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O homem das sociedades arcaicas tomou consciência de si mesmo em um “mundo aberto” e rico de significados. Resta saber se essas “aberturas” são meios de fuga ou se, ao contrário, constituem a única possibilidade de alcançar a verdadeira realidade do mundo. Mircea Eliade

Experimentar o Mistério

Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio [...].

F. Dostoiévski

A narrativa de Jung não deixa dúvida a respeito de seu fascínio pelos mistérios e pelos mitos. Visivelmente, inclinava-se a responder de maneira diferente daquela recorrente nos Séculos XX e XXI, caracterizados por abordarem o mistério como algo a ser desfeito, decifrado. Parece-me uma expressão da prepotência humana que se julga capaz de desencantar o mundo.

Diariamente, há escolas, livros, jornais, revistas, programas de TV e até mesmo cientistas que se autodeclaram capazes desfazer mitos e mistérios. Claramente opõem mito x verdade, mistério x conhecimento, dando-nos uma forte impressão de que somos capazes de conhecer tudo o que há no universo. É como se bastasse desfazer o mito, para fazer aparecer a verdade. Parece que o ser humano inveja a onisciência que ele mesmo projeta nos seus deuses mitológicos.

Tudo se passa como se a razão fosse suprema, capaz de iluminar as zonas de sombra presentes em qualquer conhecimento, contrariando àquilo que pensou Bachelard quando afirmou que “o conhecimento do real é uma luz que sempre projeta algumas sombras” (BACHELARD, 2013, p. 17). Nesse caminho, nenhum mistério resistiria a uma boa e sensata explicação racional.

Filmes no estilo Indiana Jones ilustram bem o que ora afirmo. Seus criadores exploram toda uma atmosfera de mistério e simbolismo, sempre conduzindo a desfechos racionais e ocidentalmente civilizados. A capacidade de seu protagonista em fazer uso da razão e da intuição lhe permite desvendar todas as ciladas e as charadas que encontra pelo caminho. Ao fim, mas não sem muita resistência por parte dos vilões, o astuto personagem encontra o tesouro perdido, ou qualquer coisa que o simbolize.

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Cena do Filme Indiana Jones, 1981.

O que havia de misterioso e de enigmático geralmente se dissolve, são decifrados e tudo passa a ser bem compreendido, e os vilões são derrotados durante a procura do tesouro. Muitas vezes, os cenários exploram paisagens sombrias, marcadas por arquiteturas arcaicas, sempre contendo alguma torre a ser subida ou algum porão ao qual se deve descer. Sótão, calabouço, masmorra ou qualquer coisa do tipo.

Fonte: <https://goo.gl/xv8Rx1>.

Me interesso por estudar essas representações arquetípicas da odisseia humana. Me inclino a compreendê-las como expressões da nossa vontade de poder e de compreensão frente ao mundo, mas que, apesar disso, contém uma carga simbólica e interpretativa que abre um mundo de outras possibilidades em termos de experimentação dos mistérios. Outras que não apenas a do decifrador de charadas. A imagem seguinte, apresenta outro exemplo:

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Cena do Filme O Código Da Vinci, 2006.

Fonte: <https://goo.gl/zEj2zS>.

É possível reparar nos cenários, as esculturas, os desenhos arcaicos, as pinturas, os portais, entre outros. Parece que diante do mistério, que nesse caso está expresso nas vias da produção cinematográfica, mas que a ela não se restringe, lançamos mão da razão científica ocidental como a arma mais potente. E, aos quatro cantos, se propaga ser eficaz essa estratégia redutora.

Talvez o humano precise dessa ilusão para viver, para sentir-se seguro frente a um mundo inseguro. Para sentir-se ordenador de um mundo cuja ordem ultrapassa sua capacidade cognitiva. No entanto, a arrogância e a prepotência de sentir-se senhor de todas as coisas também tem seu preço. A destruição da natureza – nossa autodestruição – é, em boa parte, patrocinada por nossa própria prepotência.

Jung admitia que nossa sociedade ocidental havia virado as costas para os símbolos e para os mitos. Para ele, isso não representava um isolamento total entre homem e mito. Seria, aliás, impossível presumir tal isolamento. O que muda é a forma de relacionar-se, relegando ao esquecimento os nossos tesouros arcaicos como sendo quinquilharias, fragmentos de coisas velhas que para nada servem.

