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Do segredo ao sagrado. O autoconhecimento nas narrativas autobiográficas de C. G. Jung

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Academic year: 2021

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(2) UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS. ADEILTON DIAS ALVES. DO SEGREDO AO SAGRADO O autoconhecimento nas narrativas autobiográficas de C. G. Jung. NATAL/RN 2018.

(3) ADEILTON DIAS ALVES. DO SEGREDO AO SAGRADO O autoconhecimento nas narrativas autobiográficas de C. G. Jung. Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de Pesquisa: Complexidade, Cultura e Pensamento Social Orientadora: Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida. NATAL/RN 2018.

(4) Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Setorial do NEPSA/CCSA Alves, Adeilton Dias. Do segredo ao sagrado. O autoconhecimento nas narrativas autobiográficas de C. G. Jung / Adeilton Dias Alves. – Natal, RN, 2018. 209 f. : il. Orientador: Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. 1. Carl Gustav Jung – Tese. 2. Narrativas autobiográficas – Tese. 3. Autoconhecimento – Tese. I. Almeida, Maria da Conceição Xavier de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/BS/CCSA. CDU 37.035.

(5) ADEILTON DIAS ALVES DO SEGREDO AO SAGRADO O autoconhecimento nas narrativas autobiográficas de C. G. Jung Tese de Doutorado apresentada à Coordenação do Programa de PósGraduação em Ciências Sociais (PPGCS), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Examinada em: ___/___/2018. BANCA EXAMINADORA __________________________________________________________ Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Orientadora – UFRN __________________________________________________________ Prof. Dr. Fagner Torres de França Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Examinador Interno __________________________________________________________ Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Examinadora Interna __________________________________________________________ Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP Examinador Externo __________________________________________________________ Profa. Dra. Geovânia da Silva Toscano Universidade Federal da Paraíba – UFPB Examinadora Externa __________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Laudelina Ferreira Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Suplente Interno __________________________________________________________ Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN Suplente Externa.

(6) À minha avó paterna e segunda mãe, Regina Amaro (in memorian), uma analfabeta que sempre quis ver seu neto formar-se doutor, mesmo que não fosse doutor de médico..

(7) As árvores caem com grande ruído, mas ninguém escuta a floresta que cresce. Antigo Provérbio Zairense.

(8) AGRADECIMENTOS. Uma tese nunca é solta no nada. Síntese de vivências, forma-se no tumulto da vida e tem seu berço no espaço-tempo. No meu caso, tem relação com processos formativos que começaram muito antes do meu ingresso no doutorado. É a culminância e o reinício de um ciclo que teve a contribuição de vários sujeitos, muitos dos quais não serão aqui mencionados, mas aos quais devoto minha gratidão. Outros serão mencionados, aos quais também sou imensamente grato. No começo de tudo, foram: Berg Freitas, Vânia Porto e Júlio Oliveira, que me disseram haver, pelo menos, uma porta. Foi Carlos Queiroz e Domingos Cunha que, em tempos diferentes, me permitiram ver mais longe: visão sem a qual, o fato de haver ou não haver porta, seria indiferente. José Magela e Raimundo Nonato também me indicaram o caminho rumo à porta. Elísio Gomes, Sueli Catarina, Carmilson Brito e Tânia Barbosa, deram alguns passos comigo em direção a ela. Algumas lições éticas e técnicas aprendidas com Nonato Almeida pavimentaram o chão que eu ainda iria pisar. Isso foi decisivo para a edificação da minha formação. Nas horas difíceis da graduação e do mestrado, foi Geovânia Toscano quem se recusou a me deixar desistir. Acreditou em mim em momentos nos quais eu mesmo já não mais acreditava. Desde o início até os dias de hoje, Berg Freitas e Almino Santos me auxiliam na resolução de assuntos pragmáticos do cotidiano. As palavras de Suamy Rafaely e Aizianne Leite ao telefone/e-mail, me distraíram e me aqueceram para que eu não sucumbisse à solidão dos momentos de escrita do texto. Suas piadas e histórias sem pé nem cabeça arejavam-me a mente. O apoio de Lívia Maria também foi importante para mim. Uma amiga querida que, mesmo à distância, esteve presente em minha vida durante este processo que para mim não foi fácil. Nesse mesmo sentido, Lígia Oliveira também é uma amiga querida. No Grecom, tive ajuda de muitas pessoas e de diferentes formas, pessoas dentre as quais destaco: Wani Pereira, Thiago Severo e Thiago.

(9) Lucena. Em nome destes, cumprimento a todos que ali contribuíram nesta empreitada. Josineide Silveira acompanhou mais de perto algumas questões cruciais. Em alguns momentos, sua presença era sutil, mas eu percebia. Conhecer e conversar com seu Chico Lucas foi presente valioso! Também no Grecom, o contato mais próximo com Juliana Rocha, Lídia Borba, Louize Gabriela, Gledson Moura e Jair Moisés, marcou um tempo curto, porém rico em múltiplos aprendizados. Algumas ideias que escrevi eclodiram de situações nas quais um ou mais de vocês, intencionalmente ou não, me provocaram reflexões. Trocar ideias com Luan Gomes também foi de grande importância. Mônica Reis e Alaim Passos foram grandes parceiros. Na Bahia, José Carlos, Marisa Batista, Cauê Ayô e Dandara Ayô, foram um presente tão inesperado quanto gratificante. Até então, não imaginava que as teias do acaso poderiam se configurar de forma tão especial. Além disso, vocês muitas vezes souberam como distrair a Suiane e ao Mateus, para que eu então pudesse adentrar na solidão do Calabouço e, assim, escrever alguns parágrafos. A palavra “obrigado” não dá conta... Na reta final, foi Romeu Menezes quem me ajudou a planejar o necessário afastamento. Outro parceiro com quem pude contar! Sem minha companheira Suiane Alves e meu filho Mateus Dias, eu sei que, provavelmente, teria terminado esta tese um ano antes. Mas a presença de vocês na minha vida faz tudo ter mais sentido. Utilizando palavras de Adélia Prado, “colore tudo de alaranjado brilhante”. Minha orientadora e amiga Conceição Almeida, a Ceiça. Precisava ser você para me fazer atravessar a porta. Não pensava mais, a esta altura da vida, encontrar alguém com essa capacidade de dedicar-se ao outro, de estimular o crescimento alheio. A tese é também uma forma de homenagear-te, bem como também é um pedido de desculpas pelas frustrações que, inevitavelmente, devo tê-la feito passar. Guardo comigo a pedra (a pedra do vulcão), que para mim passou a ser como aquela a que se refere João Cabral de Melo Neto: “uma pedra de nascença que entranha a alma”..

(10) RESUMO A tese constitui o esforço para compreender a noção de autoconhecimento presente nas narrativas autobiográficas de Carl Gustav Jung, publicadas no livro intitulado Memórias, Sonhos, Reflexões (Memórias, Sonhos, Reflexões, 2016). O estudo destes fragmentos autobiográficos indicou que, em Jung, o conhecimento do ser humano sobre si mesmo opera construções do imaginário que nos religam a um sentido de realidade por meio do cultivo de afinidades ancestrais da sensibilidade. Foi este o argumento que persegui. E mais: longe de ser um fechamento narcisista do sujeito em si mesmo, há ali uma noção de autoconhecimento que fomenta um tipo de ética e estética de vida. Das construções do imaginário derivam uma ética do sujeito para consigo mesmo (autoética), endereçando-o ao encontro do outro (socioética). Em grande parte, a saúde deste encontro depende do cultivo de um senso de realidade que só pode ser levado a cabo por meio do engajamento na comunidade humana, com a aceitação das consequências que lhes são inerentes. Há também uma dimensão da ética que remete ao antrhopos (antropoética). Essa atitude em assumir o destino humano demanda, inclusive, uma reaproximação do sujeito com a memória ancestral, com suas forças psíquicas primordiais, que se dá pelo cultivo das afinidades ancestrais da sensibilidade. As sucessivas aproximações ao material de pesquisa foram realizadas com o apoio das ideias de Mircea Eliade (1947, 1992a, 1992b, 2012), Gaston Bachelard (1978, 2008, 2013), Edgar Morin (2008, 2011a, 2013, 2014) e Teresa Vergani (2009), além de outros que podem ser observados ao longo do texto. Em Jung, o autoconhecimento é uma construção lenta e paciente, mediada pela relação com imagens e símbolos, produto complexo e inacabado de uma itinerância que dura toda uma vida, se pensarmos em termos de indivíduo; e séculos, se pensarmos em termos de humanidade. Palavras-Chave: Carl Autoconhecimento.. Gustav. Jung;. Narrativas. Autobiográficas;.

