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O senso do real e o embotamento da imaginação na era das imagens

2 IMAGINAÇÃO E A IMAGEM CORPORIFICADA

2.2 IMAGINAÇÃO E IMAGEM CORPORIFICADA PARA PALLASMAA:

2.2.1 O senso do real e o embotamento da imaginação na era das imagens

―Um dos maiores paradoxos da cultura contemporânea é que, em uma época em que a imagem reina soberana, a própria noção de imaginação criativa humana parece estar sob crescente ameaça. Parece que não sabemos mais exatamente quem produz ou controla as imagens que condicionam nossa consciência‖. (KEARNEY, 1994 apud PALLASMAA, 2013, p.14).

O mundo contemporâneo, estruturado pela velocidade comunicacional e pelos acordos geopolíticos das economias mundiais, condiciona o modo de ser da população, tornando-a mera massa de consumidores. Diante disso, somos inundados por uma enchente de imagens audiovisuais, o que leva diversos pensadores, como os franceses Guy Debord (A Sociedade do Espetáculo, 1997) e Gilbert Durand (A Imaginação Simbólica, 1988) e o prof. brasileiro Norval Baitello Jr. (A Era da Iconofagia, 2005), a concluir que atravessamos uma ‗Era das Imagens‟. O levantamento bibliográfico de Pallasma aponta que: para Ítalo Calvino há uma ‗chuva infinita de imagens‟, para Richard Kearney, um ‗vício da imagem‘, enquanto que para Roland Barthes estamos na ‗civilização das imagens‟. ―A profusão de imagens atual frequentemente resulta em uma sensação opressiva de excesso e eutroficação – uma espécie de sufocamento em um ‗Mar Sargaço de Imagens‘‖. (PALLASMAA, 2013, p. 14).

Segundo Durand (orientando de Bachelard e teórico do imaginário numa perspectiva antropológica), pode-se dizer que atualmente vivenciamos um tipo de Iconoclasmo diferente do que ficou famoso no velho mundo, cujos motivos eram religiosos e o processo se dava de forma a destruir ícones, símbolos, monumentos e até cidades inteiras, enfim, todo tipo de imagem que pudesse ser venerada e dilatadora da realidade. Para este tipo, Durand23 chama de

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Há uma profunda alienação do espírito arraigado ao longo de séculos na história do Ocidente, o que induz à má formação antropológica do imaginário humano. Gilbert Durand (França, 1921-2012) lembra que foi na Idade Média que o movimento iconoclasta ganhou força, tratando de suprimir as imagens que poderiam levar o indivíduo a um conhecimento ímpar e a uma heresia contra a igreja. Tal reflexão é profundamente exposta na obra ―A Imaginação Simbólica‖, originalmente publicada em 1964, (contexto também presente em outras publicações, como ―O Imaginário‖), na qual o francês demonstra existir outras formas e correntes iconoclásticas, como a do conceptualismo gótico ornamentalista, que esmaece a dimensão do sagrado (iconoclasmo por

―Iconoclasmo por defeito‖ (1988, p.19 e 28), pois há uma negação da imagem como fonte de saber; enquanto que o que vivemos na contemporaneidade, o autor denomina de ―Iconoclasmo por excesso‖ (1988, p. 19 e 27-28), pois há um esvaziamento na pureza das imagens ao multiplicarem-se a tal ponto que se tornam frívolas, banais (ver APÊNDICE B).

A indústria vem reproduzindo ininterruptamente uma enxurrada de imagens mercadológicas, imagens espetaculares, imagens meramente formais, imagens apassivantes e/ou imagens vazias que colonizam, cada vez, mais as nossas paisagens físicas e mentais, refletindo em uma realidade controvertida e deslocada. Esse fluxo excessivo reforça a dubiedade sobre o que é real e o que é imaginário, vindo a sabotar nossa autêntica capacidade de perceber e imaginar, assim como enfraquece nossos sentimentos éticos e empáticos.

―(...) Como sugere Richard Kearney, (...) ‗a realidade se tornou um reflexo pálido da imagem‘. Na verdade, na vida cotidiana, nas práticas comerciais e políticas e em toda a esfera do entretenimento em expansão, a imagem frequentemente domina ou substitui a realidade – e ‗o real e o imaginário se tornaram quase impossíveis de distinguir‘. Hoje, a realidade politica se baseia, com mais frequência, em um imaginário cuidadosamente controlado (...). Na verdade, a noção de ‗realidade‘ foi totalmente relativizada; precisamos especificar a realidade de quem, e em que contexto, estamos falando. A ‗realidade‘ propriamente dita é, filosoficamente, uma noção extremamente controversa, mas nunca foi tão ambígua e infundada como hoje.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 16)

Nossa realidade atual é condicionada pelos homens e instituições que se firmaram com as bases do racionalismo, acabando por criar a sociedade apartada da Natureza. Na opinião de Pallasmaa (2013, p. 23)24, a noção do real parece buscar uma baliza (não pode expandir-se e relativizar-se infinitamente) cada vez mais associada a uma perspectiva biológica com o palimpsesto das camadas histórico-culturais entre passado, presente e futuro.

