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As imagens de Joris Ivens e o texto de Chris Marker

Capítulo 1 – De Cuba ao Chile: América Latina na obra de Chris Marker

3. À Valparaiso (1963): o Chile de Joris Ivens comentado por Chris Marker

3.1. As imagens de Joris Ivens e o texto de Chris Marker

Um breve plano de À Valparaiso, de cerca de dez segundos, mostra Pablo Neruda – não identificado como tal – descendo uma escada em formato de caracol em sua casa La Sebastiana, acompanhado de dois cachorros. Sua obsessão colecionista de mapas da região contribuiu como material de arquivo presente na montagem. Eva Fiszer, esposa de Joris Ivens, aparece por alguns segundos vestida de branco e com uma sombrinha, como uma legítima aristocrata chilena exibindo seus trajes na última moda europeia. Ao lado dos figurantes famosos, estão outros atores locais, recrutados

pelo diretor na Agrupación Teatral Valparaíso (ATEVA), bem como prostitutas do porto representando a si próprias como personagens dessa cidade. Ao melhor estilo

Nanook, o esquimó (1922), de Robert Flaherty, o realizador holandês encena a

realidade, recorre aos acasos bem-ensaiados para dar veracidade às notas tomadas para sua representação documental de Valparaíso.

O filme é montado como um apanhado de impressões, amarradas por um texto lírico escrito por Chris Marker especialmente para ele. Em entrevista à autora, concedida por e-mail em 2011, o cineasta francês declarou – com a humildade recorrente de não lhe autoatribuir uma autoria alheia – que “‘meu comentário foi largamente apoiado nas notas de Joris” (MARKER, 2011, tradução nossa).111 De fato, a perfeita combinação entre texto e imagem, a capacidade de narrar a cidade tal como vista por Ivens, impressionam, tendo em vista que Marker o escreveu à distância (sobre uma Valparaíso imaginada, tal como lhe foi descrita por seu companheiro viajante). De acordo com os pesquisadores de sua obra, o francês teria o redigido em apenas dois dias, respondendo a um anseio do amigo:

O comentário para À Valparaiso foi escrito por Chris Marker, baseado nas anotações de Ivens e aparentemente no espaço de dois dias, depois de Marker ter encontrado Ivens extremamente desencorajado porque ele se programara para mixar o filme, mas não tinha ainda um texto adequado. Quando Ivens expressou sua admiração pela velocidade com que o comentário foi entregue, Marker laconicamente comentou que ele tinha apenas ficado sem dormir e tinha bebido um pouco de rum cubano. (LUPTON, 2008, p. 197, tradução nossa)112

A referência ao “rum cubano”, embora anedótica, remete a uma inspiração que pode ter vindo da experiência de Cuba si, já que assim como o filme realizado um ano antes, À Valparaiso é uma espécie de ode a um povo que resiste às intempéries113. Marker encontrou nas imagens de Ivens a poesia cotidiana na luta diária pela sobrevivência, mas também um potencial violento para a libertação. O imperialismo e a miséria (fruto de uma exacerbada desigualdade social na cidade chilena) são

                                                                                                               

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Traduzido do original: “Mon commentaire s'était largement appuyé sur les notes de Joris.”

112 Traduzido do original: “The commentary for À Valparaiso was written by Chris Marker, based on Ivens’s notes and apparently in the space of two days, after Marker had found Ivens extremely discouraged because he was scheduled to mix the film but did not yet have a suitable text. When Ivens expressed his amazement at the speed with witch the commentary had been delivered, Marker laconically remarked that he had just gone without sleep and drunk a little Cuban rum.”

elementos explosivos que, ao longo do documentário, se desdobram em um potencial para a transformação.