(11) ABSTRACT This thesis constitutes an effort to understand the self-knowledge presented in the autobiographical narratives of Carl Gustav Jung on his book Memories, Dreams, Reflections (JUNG, 2016). The study of the autobiographical fragments indicates that in Jung, the knowledge of the human being about himself operates constructions of the imaginary bidding us a sense of reality through the cultivation of ancestral affinities of sensibility. This was the argument I pursued. Furthermore, far from being a narcissistic closure of the subject per se, a notion of self-knowledge promotes some sort of ethics and aesthetics of life. From the constructions of the imaginary, derives the ethics from the subject to oneself (self-ethics) addressed to the other (socio-ethics). This encounter depends on the cultivation of a sense of reality that can only be carried out through the engagement in the human community, with the acceptance of their consequences. Also, a dimension of ethics refers to the anthropos. This attitude of engaging human destiny even demands a rapprochement of the subject with the ancestral memory as its primordial psychic forces and given by the cultivation of the ancestral affinities of the sensibility. The successive approaches to the research material were carried out with the support of the ideas of Mircea Eliade (1947, 1992a, 1992b, 2012), Gaston Bachelard (1978, 2008, 2013), Edgar Morin (2008, 2011, 2013, 2014), Teresa Vergani (2009), among many others. The Jung self-knowledge is a slow and patient construction, mediated by images and symbols relations, a complex and unfinished product of a lifelong itinerancy whether in terms of the individual and centuries in terms of humanity. Keywords: C. G. Jung, Autobiographical Narratives, Self-knowledge..

(12) RESÚMEN La tesis constituye un esfuerzo por comprender la noción de autoconocimiento presente en las narrativas autobiográficas de Carl Gustav Jung, publicada en el libro titulado Memorias, Sueños, Reflexiones (JUNG, 2016). El estudio de estos fragmentos autobiográficos indicó que en Jung, el conocimiento del ser humano sobre sí mismo opera construcciones del imaginario que nos religan a un sentido de realidad por intermedio del cultivo de afinidades ancestrales de la sensibilidad. Este ha sido el argumento que perseguí. Y más: lejos de ser un cierre narcisista del sujeto en sí mismo, hay allí una noción de autoconocimiento que fomenta un tipo de ética y estética de vida. De las construcciones del imaginario derivan una ética del sujeto para consigo mismo (autoética) que le dirige al encuentro del otro (socioética). En gran parte la salud de este encuentro depende del cultivo de un sentido de realidad que sólo puede ser llevado a cabo por intermedio de la inserción en la comunidad humana, con la aceptación de las consecuencias que le son inherentes. Hay también una dimensión de la ética que remite al anthropos (antropoética). Tiene que ver con una reaproximación del sujeto con la memoria ancestral, con sus fuerzas psíquicas primordiales, que se da por el cultivo de las afinidades ancestrales de la sensibilidad. Aproximaciones sucesivas al material de investigación se llevaron a cabo con el apoyo de las ideas de Mircea Eliade (1947, 1992a, 1992b, 2012), Gaston Bachelard (1978, 2008, 2013), Edgar Morin (2008, 2011, 2013, 2014), Teresa Vergani (2009), entre tantos otros que pueden ser observados a lo largo del texto. En Jung, el autoconocimiento es una construcción lenta y paciente, mediada por la relación con imágenes y símbolos, producto complejo e inacabado de una itinerancia que dura toda una vida, si pensamos en términos de individuo; y siglos, si pensamos en términos de humanidad. Palabras-Clave: Carl Gustav Jung, Narrativas Autobiográficas, Autoconocimiento..

(13) SUMÁRIO. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12 I – SER UM FENÔMENO PARA SI MESMO ................................................... 32 O Conhecimento como um Fenômeno Complexo ............................................. 33 O Autoconhecimento em Jung .............................................................................. 54 II – SEGREDOS E MISTÉRIOS ....................................................................... 82 Experimentar o Mistério .......................................................................................... 83 A Potência do Segredo ......................................................................................... 114 III – MOVER-SE EM DIREÇÃO ÀS IMAGENS .............................................. 136 Imagens que Aprisionam, Imagens que Libertam ............................................ 137 Ética das Imagens, Estética de Vida .................................................................. 171 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 196 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 202 ANEXOS Fotografias de Jung em Situações e Contextos Diversos.

(14) INTRODUÇÃO. […] a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar. Clarice Lispector. O suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) entrou definitivamente para a história como um dos mais perspicazes observadores da cultura que o Século XX registrou. Apesar de muitos o classificarem como psicólogo ou psiquiatra, ele nunca se limitou a esses reducionismos e aprisionamentos. Seu principal interesse de estudo foi o ser humano, especialmente a psique. Para viabilizar tal interesse, fez-se como um nômade no domínio do pensamento, perpassando por estudos de filosofia, teologia, psicologia, misticismo, simbologia, religiões, entre outros. É reconhecido como fundador da Psicologia Analítica. A imagem abaixo apresenta Jung e sua esposa Emma: IMAGEM 1 Jung e sua esposa Ema. Fonte: Whitney e Wagner, (2013).. 12.

(15) O pensamento de Carl Gustav Jung é, para mim, uma fonte inspiradora do bem pensar. Paradigmático e paradoxal, mantém estreita ligação com as diversas manifestações do conhecimento humano, como as ciências, as religiões, as artes, entre outras. Contém uma visão otimista a respeito do ser humano, e pessimista quanto aos rumos tomados por nossa civilização. Há, nesse âmbito, muito a ser discutido e aprendido no campo das Ciências Sociais, com ou sem interface junto à Psicologia. De fato, é preciso reconhecer que a Antropologia não é privilégio exclusivo dos antropólogos; nem a Psicologia, dos psicólogos. Especialmente se estivermos falando não da disciplina antropologia, mas de um estudo do Homem propriamente dito. Nesse sentido, os trabalhos de Jung extrapolam os limites disciplinares, com os quais, aliás, ele pouco se preocupou. Estava mais interessado no conhecimento do que na preservação do status quo. Mais inclinado a perseguir e compreender um fenômeno do que em satisfazer os padrões morais da ciência ou de qualquer outra modalidade estabelecida de conhecimento. Nessa seara, o considero um perspicaz observador da cultura, que se utiliza de um arsenal supradisciplinar e desafia as fronteiras hegemônicas que isolam o conhecimento em áreas. Talvez por isso, ainda no Século XXI, sua obra é contestada e pouco compreendida por muitos intelectuais. Por outro lado, também é crescente o número de estudos e discussões sobre, ou em decorrência da, Psicologia Analítica e de seus desdobramentos em várias áreas do conhecimento. Em Psicologia, há vários autores, dentre os quais posso destacar James Hillman (2010a, 2010b), Nise da Silveira (1992), Walter Boechat (2014); em História das Religiões, há Mircea Eliade (2012, 2016); em Física, Wolfgang Pauli (PAULI;JUNG, 2001); na Mitologia, é possível mencionar Joseph Campbell (2008, 2016); na Espiritualidade, há incontáveis autores, dentre os quais se destacam o teólogo e psicólogo Jean-Yves Leloup (2003) e os teólogos Anselm Grün e Wunibald Müller (2010). Há ecos do pensamento de Jung nos trabalhos de cada um desses sujeitos. Duas das ideias mais caras a Jung, a de Inconsciente Coletivo e a de Sincronicidade,. ganham. não. somente. destaque,. mas. sequência. e. desdobramentos nos trabalhos do biólogo Rupert Sheldrake (1995, 2013), relativos à existência de campos morfogenéticos. Trata-se de uma revitalização 13.

