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Imagens poéticas da destruição e da incompletude

4 JARDIM SECRETO DO POÇO: UMA POESIA URBANA VIVIDA

4.1 IMAGENS POÉTICAS E CORPORIFICADAS

4.1.5 Imagens poéticas da destruição e da incompletude

―Nossa obsessão atual com a novidade e a singularidade como os únicos ingredientes critérios para a qualidade arquitetônica está destituindo a arquitetura de sua base mental e experimental, tornando-a um produto fabricado do imaginário visual. Os produtos atuais (...) em geral são incapazes de tocar nossas almas (...).‖ (PALLASMAA, 2013, p. 137)

As teorias das artes legitimam a relação dual temporal entre o novo e o antigo. Louis Kahn observa que ―a criatividade surge da dialética entre o eterno e o temporário.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 138). O frescor da autêntica imagem da novidade tem uma base direta ou indireta repleta das origens, das raízes primordiais. ―A tradição é o sítio arqueológico das emoções. Uma imagem artística que não deriva desse solo mental está fadada a permanecer mera fabricação sem raízes‖ (PALLASMAA, 2013, p. 138).

A arquitetura é tanto uma arte do espaço, como uma articuladora do tempo: Ao passo que ―domestica o espaço natural e ‗selvagem‘ desprovido de sentido, confere uma medida humana ao tempo físico infinito e o transforma em um tempo cultural e humano.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 109). A cidade consta de um repertório das camadas biohistóricas, cuja boa arquitetura se presta: a compreender sua estratificação no tempo-espaço; ao juízo de valor e; à preocupação com a autenticidade, criando o fascinante diálogo entre os estilos temporais.

Além do Rio e das árvores ancestrais que comunicam suas histórias naturais, há no Jardim Secreto do Poço da Panela um acervo cultural que revela um passado misterioso, despertando a sensibilidade e a imaginação. As mensagens gravadas pelas pedras arruinadas no solo (Figura 44) nos revelam teores especiais ao imaginário da região, onde na primeira metade do século passado até, pelo menos, o fim da década de 1970, segundo moradores antigos, funcionava a Liquid Carbonic, uma fábrica de produção de gás75.

75ReunindorelatosdeJaime(morador antigo do bairro), dos jardineiros Rômulo e Fatima e do site (Disponível

em: <http://www.revistanegociospe.com.br/materia/Janela-de-oportunidade>, acesso em Abr 2019.), suspeita-se que a Liquid Carbonic produzia cilindros de ‗gás carbônico liquido‘ para fornecimento às fabricas de engarrafamento de bebidas gaseificadas – evitando ficarem chocas. Ao longo de anos, a LC representou um

Figura 44 - Ruína do Cabocó, uma peça que atendia à antiga fábrica de produção de gás da área.

Fonte: Coletivo Jardim Secreto, 2018.

―A estrutura arruinada deixou de executar a função (...) [utilitária inicial, abandonando] a razão e a racionalidade unidimensionais‖. (PALLASMAA, 2013, p. 77). A estrutura em ruína vista na foto tratava-se de um ―Cabocó‖ (que dá nome à comunidade vizinha): uma espécie de suporte aos dutos de água limpa captada do rio, canalizando-a até a fábrica (atual lote do condomínio Poço Prince) e depois retornando para o rio com os dutos da água servida da lavagem de caldeira. A interação das crianças com a ruína é um dos exemplos de participação empática que Pallasmaa sugere sobre essas imagens:

―Com sua tendência inerente para a racionalidade, perfeição e atemporalidade, os edifícios costumam permanecer fora do alcance de nossas reações emocionais e empáticas. As camadas de vestígios de uso, o desgaste e a pátina normalmente enriquecem a imagem da arquitetura e convidam nossa participação empática. As ruínas de arquitetura oferecem imagens especialmente potentes em termos de associação nostálgica e imaginação, como se o tempo e a erosão tivessem despido a estrutura de seu disfarce criado pela utilidade e pela razão‖. (PALLASMAA, 2013, p. 74)

A memória é um conteúdo vital à imaginação; é quando o sonho se conduz diretamente pelo tempo. A ruína tem seu valor, ainda que desassociada da arte. A arquitetura se associa a essas imagens quando toma uma diretriz de elogio das mesmas, como fez o Coletivo Jardim Secreto com o cabocó: ainda que até agora, aparentemente, nada tenha sido feito, só a escolha de limpeza e de conservação das peças é uma atitude artística, que ilumina sua existência.

monopólio neste mercado. Seu funcionamento no Poço da Panela deu-se até, pelo menos, o fim da déc. de 1970. A estrutura foi demolida e durante muitos anos o terreno ficou ocioso, até a chegada do atual Ed. Poço Prince.

Como dito anteriormente, diferente das imagens formais idealizadas, a poética da incompletude costuma revelar as massas profundas da matéria, associadas à imperfeição humana, ao corpo mortal em metamorfose, o que gera imaginários férteis para a criação. O efeito no meio urbano, para alguns, pode ser considerado irregular, estranho, repulsivo ou deficiente, mas, para outros, instigante e com possibilidades múltiplas.

O espaço pré-disposto a constantes transformações coletivas é uma riqueza para o desenvolvimento humano e deve ser estimulado na cidade, concebendo uma realidade ainda mais especial para as crianças, que costumam gostar de ‗fazer e desfazer‘, um tipo de brincadeira mais divertida, multissensorial e imaginativa do que um parquinho, que provê a obviedade utilitária (Figura 45).