Apesar de não ter participado da montagem, Marker imprimiu uma de suas principais características ao filme, que é questionar e complementar as imagens por meio do texto. Seu comentário é proferido pela voz over – interpretada pelo ator Roger Pigaut –, que guia o espectador pela paisagem urbana. A cidade é uma metáfora para a sociedade: assim como as classes sociais, ela se desdobra em camadas. No entanto, se trata de uma “metáfora às avessas”, já que a disposição das moradias em Valparaíso concentra os ricos próximos ao porto, abaixo, e os pobres em uma espiral ascendente cujo traçado relaciona a miséria aos níveis mais altos das colinas. Ivens valoriza as tomadas feitas nos muitos ascensores que ligam a parte baixa à parte alta, bem como o esforço em subir contraposto à facilidade em descer as escadas. Esses elementos ligam os dois mundos, e são também os espaços de encontro entre a elite e o povo. Acompanhando um plano em que a câmera se movimenta como se estivesse dentro de um desses elevadores, mas provavelmente gravado em um voo panorâmico devido a sua amplitude, Marker escreve para essa cena que mostra uma infinidade cada vez maior de telhados: “Sobre as colinas, existe uma outra cidade. Não uma cidade: uma federação de vilas, uma por colina. 42 colinas, 42 vilas. Não uma outra cidade: um outro mundo. Dois mundos que se comunicam pelas rampas, pelas escadas, pelos elevadores.” (À Valparaiso, 1962, tradução nossa)114

Fotogramas de À Valparaiso.

Em sua sinfonia-urbana de Valparaíso, Ivens ressalta os elementos naturais. A fotografia joga com a intensa luz do sol, contrapondo planos fechados mais escuros com a claridade de tomadas panorâmicas. O vento se torna visível, nas diversas

                                                                                                               

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Texto da voz over de À Valparaiso, traduzido do original: “Sur les collines, une autre ville existe. Pas une ville: une fédération de villages, une par colline. 42 collines, 42 villages. Pas une autre ville: un autre monde. Deux mondes qui communiquent par les rampes, par les escaliers, par les ascenseurs.”.

sequências em que meninos soltam pipas – nelas também o céu está em destaque. Em cima das colinas, as roupas secam, os cabelos das jovens se tornam esvoaçantes. No mar, transitam navios, mas também pássaros e um leão-marinho. No comentário de Marker, todos esses elementos se relacionam diretamente com a vida dos habitantes locais. E se são eles os responsáveis pela beleza dessa cidade, são também obstáculos na luta pela sobrevivência cotidiana. Com a ventania, o fogo se espalha de uma casa para a outra, são constantes os incêndios no alto das colinas. O vento sopra forte com a altitude: “É bom para secar a roupa lavada, é pior para os pulmões das crianças” (À

Valparaiso, 1962, tradução nossa)115, problematiza a voz over. A intensa iluminação natural torna a miséria menos evidente, de acordo com o comentário do realizador francês: “Com o sol, a miséria não parece mais ser a miséria, os elevadores não parecem mais ser os elevadores. Essa é a mentira de Valparaíso. Sua mentira é o sol. Sua verdade é o mar ” (À Valparaiso, 1962, tradução nossa)116.

Um senhor sem uma perna sobe uma escada, enquanto a voz over complementa seu esforço: “121 degraus, ele sabe, ele os conta. É necessário ter o coração forte e também uma boa memória” (À Valparaiso, 1962, tradução nossa)117. A altitude imprime uma dificuldade a mais na sobrevivência em Valparaíso. Ela dificulta, por exemplo, a chegada de água, e também de comida. Ivens gravou planos impressionantes dentro de um cortiço no alto das colinas. Neles, novamente estão as escadas. Nessa cidade, elas parecem não acabar. Para essa sequência, Marker escreveu: “Quanto mais subimos sobre as colinas, mais as pessoas são pobres. No topo, os pobres dos pobres. Na cintura de cada colina, grandes casas em ferro negro e ferrugem, os castelos dos pobres. Como viver?” (À Valparaiso, 1962, tradução nossa)118

Valparaíso (“le valle du Paradis”, como traduz o comentário de Marker) é uma espécie de cidade às avessas. Sua topografia concentra os pobres no cume da pirâmide, deixando a base para os mais abastados. Essa particularidade do cenário

                                                                                                               

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Texto da voz over de À Valparaiso, traduzido do original: “C’est bon pour sécher le linge, c’est moins bon pour les poumons des enfants”.

116 Texto da voz over de À Valparaiso, traduzido do original: “Avec le soleil, la misère n’a plus l’air d’être la misère, les ascenseurs n’ont plus l’air d’être des ascenseurs. Tel est le mensonge de Valparaiso. Son mensonge, c’est le soleil. Sa vérité, c’est le mer”.

117 Texto da voz over de À Valparaiso, traduzido do original: “121 marches, il le sait, il les compte. Il faut avoir le cœur solide et aussi une bonne mémoire”.