(16) da discussão a respeito das chamadas coincidências significativas sem causa aparente.. Além. de. Sheldrake,. há. incontáveis. outros. autores/ideias. influenciados pelos trabalhos do médico suíço, mas não cabe aqui o esforço por esgotar essa lista. No âmbito da pesquisa acadêmica no Brasil, teses e dissertações são produzidas a respeito de Jung, de seu pensamento ou de algum desdobramento do mesmo. No Paraná, Rodrigo Ceccon defendeu dissertação em que analisou as correspondências trocadas entre Jung e o sacerdote dominicano inglês Victor White, destacando os paralelos epistêmicos entre a religião e a psicologia moderna (CECCON, 2012). Em Minas Gerais, Bruno Portela discutiu a questão da cura da alma na psicologia junguiana, dando ênfase ao processo de realização humana ao qual Jung chamou de individuação (PORTELA, 2013). Também em Minas Gerais, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Felipe Souza abordou a questão das polaridades da psique e das concepções de Deus presentes no Livro Vermelho de Jung, relacionando, inclusive, esse livro às Obras Completas do fundador da Psicologia Analítica. (SOUZA, 2015). Na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Solange Mattos põe em cena o simbolismo que acompanha o mito do herói, mobilizando trabalhos de Joseph Campbell e de Jung na reflexão a respeito das narrativas mitológicas em torno da figura do herói, de sua morte, de sua transformação (MATTOS, 2011). Destaca a experiência de imaginação ativa vivida por Jung. Já no âmbito da Universidade de São Paulo, Luís Vechi defendeu tese de doutoramento na qual aborda as contribuições da Psicologia Analítica para o estudo de instituições. (VECHI, 2008). Houve também muitas tentativas de biografar a vida desse pensador. Em Jung: vida e obra (SILVEIRA, 1997), Nise da Silveira entrelaça, em sua narrativa, uma compreensão a respeito dos conceitos e das ideias de Jung, mas também faz destaques a respeito de sua trajetória de vida. Com o mesmo título do livro de Nise, Barbara Hannah narra fragmentos da vida de seu mestre. (HANNAH, 2003). Professor em Harvard, o alemão Paul J. Stern dedicou-se a construir aquela que me parece uma biografia moral de Jung. Para ele, Jung não teria passado de um charlatão excêntrico, cuja obra seria o resultado do uso criativo 14.

(17) da loucura insipiente (STERN, 1974, p. 14). Apesar da obra ser catalizadora das dissimulações do ódio incontido contra Jung e contra seu pensamento, é também uma leitura necessária. Sonu Shamdasani, por meio de C. G. Jung: uma biografia em livros (2014), apresenta uma tentativa de biografar a trajetória de Jung através dos livros que leu e que escreveu. Essa obra congrega, em abundância, imagens de livros, de biblioteca, de salas de leitura de Jung, entre outros, todos ilustrados por comentários de Sonu Shamdasani que, na atualidade, é provavelmente o mais proeminente estudioso da obra de Jung. A escritora irlandesa Claire Dunne fez uma biografia ilustrada com o título Carl Jung: curador ferido de almas (2012), num estilo de escrita desejoso de “que ele próprio contasse sua história o máximo possível” (DUNNE, 2012, p. 16). O caminho percorrido pela autora é promissor e, mesmo tendo conhecido seu trabalho já na fase final da minha pesquisa, percebi que, de alguma maneira, guarda alguma afinidade com o itinerário a que me dediquei. No entanto, não se aproximou tanto quanto as ficções de Hillman. Chamou-me a atenção um trabalho de James Hillman, chamado Ficções que Curam, no qual empreende uma análise do método utilizado por Jung para enfrentar o “conhece-te a ti mesmo” (HILLMAN, 2010). Esse livro é, para mim, uma aproximação promissora ao fenômeno do autoconhecimento. Portanto, é o que, por um ângulo reverso em relação àquele a que me dedico, o que mais se aproxima daquilo que desenvolvo nesta tese. Aquilo a que Hillman procurou observar como sendo um método estruturado, me interessa estudar mais enquanto concepção implícita ou mesmo explícita e menos enquanto estruturação de um caminho a ser seguido por outros. Isso porque não estou interessado em saber se aquilo que Jung fez serve e deve ser feito por outras pessoas. Não estou interessado em definir ou institucionalizar qualquer método. Prefiro deixar essa tarefa para os psicólogos. Por outro lado, se caminharmos com os pensamentos de Morin (2003), que concebe o método da perspectiva da estratégia como uma configuração complexa que não pode de maneira alguma prescindir das circunstâncias, a tarefa seria perfeitamente cabível, pois aí estaríamos tratando de método a partir das estratégias da inteligência que o sujeito engendrou para enfrentar o. 15.

(18) desafio de conhecer algo ou também a si mesmo. De todo modo, afirmo, logo de início, que não é a busca de um método que me move neste estudo. Interessa-me nessa jornada a busca por fragmentos que indiquem a concepção de autoconhecimento expressa nas narrativas autobiográficas de C. G. Jung. Instiga-me conhecer essa concepção à luz da organização dos seus pensamentos. autobiográficos.. Portanto,. a. despeito. das. leituras. que. contribuíram para ampliar meus horizontes de estudo, meu material privilegiado de pesquisa é o conteúdo do livro Memórias, Sonhos, Reflexões (JUNG, 2016). Escrito por Jung, esse livro foi organizado por Aniela Jaffé, uma de suas discípulas e parceiras intelectuais. Foi publicado postumamente no ano da morte de seu autor, que ainda pretendia acrescentar-lhe algumas páginas. Trata-se de um texto rico em vida simbólica, quase uma narrativa mitológica que, até o momento, sua riqueza de sentidos nem se esgotou, nem se desgastou e nem se esvaziou. Já foi estudado por pensadores como Hillman (2010), Shamdasani (2014), Hannah (2003), Dunne (2012), entre tantos outros, e mesmo assim, mantem-se como uma luz brilhante e reluzente que permite iluminar certas zonas de sombra da vida e da obra de seu autor. Elaborado já no final de sua vida, representa, para mim, um olhar produtor de sínteses imagéticas, por meio do qual seu autor aproveita a possibilidade. de. reconstruir. interpretações. sobre. aqueles. sentidos. e. significados de sua trajetória que sobreviveram à oxidação implacável imposta pelo tempo. Significa, por assim dizer, uma reflexão sobre aquilo que a memória lhe permitiu guardar, seja por convocação ou repetição insistente de pensamentos, seja por emanação onírica ou mesmo por provocação filosófica. De uma forma ou de outra, ao dar forma a um texto autobiográfico, o seu autor não traz à luz os fatos em si mesmos. Não podemos nem mesmo levar muito a sério este termo, “fatos”, pois não há segurança nenhuma de que uma narrativa autobiográfica, qualquer que seja, represente “a verdade dos fatos”. E não se trata, aqui, de duvidar da honestidade ou da competência de seu autor. Trata-se, sim, de entender que o humano tem como uma de suas principais características a capacidade de enganar a si mesmo, de, no contar e no recontar de histórias, suprimir detalhes, completar lacunas, “esquecer-se” de detalhes importantes, entre outras peripécias do inconsciente. Edgar Morin. 16.

