentar começar ou finalizar um momento de interação, uma atividade, resolver disputas ou coordenar e dirigir as situações com as crianças.

Fui durante toda pesquisa experienciando com as crianças este lugar de professora- pesquisadora, tentando ceder e criar espaço para ou adentrar o mais próximo possível delas nas brincadeiras ou as observar sem que minha presença as inibisse em suas ações – embora consciente de que minha presença e minha postura não passavam despercebidas para as crianças, procurei em momentos de observação tentar me fazer desnecessária, ou seja, que as crianças ocupassem de forma completa o espaço com suas ações e comportamentos sob meu olhar atento e silencioso.

Nas duas primeiras narrativas, no entanto, as crianças me convidaram para participar de suas brincadeiras, e eu, buscando me manter atenta a minha postura – embora reconheça que nem sempre foi possível – aceitei e brinquei junto. Na narrativa I Sobre cabeleireiras, artistas e filhinhas, por exemplo, depois de ter aceitado o convite das meninas (p.69), sigo o que elas me propuseram e viro freguesa, apesar disso, ainda era professora, pois elas pediram minha permissão para desamarrar meu cabelo e o fizeram me chamando por “prô”, e eu, apesar de ceder, aviso que depois de terminada a brincadeira voltarei a prender o cabelo e a ser de fato a professora, papel esse que ainda nem havia sido superado na brincadeira.

Por isso, a importância da reflexividade não só na pesquisa, mas em nossas práticas e falas cotidianas, já que o adultocentrismo presente nas relações entre adultos e crianças é um grande obstáculo a ser superado, principalmente nas pesquisas com crianças, já que essa posição dificulta o reconhecimento pleno dos pequenos como “atores que tem uma vida cotidiana intensa e densa, no quadro da qual se produzem como seres sociais a partir do que lhes é proposto pelos adultos e na sua interação com estes e com outras crianças” (FERREIRA, 2008, p.151).

Pouco depois de virar “professora-freguesa”, no entanto, Rapunzel, ao responder aos meninos que nos chamavam insistentemente, diz espera que a gente está terminando o cabelo da menina, oxe! (p.69), vê-se aqui que consegui virar “menina”, ou seja, ainda que por um breve momento deixei de ser a professora e entrei completamente no mundo das crianças!

Já na narrativa Palmas para eles!, Ben 10 (p.70) interrompe sua brincadeira de herói com os meninos que dirigiam carros e se comunicavam com rádios comunicadores pela sala, tanto os carros quanto os rádios representados por movimentos corporais apenas, para cozinhar umas “peças de tabuleiro” para mim, que estava sentada em minha mesa observando as crianças. Aqui, diferentemente do que ocorreu na primeira narrativa, foram as crianças que se aproximaram de mim e me inseriram na brincadeira – Ben 10 não chegou a me convidar propriamente, ele se aproximou e me ofereceu “comida”, e a partir disso entrei no jogo.

Quando o menino tem a ideia de transformar a brincadeira num show (p.71), ele me convida para o espetáculo que seria a meia noite e quando me levanto, ele me freia e improvisa um ônibus – Vem “prô”! Não, espera, senta aí, você vai de ônibus (p.71), obedeço e me sento novamente, agora perto das meninas que também iriam para o show de ônibus e, simulando o transporte coletivo, chegamos ao outro lado da sala onde as cadeiras já haviam sido arrumadas como em um auditório pelo próprio Ben 10. De novo, aqui, faço uso de estratégias reativas, isto é, reajo ao que as crianças me propõem sem dar ordens ou sugerir ações.

Ainda nesta narrativa, há um trecho interessante em relação a ação das crianças a respeito da minha presença, ou melhor da presença da câmera na brincadeira. Quando Maria Joaquina e Power Ranger Azul passam por perto do palco e falam com Ben 10 e Arqueiro José (p.72), mas eles parecem não ouvir, a menina se aproxima de mim e começa a cantar para a câmera que estava comigo, Power Ranger Vermelho desce do palco e vem também para perto de nós, e ali ocorre um pequeno show paralelo a brincadeira principal até o momento em que Ben 10 anuncia a retomada do grande show e as crianças imediatamente voltam sua atenção a brincadeira.

Neste trecho, nota-se que as crianças “me usam” ou melhor usam a câmera para fazer o que Corsaro (2007) chamou de “brincar com o brincar”, para o autor “o jogo de papéis implica mais do que aprender conhecimento social específico; ele envolve também aprender acerca das relações entre e comportamento e contexto” (CORSARO, 2007, p.8, grifo no original). Maria Joaquina provavelmente cansada de esperar que Ben 10 e Arqueiro José decidissem a respeito

de que música iriam apresentar e ainda sem ser ouvida em sua sugestão, decide ela mesma fazer seu pequeno show particular, e se não pode fazê-lo no palco – que está ocupado pelos meninos, resolve se apresentar para a câmera – o que faz todo sentindo dentro do contexto de shows e apresentações – Power Ranger Vermelho que estava no palco com os meninos, desce e resolve acompanhá-la, uma vez que no palco não estava tendo show algum neste momento. As crianças utilizam-se então de meu papel de pesquisadora – que utilizava a câmera – para “brincar com o brincar” aproveitando o contexto da brincadeira.

Já na última narrativa Nós vamos viajar, nós vamos viajar!, não sou convidada a brincar e permaneço durante todo tempo observando as crianças sentada em minha mesa, isso, no entanto, não impede que algumas delas no decorrer da brincadeira estabeleçam contato comigo, como quando Beatriz, sentada no banco de trás da perua e cansada de esperar o início da viagem, olha para mim e diz: tá demorando – ao que eu respondo com um sorriso (p.76). Em outro momento, também Power Ranger Azul vem até minha mesa e diz animado que eles são uma família de Power Rangers e que ele é o pai e o Power Ranger Branco que vira dourado e depois volta para o grupo de crianças (p.77).

Nestes trechos, vemos o quão importante é, do ponto de vista do adulto-investigador, a reflexividade na pesquisa com crianças, já que por meio dela podemos nos conscientizar do impacto da presença do adulto-investigador na vida das crianças (FERREIRA, 2008) seja quando convidado a brincar como ocorreu nas duas primeiras narrativas, seja como observadora participante na narrativa Nós vamos viajar, nós vamos viajar! em que Beatriz e Power Ranger Azul, em diferentes momentos, estabelecem contato comigo de dentro da brincadeira e comentam coisas do contexto em que estão brincando. Ferreira (2008) nos adverte finalmente que a reflexividade metodológica auxilia também “para acionar processos de transformação de si e das relações tradicionais entre adultos e crianças, imprescindíveis à mudança social” (p. 153).