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CAPÍTULO I – CIÊNCIA VERSUS PAIXÃO, EM MANOEL BOMFIM, E

1. Imagens de origem do Brasil

A origem dos mitos e dos discursos sobre o Brasil, principalmente os primeiros, possuem raízes no início da colonização portuguesa. Esses, por sua vez, traçam imagens e representações diversas sobre a origem do país, sua imensidão, sua beleza natural e seus habitantes nativos. Essas são permeadas de pré- conceitos e uma visão etnocêntrica, nos quais os limites entre o belo e o assombro são tênues, colocando em evidência a relação entre o homem e a natureza, em um triplo fio, traçado por africanos, indígenas e colonizadores/europeus. Neste sentido, o período das grandes navegações e da colonização do continente latino americano experimentou, a partir do século XVI, experiências conflitantes, ou seja, a busca pela civilização e a barbárie. Estas se misturaram, em um misto de tragédia e etnocentrismo para com os primeiros habitantes brasileiros.

Frantz Fanon, ao analisar o processo de descolonização das colônias francesas, demonstra que a “originalidade” do contexto colonial reside no fato da separação do mundo ocidental em duas partes, na qual o elemento demarcatório “é

construção e (re)descoberta: “Representação que se realiza e pede para ser lida na contraposição entre civilização e barbárie e, dentro dessa leitura, como “marcha”, como “conquista” de uma pela outra, como e principalmente, culturais e inerentes ao processo civilizador. Conquista do oeste, ocupação da fronteira aberta, seja ela dos sertões ou das florestas, os “desertos” do Brasil. Leitura que toma por base o processo de colonização como inexorável processo civilizador na formação das jovens nações americanas”. NAXARA, Márcia Regina C.. ‘Encantos’ e ‘Conquistas’ do Oeste: desvendar fronteiras e construir um lugar político. Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. Horácio Gutiérres, Márcia Regina C. Naxara e Maria Aparecida de S. Lopes(orgs.). Franca: UNESP; São Paulo: Olho D’Água, 2003, p.227-228.

antes de mais nada pertencer ou não a tal espécie, a tal raça”39. Neste contexto, o europeu, imbuído de uma suposta superioridade, não identifica o “outro” como semelhante, mas como inferior, em todos os aspectos. Não o reconhece como igual na diferença, princípio primeiro da alteridade.

Este estado leva o colonizador a transformar o colonizado no “outro”, o “inimigo” que habita sua própria terra. Neste sentido, é emblemático o título da obra de Frantz Fanon “Os condenados da terra”, pois instiga a reflexões sobre a construção do “outro” em meio à dominação européia sobre a América, a África e seus habitantes em tempos de colonização e, posteriormente, no processo de descolonização. O sentimento de alteridade se perde em meio aos conflitos gerados, pois remete às relações, em que um ser humano vê o outro, o reconhece e por ele é visto e reconhecido. Não há alteridade em relações de desigualdade, como as vivenciadas entre os europeus, latino-americanos e africanos. Mas o seu contrário foi experimentado. No processo de constituição do “outro”, com a colonização, imagens sobre os índios – e posteriormente sobre os africanos – foram cristalizadas pelos europeus, nas quais:

O indígena é declarado impermeável a ética, ausência de valores, como também negação de valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores. Neste sentido é o mal absoluto. Elemento corrosivo, que destrói tudo o que dele se aproxima, elemento deformador, que desfigura tudo o que se refere à estética ou à moral, depositário das coisas maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas. 40

Os fios que desenham as imagens dos índios ao longo dos primeiros séculos de colonização justificam para os europeus a inferioridade indígena, sendo este entendido como ser sem moral e sem valores, portanto, necessitando das benesses que a cultura européia, supostamente, proporcionaria. Esses sujeitos são transformados, no discurso, em “povos primitivos” e “sem fé”. Os índios se distanciavam de todas as regras que o europeu entendia por civilizado. Na visão ocidental, seus rituais, crenças e línguas, por não seguirem um padrão único, não eram compreendidas pelos europeus. Nessa direção, convém lembrar as reflexões elaboradas por Steiner41 sobre o ato da tradução, em que tudo o que não se

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Frantz FANON. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A, 1968, p.29.

