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A CASA E SEUS SIGNIFICADOS

Foto 4. Ilustração da casa ideal.

A classificação hierárquica descendente, obtida a partir do Alceste, permitiu vislumbrar a casa ideal sob cinco classes de respostas, que correspondem a dois grandes eixos de conhecimento assim distribuídos:

O eixo 1 está relacionando às representações da casa enquanto espaço doméstico. Neste eixo (figura 16), o que se destaca são elementos que servem à utilidade, uso e necessidade dos grupos.

A casa deve ter espaços que demarquem a privacidade, como os cômodos e liberdade, como o quintal. Deve ser segura, portanto, de alvenaria, em vez de madeira e estar na terra e não sobre águas. No entanto, ela deve ser simples, com cômodos de quartos, cozinha e banheiro, deve conter móveis e utensílios domésticos como cama, fogão e geladeira.

Essa é a casa simples, pequena, composta do essencial e que vai permitir aos filhos um lugar digno para viver, um lugar de aconchego onde se possa dormir e a família possa viver em harmonia. Essas condições também vão permitir uma arrumação adequada, limpeza diária.

Figura 16. Classificação hierárquica descendente

“...Olhe, uma casa melhor para arrumar, melhorar a aparência da casa. Aqui fica tudo muito imprensado, e de tábua não tem beleza, não tem beleza nenhuma. Porque aqui eu moro dentro d’água, tudo que se compra a maresia acaba” (trecho de entrevista).

Nesse sentido, a casa seria resultante de uma modalidade de uso de um espaço construído, ou seja, quando atendesse às funções previstas para operar como uma casa (Brandão, 2002). Não sendo assim, transfere-se para a casa de “outros” o sentimento e sensação de estar numa casa. A casa, nesse contexto, não estaria permitindo ao sujeito uma diferenciação social. Ao contrário, estaria negando essa condição. A casa teria tudo o que é feio, incômodo, contradizendo Da Matta (2001), quando diz que tudo que está no espaço da nossa casa é bom, belo e, sobretudo, decente.

“..Eu vivo aqui, mas gosto mais quando eu estou na casa dos outros trabalhando. Pelo menos na casa dos outros eu estou curtindo ali o que eu estou limpando. A gente passa a gostar do que é dos outros, quer dizer, na medida que eu estou limpando, estou curtindo, porque isso aqui não dá pra curtir” (Trecho de uma entrevista).

As práticas de limpeza se proliferam nos discursos como rituais importantes, contradizendo tanto as condições de moradia, quanto as representações de que pobreza e sujeira são indissociáveis.

Na realidade, a limpeza da casa representa um contraponto à sujeira da rua em todas as suas dimensões. É mais uma forma de se distinguir da vizinhança, da comunidade, do rio poluído. E assim não se sentirem tão miseráveis quanto as condições vividas. Ainda resta a limpeza!

A privacidade é outro aspecto muito importante da casa na vida desses grupos. Ela é importante tanto internamente, quanto externamente. Comum é, nesses grupos, os filhos dormirem com os pais ou até morarem com os avós por falta de espaço. O espaço homogêneo de uma casa, espaço sem divisórias, impõe-se como uma ausência de diferenciação e, portanto, de ordenação. Uma casa sem divisórias é uma casa desordenada, onde não há diferença entre macho e fêmea, pais e filhos, público e privado, dentro e fora (Rebouças, 2000). Em relação ao ambiente externo, a privacidade e independência também são importantes. As casas que são agarradas umas às outras (conjugadas) não deixam seus moradores à vontade. Eles ficam sempre dominados e submetidos à vizinhança.

“... quer dizer, é muito junto, se alguém liga uma televisão e liga alto, a gente fica com medo de mandar baixar, o som é a mesma coisa, não têm os espaços, é tudo bem pertinho do outro, a gente não tem espaço para nada...” (Trecho de uma entrevista).

