• Nenhum resultado encontrado

1 AS DEFINIÇÕES DA MARCA MESMO EM ALGUNS DICIONÁRIOS E

2.2 Ilari (1992)

Ilari (1992) sugere, no artigo “Sobre advérbios focalizadores”, a existência de uma classe de advérbios que se identificariam por exercerem a função de “focalização”, entre eles, justamente, exatamente, mesmo, autenticamente, etc.

1) É aplicada a um segmento da oração;

2) Explicita que esse segmento fornece informações mais exatas que a média do texto, em decorrência de uma operação de verificação prévia;

3) Implica um roteiro próprio, por exemplo, a comparação implícita com algum modelo ou parâmetro recuperável no co(n)texto.

Seis tipos de expressões focalizadoras são distinguidas por Ilari, levando-se em consideração as “operações de verificação” implicadas:

1) Verificação de número; 2) Verificação de proporção;

3) Verificação de coincidência com um protótipo; 4) Verificação de identidade ou de congruência; 5) Verificação de factualidade e

6) Confronto de topologias.

Verificação de número

Em relação à verificação de número, Ilari (idem) considera que há duas estratégias: uma consiste em apresentar o número como um resultado exato (exatamente), a outra, em apontar o número como resultado de uma operação específica (é o caso de no total, que faz supor uma contagem).

Ex 1.:

L1 – ...somos de famílias grandes então acho que dado esse fator nos acostumamos a muita gente [...]

L2 – e daí o entusiasmo para nove filhos L1 – exatamente nove ou dez.

Ex 2.:

Contei também o número de estudantes...quarenta e um...e: eu tenho quase certeza embora não tenhamos a lista...que vocês: são no total cinquenta e um... quer dizer sempre está faltando... não é? Um pouco...

Verificação de proporção

Outro tipo frequente de focalização, segundo Ilari, trata de propriedades e relações associando-lhes uma ideia de proporcionalidade. Dá-se a entender que elas podem realizar-se “em parte” ou “por inteiro”.

Ex 1.: ... a lei é feita para o homem, para proteger o homem... e no entanto o homem está... sujeito e até certo ponto escravo da lei.

Ex 2.: Eu estou sendo absolutamente fiel à comunicação [...]

Verificação de coincidência com um protótipo

Segundo Ilari, o uso de advérbios focalizadores pode indicar que uma propriedade ou relação se realiza de forma “prototípica” ou “exemplar”. É o caso de mesmo.

Ex 1.: Olha, nós visitamos muito pouco. Assim, visita mesmo, a não ser uma vez que a gente se reúna com os amigos ...”.

Ex 2.: [...] os motivos especiais que tiveram foram só os aniversários né [...] Mas não tive ainda um motivo...vamos dizer especial mesmo a não ser quando [...]

Estes exemplos reforçariam a necessidade de reconhecer que certas passagens do texto tratariam de uma realidade prototípica, em que se operaria com as distinções visita e visita mesmo, motivo especial e motivo especial mesmo.

Verificação de identidade e congruência

A verificação de identidade ou congruência ocorre quando se verifica coincidência não com um protótipo implícito a ser evocado ou reconstituído, mas com momentos, indivíduos e lugares explicitados no próprio texto.

Ex 1.: Homem que testa a realidade ... uma, duas, três vezes para ver se o resultado ... é realmente aquele encontrado na primeira vez.

Ex 2.: Talvez eu esqueça, por isso vou dizendo logo agora.

Verificação de factualidade

A verificação de factualidade está ligada a um processo de comprovação a partir da apresentação de uma argumentação factual. Assim, em um exemplo apresentado pelo autor, elementos explícitos desse processo de comprovação aparecem, juntamente com o focalizador, que introduz a conclusão final:

Ex 1.: a ginecomastia secundária é aquela em que por exemplo atinge o homem em qualquer fase, qualquer idade... então... um tumor... um tumor maligno é que se faz a retirada do testículo... então vocês veem que geralmente... o crescimento das glândulas mamárias... está ligado... realmente à ação hormonal

Na função de reforço, realmente sofre a concorrência de mesmo:

Ex 2.: ao final de uma digressão, numa aula de filosofia? do direito/ Estão entendendo mesmo?