(19) bem o sabe, pois, ao iniciar sua aventura autobiográfica, nas primeiras páginas de seu Meus Demônios, já alerta a si mesmo e ao leitor: Hoje, antes de começar, eu me pergunto: “Serei verídico?” Sei que todo conhecimento de uma sociedade, de uma história, de uma vida, inclusive a própria, é, ao mesmo tempo, uma tradução e uma reconstrução mentais, e foi este problema-chave que enfrentei em La connaissance de la connaissance. Sei não apenas que a percepção de um acontecimento pode incluir seleção do que parece principal, ocultação ou esquecimento do que incomoda, mas também que a lembrança pode alterar seriamente o que ela rememora. Sei que as ideias que nos são necessárias para conhecer o mundo são, ao mesmo tempo, o que nos camufla deste mesmo mundo ou o desfigura. Sei também que o olhar do presente retroage sempre sobre o passado histórico ou biográfico que examina. E que ninguém está imune à mentira a si mesmo. (MORIN, 2013, p. 10, grifos no original).. Assim como Morin, Jung, a seu modo, também era consciente da impossibilidade do ser humano conhecer a si mesmo, de levar o termo autoconhecimento até as suas últimas consequências. Por vezes, relutou em aceitar as diversas propostas para que escrevesse suas memórias. O motivo das recusas foi formulado por ele da seguinte maneira: Conheço demais as autobiografias, as ilusões dos autores sobre si mesmos e suas mentiras oportunas, conheço demais a impossibilidade de uma autoapreciação para me arriscar neste terreno. (JUNG, 2016, p. 19).. Ao perceber a importância de escrever suas memórias em termos de vivências anteriores, aceitou as propostas e se pôs a escrever com o auxílio de sua colaboradora, Aniela Jaffé. Contudo, o fato de ele haver aceitado compartilhar com o mundo suas fantasias mais íntimas não significou que mudou de ideia quanto à impossibilidade de conhecer a si mesmo. O prólogo do livro não deixa dúvidas quando Jung escreve: Assim, pois, comecei agora, aos 83 anos, a contar o mito da minha vida. No entanto, posso fazer apenas constatações imediatas, contar histórias. Mas o problema não é saber se são verdadeiras ou não. O problema é somente este: é a minha aventura a minha verdade? (JUNG, 2016, p. 25, grifos no original).. Enfrentar a vida é admitir que não há garantias. Daí que nenhum fragmento, biográfico ou não, tem a ver com a verdade última. Tem sim a ver com as verdades que produzimos, sendo estas passíveis de contestação de 17.

(20) toda sorte. No entanto, é a partir desses enredos criados que expressamos aquilo que somos. Para mim, não é tanto o conteúdo de uma dada narrativa, mas sim a sua organização que expressa reflexos do modo mais íntimo de organização do pensamento de um dado autor. Expressa seus esquemas mentais íntimos que lhe inclinam a certas maneiras de pensar e agir, certas maneiras de habitar o nosso ser-no-mundo, enquanto aventura humana. Desse ponto de vista, considero ser de baixa relevância, neste trabalho, a busca por provar se tais fragmentos são ou não verdadeiros, se aconteceram ou não, se fazem ou não parte da realidade. Isso porque eles mesmos são produtores de realidade. O sujeito produz a si mesmo por meio de suas narrativas. E, nesse processo, a negociação e a luta entre suas verdades mais íntimas e mais secretas assume contornos especiais que não necessariamente obedecem. aos. ditames. das. verdades. socialmente. compartilhadas. e. convencionadas. Por isso, meu olhar de pesquisador não se volta para a história de Jung como um encadeamento de fatos numa dada sequência lógica. Inclusive, muitos já o fizeram, conforme exemplos que pude identificar e já indicados em páginas anteriores. Volta-se para o conteúdo expresso, por ser, ele mesmo, num dado momento e a partir de determinadas circunstâncias histórico-sociais, produtor/catalisador de uma ideia, uma noção de autoconhecimento. Essa concepção íntima é maior que o conceito. Enquanto o conceito é um corte, a concepção íntima é afeto. Enquanto o primeiro é âncora, a segunda é a síntese entre repouso e movimento. Enquanto o primeiro explica, a segunda implica. Se estivesse interessado apenas em conhecer o conceito de autoconhecimento na perspectiva de Jung, não precisaria construir uma tese de doutorado. Tudo está dito explicitamente em seu Presente e Futuro (JUNG, 2011). Obviamente que esse conceito me é importante e foi abordado na tese. Mas, o que tento tematizar adentra a intimidade da narrativa do sujeito na esperança de extrair significado de um movimento de vida que poderia, inclusive, não se deixar extrair significado algum. Numa analogia simples, o movimento de vida a que me refiro pode ser comparado ao de uma pessoa que ergue seus braços: em certas circunstâncias, é difícil definir com precisão a fronteira entre uma prática aleatória de erguer os braços, talvez até por espreguiçar-se, de um movimento 18.

(21) plástico de dança com toda uma densidade estética, carga de significação cultural e intencionalidade que lhes são inerentes. É isso que, para mim, essas memórias autobiográficas representam: uma narrativa peculiar, esteticamente densa, embebida de significação cultural que se constrói na mediação entre: (1) valorização da ancestralidade; (2) implicação do sujeito nas construções do imaginário e; (3) cultivo de um sentido de realidade. O estudo dessa trajetória me demandou esforços no sentido de articular essas três dimensões que somente pouco a pouco e penosamente se desnudaram a mim quando no exame recorrente do material de pesquisa. O objetivo que me move neste estudo é: compreender a noção de autoconhecimento presente nas narrativas autobiográficas de Carl Gustav Jung, publicadas no livro Memórias, Sonhos, Reflexões. (JUNG, 2016). O autoconhecimento talvez possa ser apreendido enquanto faculdade antropológica, potências do ser ou mesmo enquanto via de acesso às reservas antropológicas, às forças psíquicas que tornam a vida humana mais dramática, mais perigosa e também mais abrangente em termos de sentido. É nesta seara que desenvolvo este texto, constelando o seguinte argumento: as memórias autobiográficas de Jung são uma indicação de que o conhecimento do ser humano sobre si mesmo opera construções do imaginário que nos religam a um sentido de realidade por meio de um retorno para afinidades ancestrais da sensibilidade. O desafio de desdobrar esse argumento em uma sequência de textos, sem fazê-lo dispersar-se em meio ao oceano de ideias que me habitam a mente no momento da escrita, foi levado a sério. Ficará a cargo da banca de avaliação e de futuros leitores aferir até que ponto o texto foi efetivo nesse sentido. Na esteira dessa construção, a organização do texto está inspirada em três partes que, espero estar inter-relacionadas de maneira adequada: a Primeira Parte, intitulada Ser um Fenômeno para Si Mesmo, lança um olhar sobre as narrativas autobiográficas de Jung na perspectiva de iluminar sua compreensão de conhecimento e de autoconhecimento. A Segunda, Segredos e Mistérios, aborda o mistério, o segredo e o sagrado enquanto vias de acesso a experiências constitutivas do sujeito, na formação da consciência de si mesmo e do mundo. Mostra como, desde a 19.