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Texto da voz over de À Valparaiso, traduzido do original: “Plus on monte sur les collines, plus les gents sont pauvres. Au sommet, les pauvre des pauvres. À la ceinture de chaque colline, de grandes maison en fer noir et rouillé, les châteaux des pauvres. Comment vivre?”.

urbano é enfatizada no filme, tanto por tomadas inusitadas quanto pela narrativa da voz over. Panizza (2011) destaca que, em 1964, quando o documentário foi exibido no Chile, uma das cenas que mais desagradou foi um plano curto, em que uma mulher da aristocracia descia as escadas levando um pinguim preso a uma coleira, como um animal de estimação. A autora narra que o caráter “documental” da obra foi colocado em dúvida, diante de uma imagem tão improvável. No entanto, em seu comentário, foi justamente esse aspecto inusitado, idílico, que Chris Marker quis ressaltar. Se À

Valparaiso está no limite entre o real e o encenado, entre fato e imaginação, o

realizador francês dá ao extraordinário uma esfera cotidiana, como fica claro no trecho escrito para esse polêmico plano: “Nessa cidade, todos os dias, ao meio-dia, o sol realiza seus milagres. Todas as mulheres de Valparaíso, portadoras de sombrinhas, levam para passear todos os pinguins de Valparaíso.” (À Valparaiso, 1962, tradução nossa)119.

Fotogramas de À Valparaíso: à esquerda, Eva Fiszer como figurante; à direita, a polêmica cena do pinguim.

Se essa polêmica cena pode ter sido encenada, a única sequência em que há falas além da voz over é um registro documental de uma assembleia de moradores, gravada no alto de uma das colinas – uma espécie de “conselho de cidadãos”, como define Marker. A falta de acesso à água para quem vive no alto, na miséria, leva o povo a discutir soluções. Apesar de breve, a inserção dessa passagem aponta para uma ruptura da ordem cotidiana. Se o plano do passeio nas escadas parecia normalizar o inaceitável (um pinguim com uma madame saindo para tomar sol), essa sequência mostra que há um movimento de transformação vindo do alto, das esferas mais pobres da cidade. A parte final do filme aponta para a revolta, e visa a responder uma questão

                                                                                                               

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Texto da voz over de À Valparaiso, traduzido do original: “Dans cette ville, tous les jours à midi, le soleil accomplit ses prodiges. Toutes les femmes de Valparaiso porteuses d’ombrelles sortent pour promener tous les pingouins de Valparaiso.”

do comentário colocada anteriormente, quando a voz over constata que a comida e a bebida não subiam o morro sozinhas: “A que preço a vontade de viver? A que preço a felicidade?” (À Valparaiso, 1962, tradução nossa)120.

À Valparaiso é filmado em preto e branco, com uma fotografia que explora as

luzes e as sombras dessa cidade. Porém, seus cinco minutos finais são gravados em cores, constituindo uma quebra com as sequências anteriores. Se a água, o vento e o fogo (que queima os casebres) foram abordados na primeira parte do filme, o comentário de Marker anuncia que o quarto elemento de Valparaíso, tema da última parte, é o sangue. A passagem para as cenas coloridas ocorrem em um bordel, em meio aos marujos estrangeiros que se divertem entre as prostitutas e as cartas de baralho. De repente, uma briga, uma ruptura da ordem que introduz o vermelho na tela. Trata-se de uma alegoria propícia para abordar uma das temáticas que perpassa o filme desde o início, mas que finalmente ganha centralidade: o imperialismo.

As cenas feitas no bordel, em À Valparaiso, certamente são encenadas, porém, contam com a presença de prostitutas reais. Elas lembram algumas sequências que compõem Soy Cuba, de Mikhail Kalatozov, concluído pouco depois da produção de Ivens, em 1964. O fato é que a metáfora da América Latina como um “bordel”, um lugar de diversão e exploração dos estrangeiros dos países desenvolvidos, havia ganhado força após a Revolução Cubana, que justamente buscou romper com essa dinâmica. Nas tomadas feitas pelo holandês da parte baixa da cidade, Marker identifica símbolos dessa dominação econômica e cultural ao que o Chile também estava submetido: o Banco de Londres, um Arco do Triunfo, referências europeias nos monumentos e nos produtos consumidos. O comentário lembra, ironicamente, que as contribuições da França ao Novo Mundo seriam os corsários e a “última das sociedades secretas”: a Aliança Francesa.