Confronto de topologias

No caso do confronto de topologias, a verificação visa localizar objetos e ações em determinados espaços que o locutor retoma da “sabedoria corrente” ou vai separando e organizando no desenvolvimento do texto.

No exemplo seguinte, pode-se observar que o locutor demarca um espaço e situa-se momentaneamente nele ao passar informações:

Ex.: Eu saio bastante também porque o meu marido todos os meses ele vai pra Caxias, ele faz a praça de lá, então eu aproveito e vou junto, o dia que eu não tenho aluno, ele sempre vai num dia que eu não tenho aluno mesmo e ...eu aproveito para fazer minhas comprinhas.

Esse exemplo, segundo Ilari, aceita a seguinte explicação: os dias em que o marido viaja a Caxias e os dias em que a informante não tem alunos de piano fazem parte de um mesmo espaço que as viagens a Caxias e as compras da própria informante.

Para o autor, observar que determinados dados pertencem a um mesmo espaço é uma maneira de confirmar que se dizem respeito, que são mutuamente relevantes, que podem ser evocados uns a propósito dos outros.

No fechamento de seu trabalho, Ilari conclui que a ideia de “roteiros prototípicos de verificação” evoca a possibilidade de interpretar as expressões segundo os procedimentos estabilizados em vários universos de discurso, de caráter científico, técnico ou prático, o que remete aos advérbios “delimitadores” (ou hedges, na tradição linguística de língua inglesa) que evocam universos de discurso restringindo-se a eles o alcance da afirmação expressa pela frase. Então o autor se coloca a seguinte questão: que diferença se pode estabelecer entre os usos mais óbvios de advérbios focalizadores, como “A loja fica bem em frente ao cinema” e os hedges como “Tecnicamente, a baleia não é um peixe”?

A resposta é de que os hedges têm o papel discursivo de contrastar universos de discurso, ou de operar deslocamentos entre o universo corrente e outros universos. Os focalizadores, pelo contrário, não deslocam de um universo para outro, simplesmente informam sobre a precisão que se deve atribuir a uma determinada afirmação.

Por fim, a última conclusão do autor é de que os advérbios focalizadores, ao evocarem verificações de vários tipos, contribuem naturalmente para criar a impressão de que o locutor dispõe de argumentos fortes para comprometer-se com a verdade do dito, e assim, acarretam um efeito de ênfase.

O estudo de Ilari (1992) sobre os advérbios focalizadores representa avanços consideráveis em relação aos estudos tradicionalistas que vimos no capítulo anterior. Tenta mostrar de que forma as marcas operam na língua, descrevendo as operações que elas desencadeiam no enunciado. O autor busca uma uniformidade para os usos conhecidos como adverbiais, delimitando seu escopo àqueles que apresentam a função de focalização. O que encontra em comum no uso dessas marcas são “operações de verificação”, como

demonstramos acima. Além disso, Ilari ressalta o papel do interlocutor ao utilizar essas marcas (que é o de comprometer-se com o que diz). Com isso, não o exclui das análises, diferentemente das gramáticas tradicionais.

Algo que deve ser salientado é a consciência do autor em relação à dificuldade em se colocar todos os itens analisados em uma mesma classe, dada a especificidade de cada um:

A iniciativa de uni-los numa só classe, e a ideia de que desempenhariam um papel parecido estão longe de ser óbvias. Encarando o status desses e outros exemplos como uma questão aberta, o presente texto limita-se a verbalizar algumas intuições que parecem aproveitáveis para um tratamento uniforme, é também de esperar que a representação assim esboçada propicie uma comparação produtiva com os resultados obtidos na discussão das classes de advérbios mais diretamente conexas. (ILARI, 1992, p.195)

O autor, ao final do texto, em subtítulo denominado “Problemas em aberto”, afirma não querer derivar nenhuma conclusão definitiva do trabalho apresentado, mas aponta para algumas linhas de reflexão, que, a nosso ver, merecem destaque.

