• Nenhum resultado encontrado

Imaginário e realidade social

No documento Fernanda da Silva Marinho Soares (páginas 49-52)

2. Mosaicos: recortes culturais de Ravena

2.1. Imaginário e realidade social

O imaginário, parte constitutiva e constituinte da realidade social, não apenas forja todo fragmento passado com o qual o historiador possa vir a trabalhar, como também está presente na própria representação que o pesquisador fará do objeto analisado; ele reúne em si memórias individuais e coletivas sob um único signo.

O imaginário trabalha um horizonte psíquico habitado por representações e imagens canalizadoras de afetos, desejos, emoções, esperanças, emulações; o próprio tecido social é urdido pelo imaginário – suas cores, matizes, desenhos reproduzem a trama do fio que os engendrou. O imaginário seria condição de possibilidade da realidade instituída, solo sobre o qual se instaura e instrumento de sua transformação.5

3

PESAVENTO, Sandra Jatahy. ‘Clio e a grande virada da História’. Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 15.

4

PESAVENTO. Op. Cit., p. 16.

5

Para Pesavento, o imaginário seria o conjunto de idéias e representações coletivas que construíram, em todas as épocas, um sentido para o mundo.6 Este sentido é histórico e datado, já que a sociedade de cada época constrói sua representação, sua idéia do real. Há, no entanto, uma relação paradoxal entre o real e o imaginário, já que, ao mesmo tempo em que o imaginário constrói o real, é construído por ele, criando a idéia de imagens/estruturas permanentes e mutáveis. “O imaginário está nos símbolos, ritos, crenças, discursos e representações alegóricas. É representação, evocação, simulação, sentido e significado”7.

Gilbert Durand aponta o imaginário como o conjunto das imagens e suas relações, que constituiriam o pensamento humano e este, por sua vez, só poderia ser exercido, efetivamente, por meio de imagens, que se consolidam em símbolos8. Estas imagens são criadas em função das trajetórias de cada indivíduo e, por isto mesmo, são capazes de gerar outras novas imagens, a partir do contato interpessoal e intercultural. A imagem cria para si diversos sentidos, torna-se etérea por não guardar um significado apenas, mas é fonte de vários outros.

Esta imaginação simbólica se cria a partir de um signo que não pode mais se referir a um objeto sensível, mas a algo inacessível, epifânico9.

A imagem pintada, esculpida, o símbolo iconográfico é constituído de múltiplas redundâncias: ‘cópia redundante de um lugar, de um rosto, de um modelo, mas também representação, pelo espectador, daquilo que o pintor já representou tecnicamente10.

A redundância confere ao símbolo o aspecto ritualístico necessário para a instauração dos sentidos e para a presentificação de ausências.

Não seria possível reviver um momento, um lugar, um valor, mas eles podem ser eternizados em imagens e, ao mesmo tempo, re-significados a cada olhar. “Na construção imaginária do mundo, o imaginário é capaz de substituir-se ao real concreto, como um seu outro lado, talvez ainda mais real, pois é por ele e nele que as pessoas conduzem a sua

6

PESAVENTO, Op. Cit. p. 43.

7

PESAVENTO, Sandra Jatahy. ‘Em busca de uma outra História: imaginando o imaginário’. In: Revista

Brasileira de História. Representações. Vol. 15, n.º 29. São Paulo: Contexto/ANPUH, 1995, p. 27.

8

Cf. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 13-63.

9

Exprime-se pela letra, é sufocado por ela, mas só existe além dela.

10

existência”11. O real, no entanto, é apenas o referente, um ponto de partida, em que o imaginário está calcado, mas não é o seu reflexo. É no imaginário que o mundo constrói suas representações, pautado em experiências e trajetórias individuais ou coletivas.

O imaginário pressupõe, de acordo com Lucian Boia12, um registro para que possa ser alcançado e, então, internalizado e, quiçá, recriado. Isto retrata, novamente, o grande paradoxo do imaginário, que se apresenta perene e, ao mesmo tempo, dinâmico. Os significados só poderiam ser apreendidos a partir das necessidades psicológicas dos espectadores e só poderiam ser conhecidos por suas respostas. “The meanings are not in the symbols. They are in society and, therefore, in men”13. Os símbolos existem como tal porque há um reconhecimento de sua significação.

Consumption is a stage in a process of communication, that is, an act of deciphering, decoding, which presupposes practical or explicit mastery of a cipher or code. In a sense, one can say that the capacity to see (voir) is a function of the knowledge (savoir) […]. A work of art has meaning and interest only for someone who possesses the cultural competence, that is, the code, into which it is encoded.14

O processo de internalização é íntimo pois depende, como Bourdieu tratou, da capacidade de compreender aquilo que se quis expressar. Pictura est laicorum literatura15 e, assim, a compreensão do que era o novo Império Romano Cristão dependia da leitura das imagens e do entendimento dos símbolos. Pela interpretação das imagens dar-se-ia a transfiguração simbólica na imaginação. “A virtude essencial do símbolo é a de assegurar, no seio do mistério pessoal, a presença mesma da transcendência. […] Todo simbolismo é, portanto, uma espécie de gnose, isto é, um processo de mediação através de um

11

PESAVENTO. História & História Cultural. p. 47-48.

12

Apud Pesavento, Op. Cit., p. 46.

13

“Os significados não estão nos símbolos. Eles estão na sociedade e, portanto, nos homens.” (tradução livre). EDELMAN, Murray. ‘Introduction’. In: The symbolic uses of Politics. Urbana, Chicago e Londres: University of Illinois Press, 1977, p. 12.

14

A internalização é um estágio no processo de comunicação, que é, um ato de decifrar, decodificar, que pressupõe domínio prático ou explícito de uma cifra ou código. De certa forma, pode-se dizer que a capacidade de ver (voir) é uma função do saber (savoir). Um trabalho artístico tem significado e mostra-se interessante apenas para aquele que tem a competência cultural, que é, o código, no qual o trabalho está codificado. (tradução livre). BOURDIEU, Pierre. ‘Introduction’. In: Distinction: a social critique of the

judgement of taste. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1998, p. 2-3.

15

A pintura é a literatura dos leigos. (tradução livre). In: ECO, Umberto. ‘Sexta’. In: O nome da Rosa. Rio de Janeiro: O Globo, 2003, p. 48.

conhecimento concreto e experimental”.16 É, todavia, na experiência do ritual que esta mediação ocorre. É pelo ritual que a liturgia se reafirma, que os valores e virtudes do novo Império se assentam.

Ritual is motor activity that involves it participants symbolically in a common enterprise, calling their attentions to their relatedness and joint interests in a compelling way. It thereby promotes conformity and evokes satisfaction and joy in conformity. (…) The motor activity, performed together with others, reassures everyone that there are no dissenters and brings pride and satisfaction in a collective enterprise. A simplified model or semblance of reality is created, and facts that do not fit are screened out of it. Conformity and satisfaction with the basic order are the keynotes; and the acting out of what is to be believed is a psychologically effective mode of instilling conviction and fixing patterns of future behavior.17

No documento Fernanda da Silva Marinho Soares (páginas 49-52)