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Idem, p.31.

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STEINER, George. Depois de Babel: questões de linguagem de tradução. Curitiba: Editora da UFPR, 2005.

consegue decodificar é visto a partir da ótica do diferente, mas principalmente, do inferior. Portanto, as relações travadas entre estes sujeitos – europeus, indígenas e, posteriormente, africanos – são permeadas de conflitos, contradições e, em muitos momentos, de incompreensão, pois eram mundos diferentes que se chocavam. O olhar europeu não buscou compreender o “outro”, mas sim impor sua língua, suas visões de mundo e sua cultura.

No velho mundo, a partir do século XVI, consolidou-se uma série de gestos e rituais, os quais indicavam como se portar perante o “outro”. Nesse movimento os europeus ingressaram propriamente no campo do que foi entendido, posteriormente, como civilidade. Os séculos XVI e XVII foram significativos para a construção da civilidade e permitiu aos sujeitos a “delimitação de si conforme hábitos que implicam na contenção, a postura: atitude de polidez, consideração, estima, honra, esses usos que ocorrem em um espaço de formas de mediação, são na modernidade, progressivamente tidos como direitos” 42. Ainda, esclarece Claudine Harouche:

A propriedade visível de si nos gestos e condutas (Karl Marx, Maurice Halbwachs) é atestada, portanto, no espaço concreto, físico, material das instituições, em particular, e dos espaços sociais, de modo mais amplo. Induz a um determinado tipo de comportamento: as posturas e atitudes são regidas por usos e rituais codificados, segundo uma ordem de precedências. 43

Civilidade, em termos gerais, significou, em um primeiro momento, um conjunto de regras e valores, experimentado no espaço público e privado do velho mundo e construiu parâmetros a serem seguidos, homogeneizando as formas do agir, do falar e do pensar. Estas novas experiências foram permeadas pela razão, conquistada com o desenvolvimento da ciência e o anseio por descobrir novos territórios, passíveis de dominação econômica e cultural.

Passado, presente e futuro se misturam no encontro entre estes dois mundos distintos. Por um lado, a cultura européia, como analisada, buscava a padronização, a partir de gestos medidos, da ciência e da razão. Por outro lado, os latino-americanos existiam no “novo mundo” com grande pluralidade de línguas, de

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HAROCHE, Claudine. O que é um povo? Os sentimentos coletivos e o patriotismo do final do século XIX. In: SEIXAS, Jacy A; BRESCIANI, Maria Stella; BREPOHL, Marion (Orgs.). Razão e paixão na politica. Brasília: UnB, 2002, p.3.

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valores e de cultura, tendo como consequência multiplicidades de experiências, fala e trato com o outro.

Na linha de pensamento de Fanon, é necessário lembrar dos milhares de índios e negros que foram mortos e escravizados pelos colonizadores brancos, ditos civilizados, sendo as vítimas, estigmatizadas como seres primitivos, sem alma ou religião. Assim, os colonizadores portugueses, justificaram para as outras nações, ditas civilizadas, suas ações de dominação cultural e servidão dos indígenas, ou escravidão negra. Nesse movimento, a catequização, ou seja, imposição dos preceitos da religião católica ao índio, foi colocada como missão de salvação para o colonizador. Mas, em outra vertente, ou seja, a do indígena – e também a do africano – representou o extermínio dos valores, das crenças, das formas de socialização, de trabalho e das línguas das diferentes nações. Atente-se para o fato de que a história escrita dos indígenas esteve impregnada do olhar europeu, os fios tramados foram essencialmente a questão da cultura/identidade e a terra. Para Maria Regina Celestino de Almeida:

os índios surgiam na história, em geral apenas no momento do confronto, quando pegavam em armas e lutavam contra os brancos, para saírem dela logo que, derrotados, deixavam de ser obstáculos à ocupação da terra. Integradas à colonização, as populações indígenas perdiam, junto com a guerra, suas culturas, identidades étnicas e todas as possibilidades de resistência, passando a constituir massa amorfa e inerte à disposição dos missionários, colonos ambiciosos e autoridades corruptas que disponham dele à vontade. As relações de contato entre os índios e a sociedade ocidental eram vistas como simples relações de dominação impostas aos índios, de tal forma que não lhes restavam margem de manobra alguma a não ser de submissão passiva a um processo de perdas culturais progressivas que os levaria à descaracterização e à extinção étnica. Nesta perspectiva, os índios do Brasil integrados à colonização, quer na condição de escravos ou aldeados, diluíam-se nas categorias genéricas de escravos ou despossuídos da colônia. Assim, os tamois, os aimorés, os goitacases eram índios bravos mas perderam a guerra, foram absorvidos pelo sistema colonial como vitimas indefesas, aculturaram-se, deixaram de ser índios e saíram da história. 44

Por um longo período, a história do índio no Brasil foi contada de forma a complementar a “saga” dos colonizadores, e não em uma perspectiva de

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ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Identidades Étnicas e culturais: novas perspectivas para a história indígena. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavras, 2003, p.67.

desmistificação das primeiras imagens criadas e a tentativa de compreensão da complexa realidade e cultura indígena. Nesse momento cabe uma pergunta para desatar um dos nós dese artefato: quem eram os bárbaros, naquele momento singular da história latino-americana? A América, quando conhecida pelos europeus, ganhou espaço privilegiado em seu imaginário e se, por um lado, foi identificada como espaço intocado, impenetrável, enfim, um mundo fantasmagórico; por outro, foi visto como possibilidade de conquista de infinitas riquezas. Imagens do paraíso e do inferno vieram à tona para representar as terras brasileiras.

Esta é apenas uma face das narrativas sobre a história do Brasil, pois, como indica Marilena Chauí, a América não foi “descoberta” pelos europeus e sim “achada” em um período de franca expansão territorial, além mar, para a dominação e a exploração de novos territórios e a formação de mercados consumidores. No entanto, essa ideologia foi disseminada por longa data. O Brasil não estava à espera de Cabral, mas já existia, quando ele o encontrou, com seu povo e organização singular. Assim, para a autora os “achamentos” foram construções históricas construídas pelos europeus que acabaram “inventando” o Brasil como uma terra abençoada por Deus:

Na Europa a realidade precedeu o nome. A América, pelo contrário, começou por ser uma idéia. Vitória do nominalismo: o nome engendrou a realidade. [...] O nome que nos deram nos condenou a ser um mundo novo. Terra de eleição do futuro: antes de ser, a América. No entanto, em outras narrativas, como já afirmado, o país aparece mergulhado na escuridão de seus habitantes e por isso atrasado e necessitando da luz da modernidade européia. 45

Para Chauí, no decorrer dos séculos XVI e XVII, foi construído o mito fundador sobre o Brasil, alicerçado na natureza e na formação do Estado-Nação. Assim, defronta-se com a “invenção do Brasil” em ideias narradas de modo a integrá-lo ao contexto mundial. As análises da autora, no que diz respeito às diferenças entre as palavras fundação e formação dos mitos, são iluminadoras para se compreender as origens das narrativas sobre o Brasil:

Quando os historiadores falam em formação, referem-se não só às determinações econômicas, sociais e políticas que produzem um acontecimento histórico, mas também pensam em transformação e,

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CHAUÍ, Marilena. Brasil: o mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p.57.

portanto, na continuidade ou na descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processo temporais. [...] Diferentemente da formação, a fundação se refere a um passado imaginário tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal que lhe dá sentido. A fundação pretende situar-se além do tempo e da história, num presente que não cessa nunca sob a multiplicidade de formas ou aspectos que pode tomar. 46 Grifos da autora