(22) infância, vai se formando em Jung uma reverência e um espanto diante do mistério, que se refina mais ou menos no mesmo compasso de seu desenvolvimento adulto. A Terceira, Mover-se em Direção às Imagens, enfoca as percepções de Jung a respeito de como as imagens e símbolos impunham-lhe um compromisso ético e de como reagia frente a esse compromisso. O devaneio, as fantasias e as construções imagéticas, longe de serem dotadas de despropósito, capturam o sujeito, implicam-no e endereçam seus esforços numa dada direção. Em minha elaboração, procurei tecer o texto de modo a alternar minha postura num procedimento de caráter duplo: ora permitia que o próprio Jung me conduzisse por meio de sua narrativa, ora eu mesmo tencionava a escrita de modo mais enfático para uma direção que entendia que deveria seguir, considerando as demandas que emergiram da minha relação com o material pesquisado. Às vezes captava, em uma pequena frase ou parágrafo, um significado intenso. Pequenas histórias grávidas de uma potência explicativa. Quando isso ocorreu, me detive longamente para extrair dali algumas possibilidades de interpretação e de compreensão. Os tratei como algum tipo de “célula explicativa […] um minimito, se assim se pode dizer, porque é muito curto e condensado, mas ainda tem a propriedade de um mito, na medida em que o podemos seguir sob diferentes transformações” (LÉVI-STRAUSS, 2007, pp. 53-54). Em outros casos, foi preciso alongar-me em meio aos capítulos à procura de conexões viáveis entre essas “células”. O que chamei de conexões viáveis são as articulações feitas entre fragmentos da narrativa, cuja distância espaço-temporal não me permitiriam fazê-las se obedecesse a uma sequência progressiva de capítulos. Por exemplo: se dedicasse um capítulo inteiro para abordar a infância do sujeito, outro para sua vida adolescente, e assim por diante, algumas dessas conexões inevitavelmente seriam perdidas. Em vez de proceder desse modo, meu texto se move de maneira irregular, porém com sentido e propósito. Em alguns casos, em uma só frase,. 20.

(23) parágrafo ou página, abordei aspectos que remetem a diferentes tempos e acontecimentos de sua vida, ou mesmo a diferentes enredos de sua narrativa. A seguinte sequência de imagens permite ilustrar a pertinência do procedimento/estratégia que ora defendo. Isso porque permite tanto olhar o desenvolvimento de Jung em termos sequenciais, pensando nas fases estabelecidas de sua vida, bem como possibilita, em um curto espaço, conceber e articular essas mesmas fases, colocando para o segundo plano o interesse por captar uma ordem evolutiva progressiva e sequencial do seu desenvolvimento. IMAGEM 2 Jung em diferentes fases de sua vida.. Fonte: Whitney e Wagner, (2013).. Isso me possibilitou estabelecer e explorar conexões entre fragmentos dispostos em capítulos distintos, em situações distintas. Disso, pude empreender algumas elaborações que talvez possam, num primeiro momento, escapar ao leitor que se debruçar sobre as memórias autobiográficas de Jung. Elas constituem fragmentos nos quais o autor tenta expressar suas verdades e seus mitos. Considero tratar-se de uma narrativa mitológica, embebida, portanto, de sentido e de significado. Por isso mesmo, não deveria ser lida de outra forma que não pela via da busca pelo significado. Procurei, então, extrair sentido de suas narrativas. Com ajuda do pensamento de Lévi-Strauss, que em seu Mito e Significado desenvolve uma argumentação em favor da existência de paralelos. 21.

(24) e afinidades entre mito e música, me vi em condições de formular as ideias que, apesar de as ter construído no itinerário da pesquisa, não conseguia ainda verbalizar de maneira adequada. Neste registro, o autor sustenta que: Relativamente ao aspecto da similaridade, a minha convicção era que, tal como sucede numa partitura musical; é impossível compreender um mito como uma sequência contínua. Esta é a razão por que devemos estar conscientes de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito, porque temos de o apreender como uma totalidade e descobrir que o significado básico do mito não está ligado à sequência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos diferentes da História. Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da página só adquire significado se se considerar que faz parte e é uma parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma totalidade, e extrair o seu significado. (LÉVI-STRAUSS, 2007, pp. 59-60).. Enfrentei o desafio de me aproximar da narrativa de Jung considerando a ideia de que em alguns casos pode haver “uma espécie de reconstrução contínua que se desenvolve na mente do ouvinte da música ou de uma história mitológica” (LÉVI-STRAUSS, 2007, p. 63). Essa reconstrução só muito raramente obedece à racionalidade linear e progressiva que coloca um fato depois do outro num esquema padronizado de ordem e de pureza. Por isso mesmo, organizei minha estratégia de estudo com base na força dos significados presentes no material pesquisado. Foi assim que caminhei. Nesse. rumo. de. pensamento,. procurei. não. me. preocupar. demasiadamente com a organização temporal e sistemática dos fatos numa linha cronológica sequencial. Deixo a tarefa aos historiadores e aos biógrafos que desejem fazê-lo. Ao invés, procurei afastar-me do Cronos e aproximar-me do Kairós. Nutri, portanto, uma concepção temporal mais próxima ao tempo antropológico, mítico, cíclico e circular. Por isso mesmo que numa só página podem estar contidos elementos de sua infância, de sua adolescência e de sua vida adulta. Não tratei como 22.

(25) uma regra, mas como uma permissão para fazê-lo sempre que considerasse necessário e pertinente. E, nesse sentido, o critério em que me orientei para decidir sobre essa necessidade e pertinência foi a própria demanda da narrativa e dos lugares cognitivos para onde ela me conduzia. Em certos trechos, havia uma explosão de sentido em apenas um parágrafo ou menos que em um. Ali, pude me deter em diálogo por bons ciclos de tempo. Também houve páginas e capítulos menos significativos. Isso não significa, porém, que estes não sejam importantes, apenas expressam que, naquele momento, não contribuíram para me aproximar daquilo que procurava. Interessante que isso também variou segundo a produção de cada capítulo do texto: às vezes, em um dado capítulo, certas palavras, frases ou acontecimentos, exerceram grande impressão em termos de significado; enquanto em outros elas não expressavam essa mesma potência. Tive que recorrer a Edgar Morin e fazer migrar algumas ideias suas de seu contexto original para melhor compreender minha própria atitude perante o material pesquisado em termos de estratégia de método. Se numa ou noutra situação da pesquisa essas palavras, frases e acontecimentos a que me referi nada dizem, é porque Não que elas queiram dizer nada; é que elas não podem dizer nada. Elas expressam o desejo impotente de expressar o inexpressível. São as senhas do indizível. Essas palavras, devemos tratá-las como suspeitas em sua insistência em repetir seu vazio. Mas, ao mesmo tempo, essa obstinação é sinal de um tipo de faro cego, como entre aqueles animais que raspam o chão sempre no mesmo lugar, ou que se põem a uivar logo que a lua aparece. O que foi que farejaram? O que reconheceram? […]. (MORIN, 2014, p. 33).. Por vezes, percebi tanto nos acontecimentos e nas palavras como também em mim, a existência desse faro cego, dessa inclinação para encontrar significados em dadas regiões da narrativa que, em outros momentos, não pareciam guardar em si qualquer potência explicativa ou implicativa. Na medida do possível, tive de obedecê-lo. Aproveitando o ensejo desses dois últimos termos, convém informar que na maior parte do tempo me dediquei muito mais à busca das implicações do que das explicações. Essa atitude cognitiva se deu justamente por considerar estar lidando com uma narrativa mitológica, o que me conduziu ao. 23.

(26) entendimento de que muitas das explicações não teriam sentido, podendo, com toda justeza, serem consideradas ilógicas. O movimento de Jung em direção a si mesmo, aos outros e à vida, contém elementos que me permitem vê-lo pelo lado de dentro (im-plicação) daquilo que fez e que se propunha a narrar, ao invés de concebê-lo como um lúcido e padronizado intelectual geralmente considerado pelo lado de fora de suas ex-plicações. Recorri a autores que pudessem ajudar-me a adentrar nesse universo tão rico em simbolismos e imagens. Precisei, portanto, apoiar-me nos trabalhos de Mircea Eliade (1947, 1992a, 1992b, 2012), Gaston Bachelard (1978, 2008, 2013), Edgar Morin (2008, 2011, 2013, 2014), Teresa Vergani (2009), entre tantos outros que podem ser observados ao longo do texto. Operei uma aproximação aos fragmentos narrados a partir da ideia de que eles ou seus sentidos se conectam como fios e nós de uma grande rede. Agi como se examinasse fios tecidos de um dos lados de um tapete, cujas ligações mais importantes não apareciam em seu outro lado, em sua outra face. A seguinte imagem apresenta uma perspectiva que contribui para o entendimento do que ora exponho:. 24.