Apesar de serem temas que perpassam o documentário, é na parte colorida que colonização e imperialismo são abordados de maneira direta. Mapas do Novo Mundo emprestados por Neruda expõem serpentes marítimas, monstros e piratas, obstáculos na época das navegações para a desejada conquista do Eldorado (ou do paraíso, para citar a origem do nome da cidade). A colonização espanhola é lembrada por Marker em seu comentário diante das imagens dessas cartografias e gravuras, que remetem aos tempos da conquista:

                                                                                                               

120 Texto da voz over de À Valparaiso, traduzido do original: “A quel prix la volonté de vivre? A quel prix le bonheur?”

Memórias de corsários: Hawkins, Drake, Joris van Spielberg121. Torturas e pilhagens. Memórias dos espanhóis. Torturas e pilhagens, e opressão colonial por séculos. Memórias dos incêndios. Os elementos engrandecem os homens. Depois do fogo, o mar. Memórias das tempestades. Os barcos de Júlio Verne jogam na costa os náufragos de Gavarni122. E a volta continua. A Inglaterra apoia a Independência do Chile. Isabel II da Espanha bombardeou a cidade. Último esforço do colonizador frustrado, inundações, incêndios, ciclones e pilhagens, foi o que coube a esse povo pacífico. E não havia terminado. (À Valparaiso, 1962, tradução nossa)123

Junto a essa última frase, o filme mostra uma gravura do Tio Sam abrindo o canal do Panamá no mapa da América com um prego, fechando assim um ciclo de invasores entre Espanha, piratas, Inglaterra e Estados Unidos.

Fotogramas de À Valparaiso.

Após descrever as “aventuras” pelas quais Valparaíso passou, Marker identifica em seu comentário os desafios que a população enfrenta no presente: conquistar uma casa habitável, jardins cultiváveis e justiça – além de um duelo de pipas no céu da cidade portenha. O texto produzido para o filme de Ivens traz à tona o problema do Terceiro Mundo, as mazelas do subdesenvolvimento fruto de séculos de exploração. Nesse sentido, a evocação da violência, como um elemento transformador – que traz cor ao documentário, a começar pelo vermelho-sangue – pode ser relacionada às ideias de Frantz Fanon, que dois anos antes do lançamento de À

                                                                                                               

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Piratas ingleses e holandês que estiveram na região de Valparaíso (comuna de El Quisco) entre os séculos XVI e XVII.

122 Referência ao ilustrador e aquarelista francês Paul Gavarni, autor de uma gravura usada na montagem dessa sequência final.

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Texto da voz over de À Valparaiso, traduzido do original: “Mémoire des corsaires : Hawkins, Drake, Joris de Spielberg. Tortures et pillages. Mémoires des espagnols. Tortures et pillages, et oppression coloniale pour des siècles. Mémoires des incendies. Les éléments relèvent les hommes. Après le feu, la mer. Mémoire des tempêtes. Des bateaux de Jules Verne jettent au rivage des naufragés de Gavarni. Et la ronde continue. L’Angleterre soutient l’Independence du Chili. Isabelle II d’Espagne fait bombarder la ville. Dernier sursaut du colonisateur frustré de terre, déluges, incendies, cyclones et pillages, tel devait être de ce peuple pacifique. Et ce n’était pas fini.”

Valparaiso publicara Les damnés de terre. O cineasta francês imprime em seu

comentário os ares das guerras de libertação evocados pelo autor caribenho que tanto influenciou a esquerda francesa na época.

Durante os anos 1960 e 1970, Fanon se tornou também uma referência importante para o Nuevo Cine Latinoamericano, sendo citado textualmente em filmes como La hora de los hornos (1968), realizado por Fernando Pino Solanas e Octavio Getino, integrantes do Grupo Cine Liberación. Nesse sentido, pode-se dizer que seus livros alimentaram o discurso da dependência como fruto dos processos coloniais e neocoloniais, bem como de uma ampla defesa por parte de setores da esquerda adeptos do uso das armas e da violência como instrumentos de libertação. No entanto, é necessário estudar a circulação de ideias entre a Europa (ou mais especificamente a França, onde Fanon produziu seus escritos) e a América Latina como trocas de mão dupla. Esse mesmo olhar deve ser empregado ao elaborar afirmações sobre os resultados dessa aproximação de Ivens e Marker com o continente latino-americano. A presença de teorias de Fanon no cinema dos dois lados do Atlântico permite concluir que, assim como as pessoas, os discursos se deslocam.

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