No entanto, é bom não deslembrarmos que esquecimento não é oposto à memória. É oposto à lembrança. E, memória e lembrança, são duas coisas diferentes. Aquilo de que estamos esquecidos pode ainda fazer parte da nossa memória. Enquanto aquilo de que nos lembramos é apenas uma parte acessível dessa mesma memória.

Portanto, o mistério pulsa, o primitivo vive, o arcaico continua lá, presente naquilo a que ele chamou inconsciente coletivo, por vezes nos invadindo ou dirigindo nossa experiência de ser-no-mundo. Virar as costas a isso representa a negação da ancestralidade, da densidade simbólica inerente a nossas vidas, expressa naquilo que fazemos tal como uma produção cinematográfica ou literária.

Há diferentes maneiras de relacionar-se com a dimensão simbólica daquilo que somos. Uma delas é situar sua significação no exterior dela mesma. Essa é a perspectiva que busca fazer passar toda manifestação simbólica e mitológica pelo crivo da peneira da razão. O que não se encaixar nas suas malhas, não é digno de explicação, e, portanto, de qualquer credibilidade ou relevância.

Essa perspectiva deixa grande parte do trabalho interpretativo por ser feita. E, acima de tudo, tem consequências. Ao contar um sonho vivido em sua infância, Jung manifesta aquilo que posso transpor para este contexto como uma crítica às interpretações do simbólico circunscritas ao plano da razão lógica:

Ah, essa boa gente tão zelosa e saudável sempre me dá a impressão daqueles girinos otimistas que, confinados numa poça de água de chuva, agitam alegremente a cauda ao sol, sem pensar que no dia seguinte a água rasa secará. (JUNG, 2016, p. 36).

Ele encarava como restrita e restritiva uma existência que se pretendesse distanciada de toda a carga simbólica e mitológica que emanam do íntimo de nossa existência. Assumia a necessidade da integração entre conhecimentos distintos, alguns inclusive pouco valorizados no âmbito da prática científica, como por exemplo o domínio estético e a imaginação mítico- mágica.

Sem o cultivo dessas modalidades de imaginação, capitaneadas pelas artes e por outras formas de expressão estética, bem como pelas narrativas e

motivos mitológicos expressos em diversas culturas, dificilmente teria ele conseguido elaborar explicações ricas de sentido a respeito da nossa vida simbólica.

São muitos os pensadores que tomam a sério o estudo das mitologias, do simbólico, do mágico e da imaginação. Essas diferentes esferas que imprimem sentido à existência humana se tocam, se integram, se opõem e se contrapõem. Estão presentes em nossas palavras e em outras expressões de linguagem. Explicando de maneira distinta, são esferas “ao mesmo tempo inseparáveis, opostas e contendo uma a outra”. (MORIN, 2008, p. 172)

Esse autor é categórico ao assumir que há uma dinâmica complementar entre o pensamento racional/técnico/científico e o mítico/simbólico/mágico. Eles se tocam, se complementam e se retroalimentam à luz do dia ou de maneira subterrânea. Dessa forma, a disjunção entre essas duas modalidades de expressão do pensamento humano traduz-se num equívoco que já começa a ser reparado há algumas décadas:

Muitos trabalhos de inspirações bastante diversas (entre os quais os meus) convergem para sublinhar a presença oculta do mito no centro do mundo contemporâneo e, mais profundamente, foi a partir do século XIX que a filosofia descobriu a importância do mito e questionou o seu mistério. Também, ainda que os nossos espíritos sejam muito diferentes daqueles dos arcaicos ou dos medievais, ainda que os dois pensamentos tenham-se tornado antagônicos, vivemos não somente nessa oposição, mas também na coabitação, na interação e nas trocas clandestinas e diárias entre eles. O problema dos dois pensamentos não é pois somente um problema original e histórico ultrapassado, mas o problema de todas as civilizações, inclusive as contemporâneas: um problema antropossocial fundamental. (MORIN, 2008, p. 170).

