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CAPÍTULO I – CIÊNCIA VERSUS PAIXÃO, EM MANOEL BOMFIM, E

5. Sentimentos morais nos escritos de Bomfim

O envolvimento de sentimentos morais e ciência foi alvo de severas críticas sobre os escritos de Bomfim. No entanto, é possível entendê-lo, a partir de outros contornos142. “A paixão, ao contrário de lhe parecer obstáculo, serve-lhe de instrumento na explicitação das próprias motivações e na revelação dos interesses mascarados, nas perspectivas científicas e historiográficas dominantes no Brasil”143. Bomfim utiliza-se de seu amor pelo país, para escrever outra história, que não a até então delineada.

“Prefiro dizer o que penso, com a paixão que o assunto me inspira”. O pensador constrói sua argumentação, tendo a mistura da razão e da paixão, esta última, em um primeiro momento, inconciliável com a noção de ciência daquele período, pautada na perspectiva positivista. A história escrita por Bomfim parte da divisão entre as classes e da crítica aos parasitas que impedem o progresso do

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Estas análises se fizeram possível a partir da leitura de autores como o de Stella Brsciani, Pierre Ansart, Christina Roquete Lopreatto, Jacy Seixas, Marcia Regina Naxara e outros que nos possibilitam olhar a historia a partir de sentimentos como a questão da alteridade, das sensibilidades, das subjetividades. Estes, não estão citados diretamente mas proporcionaram importante sustentação para nosso trilhar.

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Brasil, em misto de paixão e análise crítica, utilizando-se de conceitos não usuais, em seu momento, tais como o parasitismo, o que não invalidou seus escritos, mas que o encurralou em uma armadilha, pois vivia um momento, no início do século XX, em que a ciência e a objetividade eram entendidas como sinônimos de progresso econômico, de modernidade e de civilidade e a história não era escrita fora do parâmetro positivista.

O tempo de Bomfim foi um momento da história brasileira impregnado de contradições, pois pregava a igualdade entre os cidadãos, na mesma medida em que negava o direito, aos ex-escravos negros, de se inserirem no mercado de trabalho, nas mesmas condições de igualdade que os trabalhadores brancos. Bomfim utilizou-se de interpretações que contrariavam as usuais, e aqui nos referimos à sua crítica sobre as teorias raciais, assunto que será analisado posteriormente.

No processo de construção do pensamento social brasileiro, muitos foram os intelectuais que buscaram explicar a constituição do Estado Nação, o Brasil e sua identidade, tais como Francisco Adolfo Varnhagen, Capistriano de Abreu, Araripe Junior, Afonso Taunay, entre outros. Estes partem tanto do olhar do estrangeiro, quanto do nacional, e traçam instigante emaranhado de narrativas, nas quais o fio condutor era o fim da barbárie, em contraponto à civilidade, às novas fronteiras do Brasil. Múltiplas representações de brasilidade foram construídas. Esta construção, em Bomfim, se fez a partir do olhar do nacional, da sua preocupação com a realidade vivida, com as questões político-sociais sentidos e percebidos em seu tempo e espaço. Para a compreensão, em sua totalidade, seria necessário percorrer longo caminho de configuração do pensamento intelectual e político brasileiro com seus vários pensadores. Faz-se necessária atenção maior às reflexões de Manoel Bomfim sobre a História do Brasil, pois apresentou postura singular sobre sua escrita em seu tempo e lugar.

Destarte, identifica-se, em Manoel Bomfim, posição teórica sobre a História do Brasil e seu sentido, que foi além da preocupação em perpetuar nomes de heróis e datas para a construção da memória do Brasil. Preocupou-se em escrever sobre o povo brasileiro, em seu total, pensando os seus males e as possibilidades para o progresso social do país, a começar pelo entendimento de Bomfim sobre a escrita da História.

A partir do exposto até este momento, é perceptível que muitas páginas da história do Brasil foram escritas pelo branco pobre, o negro e o indígena. No entanto, muitas outras histórias não foram contadas. Conhecer e interpretar a história ainda por escrever era o desejo de Bomfim, sem amarras com o pensamento vigente ou as concepções tradicionais de explicações históricas. Solidariedade, alteridade, indignação, paixão, humilhação são sentimentos que se identificam nos escritos de Bomfim, com vistas a outro entendimento sobre o Brasil e o brasileiro.

Vem aqui a exposição de uma teoria, construída com os fatos e as deduções como nô-lo apresenta a ciência; a linguagem geral do livro, porém, certos comentários, parecerão descabidos e impróprios a uma demonstração que assim se fundamente. Seria preciso, acreditam certos críticos, uma forma impassível, fria e impessoal; para tais gentes, todo o argumento pode perder o caráter científico sem esse verniz de impassibilidade; em compensação bastaria afetar a imparcialidade, para ter direito a ser proclamado – rigorosamente científico. Pobres almas! ... Como seria fácil impingir teorias e conclusões sociológicas, destemperando a linguagem e moldando a forma à hipócrita imparcialidade, exigidos pelos críticos de curta vista! 144

Entende-se que o pensador não se satisfez simplesmente em descrever os fatos e perpetuar as idéias já consagradas. Bomfim acreditava que alguns seus argumentos “parecerão descabidos ou impróprios”, pois não possui a forma “fria e impessoal”, entendendo os limites que seu tempo impunha ao pensamento. No entanto, para Bomfim, sua escrita continuava “rigorosamente científica” 145. E mais:

Toda doutrina que se apóia sobre a observação e a teologia, e se acorda com as leis gerais do universo, deve ser tida como verdadeira até prova o contrário. A paixão da linguagem, aqui não dissimulada, traduz a sinceridade com que estas coisas foram pensadas e escritas. 146

O pensador não abriu mão do método científico, pois seus argumentos possuíam base científica e filosófica, mas admitiu ser a paixão um elemento fundamental em sua escrita. A priori, entende-se a paixão como o contrário da ciência, a razão, o sentimento que cega, e por isso, coloca o indivíduo em posição frágil, lugar de insegurança, carregado de negatividade. De acordo com Bresciani, Germaine de Staël assim entende o conceito ou noção de paixão: ‘‘as paixões, essa

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BOMFIM, Manoel. América Latina, p.35.

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Idem.

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força impulsiva que arrasta o homem independentemente de sua vontade, eis o verdadeiro obstáculo à felicidade individual e política’’147. No entanto, Stella busca em Auerbach outros sentidos para a paixão: ‘‘é mais que o desejo, a mania ou a loucura. Ela implica sempre como conteúdo potencial, e freqüentemente predominante, o nobre fogo criador que gasta em combates os sacrifícios, e frente ao qual a sóbria razão parece por vezes desprezível” 148. Brescianni, em suas análises sobre a paixão e seu potencial criador, que impulsiona atos e gestos, possibilita a reflexão sobre a mistura entre paixão e ciência. A paixão desprende-se de seu conteúdo negativo, que arrebata o homem e o deixa sem possibilidade do entendimento de sua realidade ou julgamento, como nos colocou Bomfim, e caminha para a potencialização de novas ações. Defende-se o pressuposto de que a obra de Bomfim, fruto da paixão do escritor pelo Brasil, não a invalidou como análise da realidade à qual estava interligada. Seus escritos foram obra pensada a partir da realidade brasileira e o levou à caracterização de um Brasil que não entendia a mistura racial da qual era fruto.

A partir destas discussões, infere-se que as “visões de Bomfim além de seu tempo” ou como inviável dada a mistura entre paixão e ciência como defendem Antonio Candido, Ivone Bertonha, foi o resultado do contato entre Bomfim, a realidade brasileira e o pensamento europeu que refutava o racismo científico. Naquele momento, as teorias de inferioridade racial eram marcantes no pensamento brasileiro e, por isso, a singularidade das idéias do pensador.

Mas atente-se aos fios que levam à escrita da História do Brasil por Manoel Bomfim. No prefácio do livro “Brazil na História” Bomfim buscou encontrar na história o caráter de nação, e delineou novo traçado para essa história, em uma perspectiva de busca da igualdade entre os homens e não da legitimação das diferenças, a partir da raça, da legitimação de alguns heróis e fatos:

Representamos essa historia, em todas as formas do passado que devem substituir. Atteramol-o na nossa própria vida. Como admitir que nos podessemos subtrahir ao seu influxo? Esse passado, que só existe como vida que se continua, deve continuar, tanto quanto se irradie das nossas consciencias a tradição em que nos fizemos pois nos definimos como brasileiros [...] E o passado, subsistente no influxo, vive em cada dia um de nós, multiplica-se em effeitos que premem o presente em vez de retel-o, e o conduzem, tanto mais

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STAEL APUD BRESCIANI, p.339.

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efifcazmente quanto melhor comprehendemos o seu lineamento, e o traduzimos em orientação. 149

Isto posto, apresenta-se o entendimento sobre o contexto histórico em que Manoel Bomfim viveu, pois foi um dos personagens, entre tantos outros, que se dedicou, no período destacado, à escrita da História do Brasil, tendo como eixo de sua argumentação a construção da nação, da identidade nacional e do ser brasileiro, a partir dos conflitos raciais que se estabeleceram no processo de consolidação de uma nação antagônica, formada a partir das desigualdades político- econômicas, mas que cristalizou o imaginário social, silenciando esses mesmos traços. Nas interpretações históricas formuladas por Bomfim, encontram-se as lutas entre Brasil e Portugal, o Brasil no contexto da América Latina e a luta entre as classes em nível nacional. A sua escrita buscou se desvincular dos heróis cristalizados e trouxe para a história do Brasil novos personagens: o negro e o índio. Entretanto, por ser Bomfim homem de seu tempo, houve, em certos momentos, o pactuar com as interpretações de seus contemporâneos, ou como se vê mais adiante, a preocupação com os mesmos temas e, muitas vezes utilizou-se da linguagem corrente. Mas, ao interpretar e escrever, o fez a partir de sua paixão, mas também do olhar crítico sobre a sociedade que o circundava. Seu mérito consistiu em não buscar a pretensa objetividade positivista, em voga em seu momento, valorizando o Brasil e sua complexa realidade, em um misto de paixão e ciência.

No próximo capítulo, será feita a análise de alguns discursos do tempo de Bomfim, a partir de Silvio Romero, Nina Rodrigues e o Jornal do Commércio, para então se compreender como se deu sua ruptura com as ideias correntes e como se pode identificar os traços inovadores, mas não além de seu tempo e seu lugar.

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