O termo ―bio-historicista‖, utilizado pelo autor, pode fazer mais sentido, já que o nosso corpo se adapta, com o passar dos anos, às situações culturais, entretanto a humanidade parece se distanciar cada vez mais da tradição e da natureza, priorizando inovações em áreas como a robótica e tecnologias de ponta que acabam favorecendo o contexto das negligências

excesso) e as correntes dos racionalismos aristotélico e cartesiano (iconoclasmo por defeito). O cartesianismo

chega a ser considerado um ―iconoclasmo radical‖, quando ―o simbolismo [perde] o seu direito a cidadania em filosofia. (...) [e] assegura o triunfo do signo sobre o símbolo. A imaginação como, aliás, a sensação é refutada por todos os cartesianos como a mestra do erro‖ e da falsidade (DURAND, 1993, p. 21).

24 ―A noção do real em nossos contextos de vida não pode ser expandida e relativizada infinitamente; somos

seres biológicos e históricos, cujos sistemas físicos, metabólicos e neurais inteiros foram sintonizados ao máximo de acordo com a realidade de nossos fatos físicos, ecológicos e biológicos. A realidade humana, bem como nosso futuro, está inegavelmente arraigada em nosso passado biológico e cultural – e também em nossa sabedoria com relação ao futuro‖ (PALLASMAA, 2013, p. 23).

sócioambientais. ―(...) As imagens ajudaram a humanidade a libertá-la de imperativos biológicos escravizantes. Mas será que nos tornamos vítimas de nossa própria imaginação? (...) acredito que sim‖ (PALLASMAA, 2013, p. 23).

Juhani questiona sobre os efeitos da Internet e da digitalização na reprogramação da cognição humana e; lembra que até mesmo alguns estudos neurológicos e outras pesquisas avançadas são usados para fins de propaganda e condicionamento ideológico. ―A publicidade transforma o consumo em um substituto para a democracia. A escolha do que comer (ou vestir ou dirigir [ou, ainda, de onde residir]) toma o lugar de escolhas políticas significativas.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 20). A própria arquitetura, que estrutura a carne do mundo e fundamenta nossa existência tornou-se comoditizada25, entrando em conflito com as estratégias mercadológicas de consumo instantâneo, obsolescência programada e substituição recorrente. ―As primeiras visões da arquitetura refletiam uma forma viável de cultura e estilo de vida, enquanto as visões que, hoje, são geradas por computador, normalmente aparecem como meros exercícios gráficos, sem a sensação da vida real.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 19).

Ao que consta, tornamo-nos reféns da nossa imaginação. Nossa espécie biológica é manipulada pelas próprias imagens, que transformam a vida num mundo ilusório de ‗faz de conta‘. As imagens arquitetônicas imutáveis, que colonizam todo o espaço habitado pela humanidade, ―ocultam questões fundamentais e decisivas de estilo de vida e de valor, além de embaçarem a visão de um futuro ético e biologicamente saudável‖ (PALLASMAA, 2013, p.19), tornando-se uma retórica com sentido esvaziado.

―A arquitetura se atrofia, ―se transforma em mera estética visual quando se distancia dos motivos que a originaram (...). O significado de arquitetura advém inconscientemente de baixo, de seu uso e tarefa existencial, e não pode ser projetado por uma operação puramente conceitual ou metódica pelo projetista ou até mesmo pelo computador (...). Quando o enigma da existência se perde, a arquitetura se torna uma fabricação e uma construção sem sentido, e, na melhor das hipóteses, uma demonstração de virtuosismo técnico e visual. (...) Um verdadeiro insight de arquitetura sempre inclui o antigo e o novo, o primitivo e o refinado‖. (PALLASMAA, 2013, p. 101-103).

―(...) mediante uma arquitetura da imagem comercializada e uma instigante e sedutora arquitetura da imagem na retina, a tarefa do arquiteto crítico, profundo e

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―(...) existem, inclusive, exemplos de arquitetura ‗franqueada‘, isto é, projetos comercializados pelos escritórios globalizados de arquitetos famosos que aspiram à expressão de uma marca identificável. Os grandes impérios da história das civilizações sempre marcaram seus territórios com uma arquitetura específica. A arquitetura, por sua vez, sempre promoveu o poder. A arquitetura da imagem globalizada da atualidade reivindica agressivamente o território da economia do mercado globalizado, que é a fase mais recente do capitalismo mundial.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 20)

responsável é criar e defender o senso do real. (...) Quando nossos contextos se transformam em fachadas temáticas e fabricadas de uma cultura fictícia (...), o dever da arquitetura responsável é defender a autenticidade e a autonomia da experiência humana.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 22-23)