O texto permite situar bem a ideia de que não se trata de trocar um estilo de pensamento por outro. Também não se trata de negar as diferenças e distâncias entre os dois. Não se trata de abandonar nossos tempos. Trata-se de reconhecer que esses pensamentos se articulam, se parasitam, se contrapõem e se complementam.

Um fenômeno paradoxal, complexo: há uma indissociabilidade e uma rearticulação constantes entre o pensamento do homem contemporâneo e o do homem ancestral. O último livro de Jung, O Homem e Seus Símbolos, também apresenta o argumento de que o homem moderno é parasitado pelos mitos antigos. Há “um elo crucial entre os mitos arcaicos ou primitivos e os símbolos

produzidos pelo inconsciente” (HENDERSON, 2008, p. 140), cuja importância é vital para compreendermos nossas vidas individual e coletiva.

Joseph Henderson foi um colaborador de Jung, contribuindo para a elaboração do referido livro. Sua visão a respeito dessa questão propicia o apoio à linha de pensamento que tenho adotado aqui. Escreve ele:

O homem continua a reagir às profundas influências psíquicas que, conscientemente, há de rejeitar como simples lendas folclóricas de gente supersticiosa e sem cultura. Mas é preciso irmos bem longe. Quanto mais detalhadamente se estuda a história do simbolismo e do seu papel na vida de diferentes culturas, mais nos damos conta de que há também um sentido de recriação nesses símbolos. (HENDERSON, 2008, p. 140).

Ao menos em relação à parte que conheço do trabalho de Jung, me permito afirmar que em nenhum momento há a tentativa de negar no homem essa abertura ao mítico, ao simbólico e à imaginação. Mesmo que isso lhe traga consequências, como por exemplo, a incompreensão e a rejeição em muitos ambientes acadêmicos.

Mas, desejo dar um passo adiante, rumo a um lugar cognitivo para o qual o que escrevi até aqui, neste capítulo, funciona apenas como vetor de aproximação. Em outras palavras, não desejo esgotar a discussão a respeito da dualidade racional-simbólico, mito-realidade.

Circunscrito por esse pensamento, intenciono afirmar que, pelo menos em parte da narrativa contida nas Memórias, há indícios que apontam para um Carl Jung habitado por uma estética da imanência; por uma vontade indomável de pôr algumas de suas fantasias mais significativas no plano material. Num plano que posso aqui me arriscar a chamar de concreto.

Isso é sempre arriscado, pois pode ser confundido com a velha e inoperante dualidade entre teoria e prática, pensamento e ação, falar e fazer, entre outras formas quase patológicas de cisão do ser humano e das formas de expressão de suas realidades. Não pretendo cair nessa armadilha ou induzir o leitor a fazê-lo. Sigamos adiante.

Percebo nas narrativas uma vontade de imanência, de um lugar seguro para dosar o contato com o mundo da fantasia e evitar perder-se nele. Perder- se, nesse caso, seria como esquecer-se da ligação intrínseca entre alma e

corpo, mente e matéria, psique e realidade. Seria como um tipo específico de aprisionamento no mundo psíquico, uma perda de conexão.

Exponho, então, um trecho que corrobora o que estou afirmando:

Trabalhando muito consegui, aos poucos, apoiar em terra firme minhas fantasias e os conteúdos do inconsciente. As palavras e os escritos não eram bastante reais para mim; era preciso outra coisa. Necessitava representar meus pensamentos mais íntimos e meu saber na pedra, nela inscrevendo, de algum modo, uma profissão de fé. Foi assim que comecei a construir a torre de Bollingen. Essa ideia pode parecer absurda, mas a realizei – o que foi para mim uma grande satisfação, um acontecimento significativo. (JUNG, 2016, p. 225).

Ele constrói uma torre. Busca dar um tipo de concretude, transmudar o plano de expressão de suas fantasias para além de seus escritos e de suas pinturas. Isso não significa a negação do simbólico, mas o refinamento do diálogo com a matéria dura, concreta, me endereçando aos Devaneios da Vontade de que falou Bachelard.