(27) IMAGEM 3 Cada uma das faces do tapete apresenta um tipo diferente de tessitura.. Fonte: <https://www.gettyimages.pt>.. Visto de cima, o tipo de tessitura perceptível na parte superior do tapete não permite perceber as ligações mais importantes que lhe dão sustentação. Seu outro lado mostra um conjunto rico de ligações que, no lado de cima, são percebidos apenas como pontos isolados. Acredito que assim fica mais explícito o modo como abordei o material pesquisado. Em alguns momentos, foi como se eu quisesse levantar um pouquinho o tapete para observar um pouco a sua outra face, voltando em seguida para tentar compreender a sua face mais comumente visível. A tese é um testemunho escrito desse movimento que fiz. Se já expliquei como olhei e como vi o fenômeno pesquisado, falta ainda explicar. como. me. preparei. para. as. sucessivas. aproximações. que. inevitavelmente tive de fazer. Pelo que expus até aqui, já é possível perceber que, em vários momentos, me vali de certos tipos de imagens e metáforas que pudessem me conduzir nessas aproximações e distanciamentos. Permitir vida 25.

(28) à imaginação foi para mim uma possibilidade de abrir minhas estratégias de método para não cair na armadilha de canibalizar um texto tão rico e tão denso em possibilidades de estudo e de interpretação. Que contribuição eu poderia acrescentar se me restringisse a dissecar um texto que já foi tão estudado e sobre o qual muito já foi dito? Esse caminho, então, não me pareceu adequado. Geralmente, quem se endereça ao estudo do pensamento de Jung não apresenta. grande. resistência. em. compreender. a. imaginação. como. potencializadora do processo de produção do conhecimento. Ao invés de ser rejeitada como se fosse um tipo de lixo cognitivo, ela pode ajudar na perspectiva de que, pesquisas como esta, penetrem regiões do fenômeno que a rigidez metodológica dificilmente penetraria. O que para alguns pode parecer lixo, para outros pode ser expressão de um valor incomensurável. Tive, portanto, que me permitir ser imaginativo e móvel. Tive que transitar em ambientes cognitivos diferenciados. E, para enfrentar cada um deles, foi necessário um tipo de estratégia, um tipo de movimento e um tipo de imaginação como operador de pensamento. Assim interpreto o itinerário que fiz e do qual a tese é resultado: tive que fluir como água, aceitando o melhor e o pior dessa opção/estratégia/possibilidade. Procurei fazer-me água e agir como água na condução da pesquisa: se a água intenta conhecer o interior do copo, ela amolda-se ao interior do copo. No interior da jarra, faz-se jarra, e mesmo assim não se fixa em nenhuma das formas que assume, pois se guia por uma necessidade de mover-se, de percorrer os interiores e de seguir adiante em seu percurso. Ela se permite passear por superfícies irregulares, se permite absorverse por regiões porosas e, novamente, torna a ser o que é, ainda que não seja mais a mesma. Com exceção das situações congelantes e extremas, não se petrifica e nem se prende a esquemas prévios, mas constrói seus esquemas segundo as possibilidades percebidas no interior do próprio fenômeno. Sua consistência não está na rigidez de seus padrões, mas na fluidez de seu movimento. Pode tanto irrigar quanto afogar. Sem dúvida, a água também se suja, se contamina, mas seu movimento é sua melhor prevenção para evitar tornar-se água parada. Também molha tudo aquilo a que toca, bem como parte de si mesma evapora e se perde durante o processo. No entanto, ela flui, e 26.

(29) como ela, tentei fluir pela narrativa de Jung, percorrendo suas histórias, seus simbolismos, suas imagens, seus demônios e seus silêncios. A intenção de valorizar as possibilidades da imaginação no processo de construção do conhecimento não é uma invenção minha. É crescente a gama de pensadores que vê na imaginação uma potência que irradia por todos os campos da atividade humana, incluindo o científico. Para não alongar a lista, apenas destaco Morin (2008, 2014), Bachelard (1978, 2008, 2013), Hillman (2010) e o próprio Jung (2016). A própria ideia de Hillman de que a mente possui uma base poética, revela que psique, em seus níveis mais profundos, inconscientes e primários, comporta-se e se expressa de modo poético, isto é, precisamente com procedimentos, lógica e raciocínios semelhantes aos que encontramos na arte poética: analogia, metaforização, síntese, condensação, emoção. (BARCELLOS, 2012, p. 97).. Há, então, possibilidades de proceder como fiz. É plausível investir no cultivo da imaginação como auxílio e como suporte para estudos, inclusive a respeito da própria imaginação e de elementos afins, como por exemplo os símbolos e os mitos. Assim o fiz. Sou consciente de que toda abordagem de aproximação a um fenômeno traz consigo vantagens e desvantagens, sendo elas inseparáveis umas das outras. Assumo, pois, o ônus e o bônus do itinerário de pesquisa que desenvolvi. O processo cíclico de re-visitação do material de pesquisa me fez, em vários momentos, sentir a necessidade de ampliar minha compreensão para conseguir abordar algum conceito, tema, assunto ou aspecto. Por vezes, tive compreensões para as quais não me via capaz de formular em palavras o que significavam. Recorri a autores que pudessem ajudar-me nessa direção, apelando, também, a outras obras de Jung. O Livro Vermelho, por exemplo, foi um valioso auxiliar por ser o fruto de uma rica experiência em termos de reflexão a respeito do processo de autoconhecimento. Sua preparação durou 16 anos e sua história pode ser sintetizada nas palavras que seguem: O ano de 1913 foi decisivo na vida de Jung. Ele começou um autoexperimento que veio a ser conhecido como seu “confronto com o inconsciente” e durou até 1930. Durante esse experimento, Jung desenvolveu uma técnica para “chegar ao fundo do [seu] processo. 27.

(30) interior”, “traduzir as emoções em imagens” e “compreender as fantasias que estavam se agitando… ‘subterraneamente’”. Mais tarde ele deu a esse método o nome de “imaginação ativa”. Jung registrou primeiramente essas fantasias em seus Livros Negros. Depois revisou esses textos, acrescentou reflexões sobre eles e copiou-os em escrita caligráfica num livro intitulado Liber Novus encadernado em couro vermelho, acompanhado por quadros pintados por ele mesmo. Sempre foi conhecido como Livro Vermelho. (SHAMDASANI, 2015, p. 11, grifos no original).. Esse livro ficou guardado em um cofre na Suíça, sendo publicado postumamente em 2009. Jung o considerava a sua obra mais importante, e o assumia como inacabado, declarando ter renunciado à vontade de finalizá-lo. As ilustrações são impactantes e endereçam a uma lógica paradoxal, característica das construções do imaginário. São expressões de seus sonhos e vivências interiores, tendo, portanto, pertinência na investigação que ora desempenho. O prefácio de Shamdasani ao Liber Novus é profundo e analítico. Esse autor, aliás, é um dos que considera o Memórias, Sonhos, Reflexões (JUNG, 2016), que tomo como material de pesquisa, uma introdução ao Livro Vermelho. Teria Jung buscado preparar seus leitores para a compreensão daquela obra que, em vida, ele resistiu em publicar? A sequência narrativa estabelecida pelo prefaciador do Liber Novus é perspicaz, mas não desejo ater-me a ela, pois no âmbito desta pesquisa minha mirada não é histórica, mas talvez filosófica, no sentido em que prioriza um tipo de substância de pensamento, portanto, de imaginação, mesmo frente à nossa necessidade humana de organizar os fatos e atribuir-lhes sentido histórico relevante. Se assim o fizesse, correria o risco de submeter o propósito maior da pesquisa às sequências narrativas temporais que se elaboram em torno e por meio do material pesquisado. Embora por vezes seja necessário situar acontecimentos no tempo, não desejo caminhar prioritariamente nesse rumo. Particularmente, procuro uma compreensão que pode, até mesmo, estar oculta ou dispersa nos fios invisíveis que unem os fragmentos autobiográficos aos movimentos do ente narrador em direção ao processo de organização de si mesmo, do qual sua sequência de argumentos é apenas a fumaça, indicando a possibilidade de que haja fogo, de que tenha havido fogo, ou até mesmo que. 28.