Uma delas é a afirmação de que alguns advérbios “produzem efeitos de sentido diferentes e irredutíveis” (p.210), o que o direciona para a seguinte questão: “deve-se concluir disso que realizam operações semânticas distintas ou que são ‘semanticamente ambíguos’?” Com base nos seguintes exemplos,

- como se chama aquela florzinha branquinha bem cheirosa...eu acho que é ja...jasmim, não é? - isso é bem coisa dele.

- ...lá em Ipanema, bem em frente daquele Cine-Park.

assume a hipótese de que o advérbio bem produz um efeito de intensificação quando aplicado a propriedades graduais, e um efeito de focalização quando aplicado a propriedades não-graduais (oponham-se bem parecido e bem ele). O autor acredita que os efeitos de sentido produzidos poderiam resultar da aplicação de uma mesma operação a materiais semânticos diferentes.

Com isso, Ilari assume a variabilidade dos fenômenos linguísticos, reconhece que as marcas apresentam uma variação semântica, ou uma polifuncionalidade (usando os termos de Franckel & Paillard, 2006), e também que carecem de uma análise particularizada (uma a uma), o que pode ser verificado no seguinte trecho:

sua aplicação [do termo “focalizadores”] não é sempre direta e fácil: as mesmas expressões que ocorrem como focalizadores típicos em alguns contextos desempenham funções distintas em outros: não há como escapar de uma análise caso por caso, o que dá a exposição que vai seguir um caráter fragmentário e até certo ponto subjetivo (ILARI, 1992, p.198).

Embora o trabalho tenha o intuito de tratar apenas das marcas que se encaixam na classificação de “advérbios focalizadores”, e isso é deixado claro pelo autor, lamentamos que o estudo fique restrito a uma das categorias gramaticais propostas pelas gramáticas tradicionais, a do advérbio. Com isso, não se aborda todas as variações de uso das marcas estudadas, restringindo-se apenas ao uso conhecido como adverbial. Não se busca um entendimento do mecanismo subjacente a essas variações. Enfatizamos, novamente, que essa não era a intenção do autor, embora ele admita a necessidade de se estudar marca por marca, como vimos. O autor tem interesse “em ir além dos casos claros para verificar a possível continuidade semântica ou pragmática entre usos focalizadores e não-focalizadores das mesmas expressões” (p.198).

Esse interesse pode ser verificado em outro trecho do texto, em que o autor trata novamente da marca bem. Ilari questiona por que este advérbio, que exprime realização típica, é o mesmo que atua como “qualificativo” e tem papel intensificador em outros casos. Sua hipótese é de que a interpretação de bem se define no contexto:

dependendo do tipo de palavra que segue, o uso de bem resulta num efeito que sugere modo/maneira, intensificação ou exatidão: supondo que esses efeitos de sentido sejam regulares, há espaço para analisar a significação de bem numa perspectiva composicional28 (ILARI, 1992, p.204).

28 De forma bem ampla, podemos dizer que a análise composicional, em semântica, é o estudo do significado das

palavras em conjunto. Nesse sentido, esse perspectiva se aproxima da nossa: pensamos que é na interação das quais participa uma marca que ela define seu sentido, ou seja, na relação com seu cotexto.

No entanto, após levantar essas questões, que sem dúvida representam um grande avanço nos estudos linguísticos, deixa esse trabalho em suspenso: “quem for curioso – curioso mesmo – tem nisso todo um programa de trabalho (ILARI, 1992, p.212)

Para concluir nossa reflexão, cabe salientar que o autor cria, dentro da classe dos advérbios, já presente nas gramáticas tradicionais, a subclassificação “advérbios focalizadores”, que se subdividem ainda em seis tipos: verificação de número; de proporção; de coincidência com um protótipo; de identidade; de factualidade; confronto de topologias. Em outros termos, embora apresente uma classificação nova e levante a questão da dificuldade em agrupar as marcas sob um mesmo rótulo, não se desvencilha das listas classificatórias e assim, acaba colocando o foco do estudo na categoria e não nas marcas linguísticas.