O “trabalho efetivo da matéria” é uma forma de enfrentar a resistência das matérias duras. Esculpir, construir, polir e lapidar são sempre atos da ordem de uma vontade que, uma vez sonhada, transborda os limites do mundo sonhado. Uma vez participando da dimensão transcendente da psique, tal vontade emana e se encarna num dado objeto por meio do suado trabalho com as tábuas, as pedras, os tijolos, entre outros:

Assim a matéria nos revela as nossas forças. Sugere uma colocação de nossas forças em categorias dinâmicas. Dá não só uma substância duradoura à nossa vontade, mas também esquemas temporais bem definidos à nossa paciência. De imediato, a matéria recebe de nossos sonhos todo um futuro de trabalho; queremos vencê-la trabalhando. Desfrutamos de antemão a eficácia de nossa vontade. Não se espantem, pois, de que sonhar imagens materiais – isso mesmo, simplesmente sonhá-las – é imediatamente tonificar a vontade. Impossível ficar distraído, ausente, indiferente, quando se sonha uma matéria resistente nitidamente designada. Não se poderia imaginar gratuitamente uma resistência. (BACHELARD, 2013, p. 19, grifo no original).

Um tipo de afirmação diante do mundo. A escolha por um tipo de enfrentamento que não tem o mesmo conforto de uma imaginação hedonista. Um tipo de projeto que obriga o sujeito a obedecer-lhe. Em várias passagens narradas por Jung, são perceptíveis momentos em que a imaginação parece

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Construção da TorreBollingen

ter exercido sobre ele uma força tão potente, tão avassaladora, que somente o trabalho com a matéria poderia lhe trazer de volta.

Não se tratava, porém, de um tipo de oposição entre imaginação e matéria. O trabalho com a matéria parecia ser ele mesmo produto ou inspiração de uma rica atividade imaginativa. Há uma dialética entre imaginação e matéria, donde considero ser a Torre um tipo de síntese.

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Vista traseira da Torre Bollingen.

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Torre de Bollingen à beira do Lago Zurique Fonte: Whitney e Wagner (2013).

Jung fez questão de imprimir um ar de ancestralidade à Torre, considerando-a como uma atmosfera espiritual. É com essas palavras que ele descreve o modo como nela vivia:

Na minha torre, em Bollingen, vive-se como há séculos. Ela durará mais do que eu; sua situação e seu estilo evocam tempos que há muito já passaram. Lá, poucas coisas lembram o presente. Se um homem do século XVI entrasse na casa, somente o lampião de querosene e os fósforos seriam novidade para ele; com o resto ele não teria dificuldade. Nada, nela, perturbaria os mortos: nem luz elétrica, nem telefone. As almas de meus ancestrais são mantidas pela atmosfera espiritual da casa, pois respondo, bem ou mal, às questões que suas vidas deixam em suspenso, desenhei-as nas paredes. É como se uma grande família silenciosa, ao longo dos séculos, povoasse a casa. Lá vivo meu personagem número dois, e vejo amplamente a vida que se cumpre e desaparece. (JUNG, 2016, p. 237).

Foram necessários mais de 30 anos para que a Torre assumisse sua forma final. Todo o processo foi acompanhado de perto por seu idealizador. Ela é composta de quatro torres, que foram construídas em tempos diferentes, sendo integradas até assumirem a forma final, exibida nas imagens 9 e 10.

Era seu retiro psíquico e espiritual. Lugar de recolhimento. “Ela devia oferecer uma sensação de refúgio e de abrigo, não só em sentido físico, mas também psíquico” (JUNG, 2016, p. 225). Um lugar de imaginação, embebido de significação simbólica e psicológica. Isso pode até parecer estranho nos tempos de Jung, bem como nos dias de hoje, mas:

No tempo em que a psicologia estava ligada à filosofia e à religião, ela existia também sob a forma de Arte. Poesia, Tragédia, Escultura, Dança, a própria Arquitetura, eram meios de transmissão do conhecimento psicológico. Certas catedrais góticas, por exemplo, eram essencialmente tratados de psicologia. (OUSPENSKY, 2012, p. 4).