Por estarem privados de sua privacidade, eles ressaltam a importância de morar numa “casa soltinha”, “separada” e confirma a idéia de Jovchelovicth (2000) que argumenta que aprender a demarcar e a preservar espaços de sociabilidade e de intimidade é necessário para manter diferenças e nuances, que também são a base para o encontro de semelhanças.

O eixo 2 apresentou grupos de palavras que remetem a representações vinculadas à idéia da casa como espaço de ser, no sentido da ação do homem e dos seus sentimentos. A casa teria que possibilitar movimento, trabalho, construção e reforma. Ao mesmo tempo em que trouxesse lembranças da casa da infância.

Uma casa grande que possibilitasse movimentos, onde havia espaços individualizados e pessoalizados, onde se sentiam mais organizados. A casa ideal é também aquela que tem uma impressão pessoal, onde eles podem construir não só conforme suas necessidades, mas também conforme seus desejos.

Os resultados também demonstraram que as representações acerca de uma casa ideal se diferenciavam de uma comunidade para outra. Relacionando as duas comunidades, vemos que a comunidade A representou a casa ideal com verde, quintal, separada e não conjugada, que tivesse espaço para movimentar, trabalhar, explorando a sua utilidade, salientando o sentido mais concreto e físico da moradia.

Já a comunidade B representou uma casa ideal, como uma casa grande, onde pudesse ser ampliada com a criação de novos cômodos e primeiro andar, que estivesse mais próxima da casa da infância. Aqui, a idéia do espaço está mais relacionada com a pessoalidade, conforto e organização do que com a utilidade e privacidade.

Nesses grupos, a casa, enquanto objeto idealizado, estaria vinculada a um outro momento vivido, seja no sentido simbólico como as vivências da infância, como no sentido

econômico, época em que a condição sócio-econômica da família era melhor e, portanto, a casa em que moravam tinha uma estrutura melhor.

Analisando sob a perspectiva de Lehfeld (1988), quando argumenta sobre a relação entre os segmentos de classe e os significados da moradia, temos que a mobilidade social desses grupos não alterou valores de uma classe. Esses permaneceram com essa camada através da preocupação da casa com espaços mais ampliados, conforto e individualidade.

Porém, essas impressões e desejos manifestos não impediram que predominasse nesses grupos uma preocupação em assemelhar a casa ideal com a casa possível e não com a do sonho impossível.

Diferente da casa escolhida na imagem, a casa ideal era representada nos discursos de forma mais concreta; era aquela possível, que fosse da pessoa, que tivesse um espaço melhor, que não tivesse perigo, que fosse num ambiente mais calmo, cujos gastos permitissem sua manutenção.

“...A gente olha uma casa dessas, gosta porque tem quintal, mas, às vezes, essa casa está grande demais também, uma casa assim pode até ser mais cara que mesmo um desse” (Trecho de uma entrevista).

A casa ideal, portanto, não era uma casa que ficasse longe da realidade desses grupos. O ideal era o possível e isso pode ser percebido sob dois ângulos. O primeiro estaria significando uma aceitação da condição social e, nesse sentido, não sonhar é resignar-se diante das condições adversas. O segundo representaria um conhecimento e discernimento da vida prática e vivencial, na qual sonhar dentro da realidade significa uma sabedoria sobre possibilidades reais e possíveis de alcançar. Mostrando que os projetos de vida são construídos a partir de possibilidade social de concretização.

4.2 A casa, a comunidade e o entorno.

A casa é um espaço que se define quando em contraste ou em oposição a outros espaços e domínios. Ou seja, é um espaço que não pode ser definido por uma fita métrica, mas pelo intermédio de contrastes, complementaridades e oposições. Nesse sentido, o espaço definido pela casa pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de oposição ou de contraste (Da Matta, 1997).

Nas representações construídas pelos moradores, havia presente a idéia de que a “casa” estava inserida numa extensão para além do seu limite territorial. Em seus discursos, os moradores relacionavam a “casa” ao lugar que moravam e a comunidade que viviam, expressando, assim, representações do habitat como um todo (foto 5).