Logo se percebe que a autenticidade da imaginação humana é influenciada pelo meio que a excita, pelas imagens que são internalizadas corporalmente. As imagens arquitetônicas tanto podem libertar o pensamento para a autêntica criação, quanto podem funcionar como veículo de controle e opressão, disfarçando tiranias políticas e outras intenções cínicas, com uma suposta ordem e beleza sentimentalmente impelida.26 ―A beleza manipuladora [tematizada, vazia e ingenuamente simbólica das imagens de arquitetura da atualidade] muitas vezes mascaram uma vergonhosa exploração econômica, ideológica e cultural.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 114-115). Pallasmaa (2013, p. 81), em outra passagem sobre a imagem ilusória, comenta, ainda, sobre o excesso do vidro nas cidades, uma matéria que tanto evoca ―democracia, igualdade e transparência, (...) [quanto] controle voyerista, poder corporativo, segregação e até mesmo perda de visão‖. Sobre a ilusão, o Narciso, o espelho, a água e os sonhos, já dizia Bachelard:

―Não se sonha profundamente com objetos. Para sonhar profundamente, cumpre sonhar com matérias. Um poeta que começa pelo espelho deve chegar à água da

fonte se quiser transmitir sua experiência poética completa. A nosso ver, a

experiência poética deve ser posta sob a dependência da experiência onírica. (1998, p. 24).

Nesse sentido, Juhanii cita que há duas categorias opostas de imagens (PALLASMAA, 2013, p.21): a) imagens de controle (―determinam, manipulam e condicionam‖), exemplificadas pelas criações ideológicas e/ou mercadológicas, que nos anestesiam, nos diminuem e nos algemam ao controle das autoridades e; b) imagens de emancipação (―emancipam, atribuem poderes e inspiram‖), exemplificadas pelas criações poéticas e artísticas, que potencializam a subjetividade, a integridade, a autonomia e a liberdade individual.

Por conseguinte, as imagens operam juntas, mútua e opostamente, criando um canal nervoso de comunicação que manipula nossa própria concepção de história, entre datas festivas, guerras, pactos institucionais, construções, descobertas, celebridades, etc., prevalecendo o relato dos poderosos. Isso definitivamente altera o nosso senso do real.

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―Há uma diferença fundamental entre a beleza como uma experiência individual genuína e autônoma e uma convenção social de estilo e estetização explícita.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 114). Assim, é emergente reconectar as dimensões da beleza e da estética à essência ética.

―Atualmente as noções de realidade e imaginação estão subvertidas. A fusão da realidade com a fantasia, do fato com a ficção, de preocupações éticas com estéticas, do passado com o futuro, é uma das estratégias fundamentais das práticas políticas e econômicas atuais. Para Kearney, a situação cultural é realmente crítica: ―Encontramo-nos em um impasse no qual a própria relação com entre a

imaginação e a realidade não parece apenas estar invertida, mas completamente subvertida.‖ [KEARNEY, Richard, 1994, p.3]. Contudo, o mundo da arte também é,

frequentemente, um mundo pré-narrado e manipulado de modo magistral. A realidade financeira de que, atualmente, nações inteiras estão vivendo a crédito é outra indicação alarmante da aceleração da vida e do controle de realidades fictícias; cada vez mais, vivemos no tempo futuro e perdemos a noção do presente.‖ (PALLASMAA, 2013, p. 22)

Desde os primórdios da humanidade, a tarefa cultural da narração de histórias, da literatura e da arte era produzir e preservar ―outro nível da realidade‖ – para usar uma noção de Herbert Marcuse [1964, p.57] – isto é, o nível dos sonhos, crenças, mitos e ideais, com o objetivo de criar um contraponto mental essencial com a experiência da realidade cotidiana, que é mundana e, geralmente, deprimente. Em décadas recentes, porém, a responsabilidade ética dos artistas e escritores parece ter se invertido; hoje, sua tarefa é fortalecer nossa experiência do real. (...)‖.PALLASMAA, 2013, p. 22)

Em outros contextos, o finlandês sugere que é preciso reconectar-se às essências originárias, pois a autêntica novidade, diferente da estetização tendenciosa, compila as dimensões temporais entre passado, presente e futuro, mantendo, em todo o caso, o frescor da obra e o bom senso da realidade. ―O espírito do principio é o momento mais maravilhoso para qualquer coisa, a qualquer hora. Porque no princípio está a semente de todas as coisas que se seguirão. (...)‖ (KAHN, 1959 apud PALLASMAA, 2013, p. 102)

Seguindo a eloquência bachelardiana do devaneio poético, é preciso criar condições primitivas seguras para pensar a positividade psíquica da imagem, logo, este trabalho se propõe a lançar, fenomenologicamente, imagens de emancipação, abrindo uma dimensão de liberdade imaginativa mais que subjetiva, transubjetiva, e ecologicamente coesa.

3 JARDIM SECRETO DO POÇO: ENTRE O OBJETIVO E O TRANSUBJETIVO