Conforme o psicólogo russo Ouspensky sinaliza no trecho acima, há todo um significado psicológico e filosófico em certas modalidades de arte, de arquitetura, entre outras. Eu acrescentaria o termo simbólico. Existe um simbolismo que inspira, em alguns sujeitos, a expressão ou contato com dimensões de sua existência psíquica. Isso pode ser visto na narrativa de Jung em um contexto diferente do da Torre, mas que cabe bem para ilustrar essa reflexão. “Nas catedrais góticas”, afirma ele:

O infinito do cosmos e do caos, do sensato e do insensato, da intencionalidade impessoal e das leis mecânicas se achavam dissimuladas na pedra. Esta era, e ao mesmo tempo encerrava o mistério insondável do ser, a quintessência do espírito. Creio que nisso residia, obscuramente, meu parentesco com a pedra; tanto na coisa morta como no ser vivo jazia a natureza divina. (JUNG, 2016, p. 83).

As imagens religiosas coadunaram-se com suas experiências pessoais e sintetizaram um tipo de religiosidade desviante da religião padrão, mas que, ao mesmo tempo, a incluíam. A Torre não me parece ser apenas o lugar de contato com sua ancestralidade e paz de espírito, mas também um tipo de expressão e síntese de algumas de suas imagens religiosas e não-religiosas mais significativas.

“Era poderoso o sentimento de repouso e de renovação que a torre despertara em mim desde o início. Constituía como que uma morada materna” (JUNG, 2016, p. 225). Esse refúgio, tal como narra Jung, faz reverberar a ideia de processo, de amadurecimento, de lenta lapidação e equilibração de uma pedra sobre outra. Ou, como Jung mesmo afirmou, inspira uma compreensão da totalidade psíquica:

Desde o início, a torre foi para mim um lugar de amadurecimento – um seio materno ou uma forma materna na qual podia ser de novo como sou, como era, e como serei. A torre dava-me a impressão de que eu renascia na pedra. Nela via a realização do que, antes, era um vago pressentimento: uma representação da individuação. Um marco, aere perennius. Ela exerceu sobre mim uma ação benfazeja, como a aceitação daquilo que eu era. Construíra a casa em partes separadas, obedecendo unicamente às necessidades concretas do momento. Suas relações interiores jamais tinham sido objetos de minhas reflexões. Podia-se dizer que construíra a torre numa espécie de sonho. Somente mais tarde percebi o que tinha nascido, e a forma plena de sentido que disso resultara, símbolo de totalidade psíquica. Ela se desenvolvera como um grão antigo que tivesse germinado. (JUNG, 2016, pp. 226-227, grifo no original).

Novamente se faz presente, nessas palavras, a indicação de que em seu movimento de vida, Jung assumia o que sentia, o que precisava ser vivido e, somente depois, construía algum sentido mais elaborado para a sua experiência. Mesmo alguém que se dedica a formas de cultivo da imaginação, que se inclina ao simbólico, não adquire a capacidade de compreender e de explicar suas vivências em tempo real. É sempre depois, sempre a posteriori.

Isso reforça a exigência da reflexão. Reafirma no ser humano a necessidade de lançar-se na vida e no mundo, bem como debruçar-se sobre seu passado. A vivência no tempo presente é a única realidade disponível, existente. No entanto, o futuro, e, especialmente o passado, o assombravam e nele interferiam de diversas maneiras. Refletir o vivido é como voltar no tempo. Um tipo de reconstrução do passado que somente é possível em termos relativos.

Mais que isso: Jung também atribuiu um sentido materno à Torre. Um tipo de acolhimento que transmite aconchego e segurança. Não por acaso, sua construção tem início em 1923, dois meses após a morte de sua mãe; e tem seu fim em 1955, após a morte de sua esposa, duas mulheres que exerceram influência e tiveram importância em sua existência.

Durante algumas passagens do livro, ele afirma que quando pretendia escrever um novo texto, dirigia-se à Torre e por lá ficava por alguns dias, sem escrever uma palavra sequer. Era um tipo de silêncio, de meditação, de contemplação do interior da casa, bem como do lago e da paisagem. Nesse tempo, dedicava-se também a atividades como coletar água, rachar lenha, acender a lareira e cozinhar. Apenas alguns dias depois iniciava sua escrita.

Eu já havia escutado algumas analogias entre a casa e o ser humano. Algo como uma correspondência entre o interior da casa e o interior do sujeito. Mas confesso que dei pouca ou nenhuma importância ao que ouvi. Parece que quando o sujeito não está à procura da mensagem, não a enxerga mesmo que esbarre com ela. Talvez os sentidos precisem estar aguçados, sintonizados

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