(31) algum dia possa haver fogo. E mesmo que não encontre brasas, as cinzas, se encontradas, terão algum valor para efeito de investigação. Vou dizer de outro modo para ampliar as possibilidades de compreensão e até mesmo da minha organização mental: considero que o modo como nos expomos ao mundo é expressão de conexões profundas que dão sentido ao nosso processo de organização, que é mental e mais que isso, remete ao ser. Portanto, o meu falar e o meu escrever, tal como o de Jung, assim como o de qualquer outra pessoa, expressam significados profundos daquilo que sou e de como me estruturo para e em decorrência de enfrentar o mundo. Obviamente que as circunstâncias históricas e o relacionamento com os outros configuram os contornos desse processo. No entanto, são as metabolizações que lhe dão uma singularidade que, para mim, tem o valor de chaves de explicação. Todos vivenciamos esses processos. Mas, o que fazemos com eles e o que eles fazem de nós tem a marca indelével da nossa singularidade, da nossa assinatura ou impressão digital. Somos uma complementaridade paradoxal que congrega o universal e o particular, o infinito e a finitude, a potência e a manifestação. A maneira como o autoconhecimento é aqui abordado contraria a perspectiva de senso comum. Ao invés de um fechamento do sujeito em si mesmo como um tipo de inflação do ego, trata-se de uma perspectiva de um indivíduo que se constitui como sujeito na relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Essa perspectiva de estudo não se trata de uma apologia ao solipsismo, mas um enfoque no processo de formação de um sujeito, reconhecendo esse processo como multidimensional. De forma alguma implica um estímulo ao narcisismo. Implica, ao invés, tentar compreender algo a respeito de uma história de vida por meio de um enfoque específico. Em Jung, o conhecimento é uma construção lenta e paciente, que dura toda uma vida. Tem a ver não somente com a recusa das generalizações arbitrárias, mas também com uma certa postura e atitude diante do mundo, atitude esta que se esforça por compreender os fenômenos em sua singularidade.. 29.

(32) Suas Memórias me permitiram compreender que, para ele, o autoconhecimento é produto inacabado de uma compreensão de si mesmo pelo sujeito que, ao passo que conhece, também assume a responsabilidade ética por aquilo que é, por aquilo que a vida fez de si e por suas imagens. Desemboca, pois, numa atitude ética que se articula e se complementa com uma estética de vida, um jeito de viver no qual a ética assume forma semelhante àquela dimensão tripla da qual fala Edgar Morin ao conceber que ela provém de uma fonte interior, donde deriva uma autoética; uma fonte exterior que se exprime numa socioética; bem como uma fonte anterior, de onde emerge uma antropoética. As pinturas e as fotografias de Jung apresentadas ao longo do texto estão disponíveis em várias fontes e em vários meios. Tomei contato com elas por meio de diversos materiais. Contudo, para inseri-las no texto, limitei-me a duas fontes específicas para facilitar o manuseio do material. As fotos apresentadas no texto derivam de dois documentários. O primeiro, é intitulado Carl Gustav Jung: questão do coração, dirigido por Mark Whitney; e o segundo, Carl Gustav Jung: a sabedoria dos sonhos, dirigido por Stephen Segaller. As pinturas derivam da edição ilustrada do Livro Vermelho: liber novus (JUNG, 2014). Extraí as fotos dos documentários por meio do recurso de captura de tela (print screen) disponível no computador. Algumas delas, portanto, não eram fotos, mas quadros de vídeo. Por isso, fiz questão de inserir algumas delas nos anexos da tese. Dispondo-as nos anexos, pude facilitar que outros pesquisadores possam ter acesso às mesmas de forma reunida, caso desejem evitar o verdadeiro garimpo que é a pesquisa na web, bem como também pude destacar alguns olhares e expressões faciais de Jung em diferentes momentos e situações de sua vida. Por fim, me cabe a tarefa de situar aspectos importantes do modo como escolhi para me expressar-me ao longo de todo o texto. Optei por dirigir minhas colocações, interpretações e posicionamentos sempre em primeira pessoa do singular. Propositadamente, quis evitar termos impessoais como “percebe-se”, “encontra-se”, e termos em terceira pessoa do plural, como “percebemos”, “encontramos”. Ao invés destas possibilidades, utilizei “encontrei” e “percebi”, por exemplo.. 30.

(33) Isso porque tentei ao máximo evitar que o texto tivesse um caráter impessoal que pode diluir o sujeito que fala, fazendo dele um não-sujeito, como se os fenômenos falassem sozinhos, sem minha interferência direta. Devo assumir minha presença no texto com toda a sorte de limitações e contingências tanto minhas quanto do meu entorno social. Também quis evitar proteger-me atrás do “nós”, para as afirmações que eu mesmo estava fazendo. No fundo, sou e preciso ser responsável pelo que digo. Entendo que produzi um conhecimento que é inacabado, embrionário, parcial e aberto. Não me cabe outra atitude a não ser assumir as consequências pelo que afirmo e pelo que nego. Não sou contra que outros pesquisadores utilizem o “nós” nesse contexto. Em meu caso, decidi não o fazer. No entanto, há muitas situações no texto em que estão contidas afirmações no plural: “nós”, “sabemos”, “somos”, entre incontáveis outras possibilidades. Ali, o leitor deve distinguir que estou me referindo a “nós humanos”. O nós, refere-se a todos nós, àquilo que nos afeta. Nesse caso, preciso me colocar do lado de dentro daquilo que escrevo, pois não posso falar da condição humana como se estivesse pelo lado de fora, como se não fosse também parte do melhor e do pior que ela representa. A ideia de que o sujeito está implicado no objeto observado, no conhecimento que produz, é um princípio caro ao pensamento complexo. Nós perturbamos o objeto/sujeito observado, mesmo quando acreditamos não o fazer. Assumir nossas implicações e distinguir nossa presença no contato com o objeto/sujeito observado pode ajudar a mitigar algumas das nossas cegueiras. Mesmo assim, permaneceremos ilusórios e míopes, só que um pouco menos. Não posso, portanto, olhar o que vejo estando do lado de fora daquilo que sou. Não posso negar ou dissimular minha presença. Mas posso pouco a pouco tornar-me cônscio de minhas incompletudes e tendenciosidades. Em síntese, acredito que em qualquer ciência cabe vivenciar um princípio que também pode ser encontrado na poesia de Manoel de Barros (2013), quando diz: "Palavra que eu uso me inclui nela".. 31.

(34) I – SER UM FENÔMENO PARA SI MESMO. Toda a riqueza da existência humana tende ao infinito que concebemos e à finitude que vivenciamos. Henri Atlan. 32.

(35) O Conhecimento como um Fenômeno Complexo. […] depois de conhecer a si mesmo, ninguém pode continuar sendo o mesmo. Thomas Mann. Em Jung o conhecimento repousa sobre uma base essencialmente empírica. Não se trata do materialismo, mas de uma concepção gnosiológica baseada numa ligação intrínseca entre vivência e ideias. Talvez por sua formação ou por suas inquietações mais íntimas, Jung sempre manteve uma postura crítica frente ao conhecimento especulativo e até mesmo frente à fé cega. Recusava-se e também não conseguia aceitar de bom grado as determinações científicas ou religiosas que não provinham de uma crítica do conhecimento. Sua posição era em favor da importância da vivência baseada na experimentação. Na época, Religião e Ciência eram duas potências em termos de conhecimento e de determinação das direções da vida social. E, mesmo assim, ele resistia a essas forças dogmáticas. Se não houvesse espaço para criticidade e questionamento, ele se punha cético diante das verdades reveladas, aceitando externamente e demonstrando comportamento passivo, mas, internamente, cultivava a dúvida que lhe impelia a isolar-se e a deter-se no estudo de filosofia, de religiões, de teologia, de latim, de literatura, entre outras áreas de interesse. Até mesmo nos dias atuais pode parecer paradoxal afirmar ser Jung inclinado ao conhecimento empírico, vivencial, quando boa parte do material de seu trabalho eram sonhos e devaneios permeados de imagens e de simbolismos que podem, antes de tudo, transparecer a impressão de que, em Jung, o conhecimento é algo difuso e disforme, apartado da vida. No entanto, é bom lembrar que a psique e os fenômenos que nela ocorrem são reais. Em muitos casos, são a única realidade imediata de que dispomos. Assim, a imaginação radical, o sonho e toda a simbologia que cercam as práticas humanas dão conta de expressar realidades que não se submetem aos ditames da lógica racionalista e fragmentadora do saber.. 33.

