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O percurso teórico que segui neste trabalho foi surgindo de forma encadeada: as bases teóricas da Sociologia da Infância são e foram fundantes desde o início do projeto; conheci um pouco de Benjamin e sua relação com as crianças no último semestre da graduação e pude recuperá-lo rapidamente em meu projeto, sua visão do “pequeno mundo” das crianças me encantou desde a primeira vez e fui aos poucos estabelecendo uma relação com as culturas infantis; Certeau veio depois, conheci sua cultura de práticas em uma disciplina da pós- graduação20, e não pude não constituir uma aproximação entre as táticas e estratégias de sua teoria com as relações culturais entre crianças e adultos. A Educação Infantil como espaço e tempo ideais para as práticas do brincar já estavam presentes em mim desde meados da graduação, quando comecei a conhecer melhor este universo, tanto nos textos e nas disciplinas quanto nos estágios obrigatórios. Meu projeto inicial era, inclusive, sobre o brincar como objeto. Com o tempo, no entanto, fui transformando esse objetivo, sem, contudo, deixar de considerar a importância do brincar. Percebi, no entanto, com as minhas crianças e com a

20 “Michel de Certeau, Edward Palmer Thompson e Carlo Ginzburg: Diálogos com a História da Educação”, oferecida pela Profª Dra. Maria Ângela Borges Salvadori.

Sociologia da Infância, que gostaria de estudar as crianças com as crianças, brincando com elas, ou

para poder estudar a criança, é preciso tornar-se criança [...] não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo (BASTIDE,2004, p.195).

Com essa perspectiva em mente, busquei trabalhos que tratassem do protagonismo infantil. No âmbito internacional, alguns dos percursores mais destacados foram Sarmento e Pinto (1997), Sirota (2001) e Montandon (2001), Oliveira-Formosinho e Araújo (2004, 2006), Ferreira (2002, 2008), entre outros, na língua portuguesa. No Brasil, temos o trabalho pioneiro de Fernandes (2004), escrito originalmente em 1944, sobre as culturas infantis produzidas nas “trocinhas” do Bom Retiro, mas que não teve prosseguimento. A partir dos anos 2000, no entanto, temos importantes publicações como as de Cruz (2003), Delgado e Müller (2005a, 2005b), Quinteiro (2000) e Faria, Demartini e Prado (2002), entre outros. Há, atualmente, uma crescente preocupação em escutar as crianças e dar visibilidade a seus modos de enxergar o mundo.

Apostando então em dar conta da agência das crianças como atores sociais, optei pela etnografia como metodologia, buscando adotar o ponto de vista dos “nativos”, ou seja, me inserir e ser aceita entre as crianças como um de seus membros, com o intuito de compreender e interpretar as interações das crianças e as culturas infantis produzidas em seu brincar não dirigido e coletivo, e, não só, mas especialmente, as táticas criadas pelos pequenos para realizá- las.

É importante ressaltar que esse tipo de metodologia carrega questões cruciais que precisam estar evidenciadas durante toda a investigação. Em primeiro lugar, trata-se de um método interpretativo, o que significa que “nos escritos etnográficos [...] o que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem [...]” (GEERTZ, 2008, p.7). Fazer etnografia, para Geertz (2008), é como tentar construir uma leitura de manuscrito em língua estranha.

O que o etnógrafo enfrenta é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar (GEERTZ,2008, p.7).

Por isso, Corsaro considera tão importante a entrada reativa no campo: “[...] a entrada no campo é crucial na etnografia uma vez que um dos seus objetivos centrais como método interpretativo é estabelecer status de membro e uma perspectiva ou ponto de vista de dentro” (CORSARO, 2005, p.444). No meu caso, no entanto, isso se deu de maneira distinta por causa do duplo papel que assumi de professora-pesquisadora: o convívio com as crianças diariamente me permitiu uma relação de afeto e proximidade que facilitou o início da pesquisa, ao mesmo tempo em que tive de me desvencilhar por alguns momentos do papel de professora no sentido diretivo de propor e interferir em ações e comportamentos21 e me tornar uma adulta que ocupa espaços destinados às crianças e que espera para ser inserida pelos pequenos nas situações e brincadeiras respeitando seus tempos, seus espaços, suas oportunidades e suas permissões para realizar a pesquisa.

Outro ponto crucial em relação à metodologia adotada é “a interdependência do sujeito e do objeto do conhecimento das ciências sociais” (FERREIRA, 2008, p.152), o que significa assumir que estou dentro da pesquisa, que faço parte do processo da investigação como pessoa subjetiva localizada socialmente, com interesses, e consciente de que o meu trabalho representa a minha interpretação daquela realidade (FERREIRA, 2008). Por isso a importância, segundo essa autora, do processo de etnografia reflexiva, do saber que assim como o outro influi em mim, também eu interfiro no outro, e que a minha presença e a minha postura não passam despercebidas para as crianças. Na pesquisa com crianças, a reflexividade metodológica se faz ainda mais relevante na medida em que permite questionar tanto as práticas investigativas quanto os processos de construção de conhecimento como processos sociais e obriga, de certa maneira, à análise crítica de obstáculos epistemológicos como o adultocentrismo (FERREIRA, 2008). A reflexividade na pesquisa com as crianças importa, sobretudo, para ativarmos processos de transformação de nós mesmos e das relações tradicionais entre adultos e crianças importantíssimos à mudança social.

Ainda, porém, que sejamos reflexivos e que aos poucos possamos superar – ou lidar melhor com – as questões do adultocentrismo, é certo que nunca veremos o mundo através dos olhos das crianças como adultos que somos, jamais nos tornaremos “nativos”, ou seja, carregamos em nós nossas experiências, nossos estudos, assim como os outros também. Não

desejo, então, falar pelas crianças, mas escutá-las, no sentido de compreender o que dizem por meio de suas culturas infantis, manifestações, expressões verbais, gráficas, corporais, isto é, “compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade (Quanto mais eu tento seguir os marroquinos mais lógicos e singulares eles me parecem)” (GEERTZ, 2008, p.10). O mesmo se dá com as crianças: quanto mais nos aproximamos de seus mundos com reflexividade, mais compreendemos a lógica e singularidade infantis, o que contribui sobremaneira na forma em que tratamos nossas crianças. Pois, “na medida em que o pensamento lógico, realista e técnico continuar sendo a única, ou a mais valorizada forma de busca da verdade, e a psicologia não fizer apelo à antropologia, continuaremos apenas a ensinar crianças” (ROSEMBERG, 1976, p. 1471).

Para Geertz (2008), os textos antropológicos são, eles mesmos, interpretações. Interpretações de segunda, terceira mão, pois somente um nativo faz uma interpretação de primeira mão, que é sua própria cultura. O que o antropólogo faz são descrições densas feitas a partir de seu olhar, “trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’ – o sentido original de fictio – não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimentos de pensamentos” (GEERTZ, 2008, p.11).

E aqui, se justifica a escolha por apresentar a descrição densa das brincadeiras das crianças no formato de narrativas, de relatos. Isso porque,

o relato é, em si, a teoria das práticas cotidianas de que trata. Porque constitui igualmente, uma prática cotidiana. Ele é o único tipo de texto que é, ao mesmo tempo, uma discussão das práticas cotidianas e uma prática cotidiana em si. Ele próprio constitui a teoria daquilo que faz, daquilo que conta. Assim podemos analisar a narratividade como teoria possível, o discurso teórico das práticas cotidianas e a possibilidade de dar um trato científico a inúmeras práticas [...] (CERTEAU, 1985, p.18).