Figura 45 - O muro ao fim do terreno do Jd. Secreto recebe pintura para estimular arte livre.

Fonte: Coletivo Jardim Secreto, 2018.

Quem nos explica sobre esse ―território do brincar‖ mais lúdico, mais transcendental e menos racional é a arquiteta e urbanista Beatriz Goulart76, que valoriza o ‗vazio urbano‘ como promissor dos jogos criantes do coletivo: ―O fazer e o desfazer que é legal e; não o fazer para sempre‖, disse ela, ao exemplificar o ritual de umas crianças que reuniram troncos de madeira pra construir um banco e, ao fim do dia, devolveram para a mata, em celebração e agradecimento.

―Destruir e construir tem a mesma importância e precisamos ter uma alma para um e para o outro.‖ (PALLASMAA, 2013, p.48). A imagem da destruição (Figura 46), segundo

76

Beatriz Goulart é diretora do Cenários Pedagógicos e do Projeto Âncora; referência em Educação Integral, Territórios Educativos, Arquitetura Escolar e metodologias participativas que buscam entender o real desejo da criança. A abordagem acima é uma interpretação do 13º encontro do programa "Diálogos do Brincar", com o tema ―O Brincar no Território Urbano‖. (Disponível em: <territoriodobrincar.com.br/biblioteca-cat/dialogos-do- brincar/dialogos-do-brincar-13-o-brincar-no-territorio-urbano-com-beatriz-goulart/>. Acesso em 23 out 2018, publicado em Out 2017. Texto e fotos: Fernanda Peixoto Miranda e Raphael Preto. Vídeo: Interrogação Filmes).

Pallasmaa, que cita Leonardo da Vinci, Sartre e outros pensadores com ideias similares, tem um poder estimulante e evoca ―dinâmicas espaciais completamente novas e sentimentos trágicos ocultos atrás da face utilitária da arquitetura (...)‖. (PALLASMAA, 2013, p. 77). Ele sugere que o impacto da destruição suscita sentimentos como empatia e compaixão, podendo também provocar rejeição, convite, familiaridade, estranheza...

Figura 46 - Após 1 ano (de Set 2017 a Ago 2018), a sementeira provisória foi abalada pelas chuvas.

Fonte: UCHOA, Raynaia, 2018.

Com cerca de um ano de vida, entre Setembro de 2017 e Agosto de 2018, após vários avisos, sinais, ameaças das chuvas fortes, o nosso berçário de mudas do Jardim Secreto do Poço se desestruturou por completo, o que já era algo de se esperar desde o princípio, já que foi erguido com a prioridade do tempo curto, em vez da qualidade da durabilidade.

O atributo da permanência arquitetônica nesta situação era menos relevante do que o processo de bioconstrução77 e aprendizagem proporcionada pelo grupo ativo no momento, algo que seria inviável na lógica de uma construção poluente e custosa. O nosso primeiro berçário ou sementeira (Figura 47) nos proporcionou a feliz oportunidade de co-criar a obra com o uso de materiais do próprio terreno. Em campo havia três touceiras de bambuzal e; folhas de coqueiro. Com isso, as varas de bambu foram coletadas sob orientação técnica do permacultor Guy Haim, montadas na vertical e na horizontal como vigas e pilares, apoiando a cobertura das folhas entrelaçadas, conforme projeto do coletivo. As matérias estavam em

77 A Bioconstrução e a Bioarquitetura estão relacionados com a Permacultura e meios produtivos ecológicos.

Não bastam as matérias serem biológicas (e, por vezes, recicladas), mas o processo deve também ser saudável para o meio social, o que leva em consideração a maior horizontalidade e circularidade entre as pessoas envolvidas, cultivando relações ganha-ganha.

estado vivo durante o manuseio, o que facilitou o entrelaçamento das palhas, um ofício conduzido principalmente pelo jardineiro-hortelão Bruno Telles. Nota-se que pouco tempo após o desmoronamento, outra ‗sementeira‘, com uso de madeira de reaproveitamento, doada por Felipe, foi erguida em substituição à antiga.

Figura 47 – Primeira sementeira do Jardim Secreto, feita com a práxis da Bioconstrução.

Fonte: MESSINA, 2017; Coletivo Jardim Secreto, 2018.

Com as imagens da matéria provenientes da natureza há uma sensação de estrutura viva, como uma criatura, que incita um diálogo harmonioso com o todo uno. Neste caso, o poder destrutivo não é tão prejudicial ao meio, já que a terra incorpora facilmente esses elementos, sendo, inclusive positivo para a reprodução de microorganismos e de lignina, especialmente se a ação humana acelerar o processo de decomposição das partes.

Todo esse contexto de uma paisagem mais dinâmica e metamorfoseante é análogo ao tempo rotativo da horta comunitária, entre a abertura de canteiros, semeadura e colheita, que repercute em efeitos com extratos, cores, densidades e texturas diferentes. Essas, no entanto, são estruturas mais sutis da natureza, que possuem um poder de evocar a surpresa e a reação estética, de modo bem diferente das imagens mais bruscas de construção e destruição.

Busca-se delinear no capítulo seguinte essa dimensão temporal imbuída no espaço incomum, cujo conteúdo estético é acompanhado de uma interjeição de surpresa. O eixo fundamental íntimo circunscreve neste capítulo a importância da primitividade da imagem; do íntimo que cabe ―por inteiro na redondeza do seu ser‖ (BACHELARD, 2008, p. 236-237).