(36) Grande parte do que acontece em nossa psique emana do mais profundo daquilo que somos, e o faz com uma carga incomensurável de simbolismo e de força criadora. A imaginação, longe de ser um distanciamento do mundo, é uma forma de adentrá-lo, de transparecê-lo e de vivê-lo, explorando suas possibilidades mutiladas pela racionalização que petrifica e esteriliza tudo aquilo a que toca. Já nos tempos de criança e também nos da adolescência, é perceptível a indisposição de Jung com certas formas de racionalidade que não lhe pareciam ser embebidas de sentido. “A álgebra”, afirma o autor, “parecia tão óbvia para o professor”, enquanto para mim os próprios números nada significavam: não eram flores, nem animais, nem fósseis, nada que se pudesse representar, mas apenas quantidades que se produziam, contando. A minha grande confusão era saber que as quantidades podiam ser substituídas por letras – que são sons – de forma que se podia ouvilas. (JUNG, 2016, p. 48).. De início, me parecia apenas tratar-se daquela habitual dificuldade que muitos enfrentam ao se depararem com as matemáticas e com a necessidade de empreender raciocínios abstratos vinculados a uma lógica bastante específica e poderosa. Refiro-me a essa lógica que até os dias atuais exerce grande poder sobre as mentes do mercado, da política, e porque não dizer, da ciência. No entanto, prosseguindo as aproximações ao material de pesquisa, foise revelando um padrão de racionalidade que se exprime numa busca incessante por sentido, e também numa recusa do esvaziamento interpretativo que se encerra nas paredes dos conceitos abstratos e arbitrários. Proferindo de outro modo, ele se recusava a acreditar em algo porque alguém simplesmente o houvera dito para fazê-lo, o que fica explícito no desdobramento de sua narrativa quando afirma que: Isto não me interessava em absoluto. Eu achava excessivamente arbitrário exprimir os números por sons. Por que, então, não fazer de a uma amoreira, de b uma bananeira, de x um ponto de interrogação? a, b, c, x e y nada me significavam e, segundo me parecia, esclareciam menos acerca do número do que a amoreira, por exemplo! Entretanto, o que mais me irritava era o princípio: “Se a = b e se b = c, então a = c”. Tendo sido dado, por definição, que a é diferente de b, por conseguinte não pode ser igual a b, e ainda menos. 34.

(37) a c. Quando se trata de uma igualdade, diz-se que a = a, b = b etc. Sentia também a mesma revolta quando o professor, contradizendo sua própria definição das paralelas, afirmava que elas se encontram no infinito. Isso me parecia uma trapaça estúpida que eu não podia nem queria aceitar. Minha honestidade intelectual revoltava-se contra esses jogos inconsequentes que me barravam o caminho à compreensão das matemáticas. Até idade avançada conservei a convicção de que, se nesses anos de colégio tivesse podido admitir sem me chocar, como meus colegas, que a = b, ou que sol = lua, cão = gato etc., as matemáticas ter-me-iam enganado para sempre. Foi preciso esperar meus 83 anos para chegar a esta conclusão. (JUNG, 2016, p. 48-49, grifos no original).. Dentre as ciências mais endeusadas em nossa cultura, as matemáticas gozam de posição privilegiada: são adoradas por sua suposta exatidão e infalibilidade. Numa situação de conhecimento matemático, se algo deu errado, foi um erro do sujeito do cálculo, tendo em vista que a matemática, em si, estaria equipada com mecanismos antiequívocos capazes de lhe prover coerência interna inabalável. Essa crença é tão forte e compartilhada no Ocidente quanto a crença em um deus ou em um conjunto deles. A revolta de Jung não se dava por capricho ou preguiça de dedicar-se aos estudos, mas por uma divergência conceitual e moral. Nesse rumo, não se tratava apenas de rejeitar a matemática, mesmo quando todos os seus colegas a abraçavam, talvez irrefletidamente, em relação às preocupações por ele levantadas. Tratava-se, também, e principalmente, de advogar mais carne, sangue, pulso e orvalho para aquela realidade tão estéril, dominada por relações de dedução, pobreza imaginativa e permuta entre números e letras desprovidos das coisas em si1. Isso nos endereça a questionar sobre os diferentes domínios do conhecimento e como eles estão organizados em nossa experiência humana de mundo. Herdamos de Jung o conhecimento de que a imaginação é produtora de realidades, e, portanto, de conhecimento, que, como tal, pode ser entendido como um fenômeno que expressa a complexidade da nossa imaginação. Esta, desliza por diferentes possibilidades rumo a desaguar no fenômeno humano como um retorno a seu ponto de origem.. 1. Em verdade, existem muitas experiências e práticas exitosas no âmbito da matemática, incluindo um ramo denominado Etnomatemática. No entanto, de maneira geral, esta é uma ciência que ainda é disseminada de modo precário e abstrato.. 35.

(38) Essas possibilidades se entrecruzam e se entrecortam nos diferentes níveis de conhecimento ou dimensões da narração/interpretação do mundo. O imaginário é, na pior das hipóteses, tão real quanto aquilo a que comumente entendemos por realidade. Ou, dito de outro modo, a realidade é semiimaginária, como afirmou Edgar Morin (2014). Por esse motivo, ela dá vazão a formas distintas de imaginação. De modo mais específico, é possível dizer que, por mais escandaloso que possa parecer, o conhecimento é uma maneira particular de expressão do fenômeno da imaginação; uma forma dele específica que inclui: Construção Científica, Imaginação Mítico-Religiosa, Domínio Estético e Especulação Filosófica. Com base nessa concepção, não há como justificar a hegemonia da ciência sobre as outras formas de conhecimento. Nesse horizonte, a ciência, longe de ser a única forma válida de conhecimento, é uma forma particular, uma possibilidade específica de construir narrativas sobre o mundo que digam como e porque as coisas são o que são; e ela o faz com base em certos mecanismos explicativos, certos critérios internos que, na nossa sociedade, ganham valor de prova. Isso não retira sua importância enquanto conhecimento científico, mas apenas questiona sua idolatria. Não há nenhuma razão plausível para endeusar a ciência como a fonte única do conhecimento verdadeiro e entronizar os cientistas como semideuses, oráculos do saber, intermediários entre a ciência e os meros mortais. São muitas as pessoas que imaginam os cientistas como seres elevados, situados acima das divisões internas, dos conflitos e dos interesses que afetam o restante da humanidade; como seres representantes da Verdade, com “V” maiúsculo. Já Jung não estava entre essas pessoas. Não atribuía a priori qualquer. superioridade. à. ciência frente. às outras formas. de. conhecimento. Por essa razão, enveredou pelo estudo de fenômenos amplamente rejeitados pelas ciências, fazendo interface com os mitos, as práticas religiosas, a alquimia, entre outras. Apesar de ser mediado pela linguagem, o fenômeno humano não pode ser medido nem conhecido como se fosse uma realidade coerente em si mesma, de modo a ser apreendida e representada por meio de nossos códigos linguísticos tal e qual ela supostamente é. 36.

Referências

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