Marilena Chauí chama a atenção para as nuances da caracterização dos conceitos de “formação” e de “fundação” dos mitos. O primeiro, construído por historiadores e em determinado contexto histórico-social-econômico não se encerra em si mesmo, ou seja, possui uma historicidade, na qual foi construído e (re)significado, encontrando-se em permanente transformação. A fundação dos mitos foi estabelecida por ideologias construídas e cristalizadas, sem mutações, servindo, muitas vezes, como forma de legitimar o poder de determinados grupos sociais sobre outros. Esses mitos, se referem à história do Brasil, foram elementos constitutivos de sua imagem e identidade nacional. Assim, identificam-se os mitos fundadores e a formação de construções discursivas em contextos específicos da história brasileira, os quais integram um emaranhado de hipóteses e pressupostos, que se opõem, ao mesmo tempo, em que se complementam, para justificar a subjugação dos povos indígenas e africanos e a suposta superioridade européia. Este tema será posteriormente analisado neste trabalho.

A partir do século XVI, o “fazer” do Brasil em ideias foi momento fértil na construção de imagens que o “inventaram”, em um misto de ficção e realidade. Assim, literatos, ensaístas, artistas plásticos e viajantes construíram imagens sugestivas de um território em permanente mutação. Num primeiro momento, figuram os relatos de viajantes estrangeiros e naturalistas que instigam o medo e a fantasia sobre territórios até então inexplorados. Posteriormente, as narrativas retratam a ação dos colonizadores e a necessidade de civilizar o solo americano. Com a abolição do trabalho escravo e a instalação da República, outras imagens foram construídas, mas, permanecendo a sede pela civilização e o progresso, por vezes personificada no ideal de branqueamento, no desenvolvimento econômico, na introdução dos hábitos e gostos europeus. Assim, as leituras e as imagens do Brasil, por se como nação civilizada e a busca pelo esquecimento dos séculos de escravidão foram delineadas na virada do século XIX para o século XX, seja na

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literatura, nos jornais, nas revistas científicas, como também nos discursos de especialistas e sanitaristas. Na multiplicidade de discursos sobre o Brasil do período, situa-se a produção de Manoel Bomfim, e posteriormente, a produção de intelectuais sobre sua obra e a consolidação de seu lugar no pensamento social brasileiro. Para se compreender seus discursos e suas imagens, se faz necessária a análise deste duplo movimento, ou seja, os fios traçados pelo pensador e a crítica produzida sobre ele. A partir desse movimento, encontram-se as narrativas e visões de Bomfim, como discurso que muito se distanciou do que era usualmente aceito, no que dizia respeito ao negro, a história do Brasil e a outros temas.

Identifica-se, nas narrativas de Manoel Bomfim, a possibilidade de construir a história da América, mas, em particular, a do Brasil, por outro viés, que não apenas a do olhar europeu, buscando o “Brasil real”. No entanto, para esse movimento antes se faz necessário ater-se aos meandros da escrita da história do Brasil, em um contexto marcada pelo parâmetro positivista. Para se compreender o pensador e seus escritos,passa-se a análise de sua vida. Sua obra foi reflexo do do momento em que viveu, mas também de seus anseios particulares. Nessa perspectiva, recupera-se as análises de Nicolau Sevecenko47 em “Literatura como missão”, ao problematizar a posição do literato frente ao seu tempo. Como analisa Sevecenko, muitos literatos possuem fala marginal na sociedade em que vive, mas, em contraponto a esse lugar, escreve sobre o seu tempo, as várias possibilidades que viveram, mesmo não concretizadas, sendo estas passíveis de realização, trazendo à tona angústias, sonhos e os mais variados conflitos. Tomando-se o argumento de Sevecenko e ampliando-o, afirma-se que historiadores, literatos, sociólogos, pensadores, de modo geral, não se encontram além de seu tempo, mas dentro dele, com olhar arguto e questionador.