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II. Aproximações Conceptuais em Análise aos Filmes de Tarkovsky

1.   Imaginação e Angústia

A interseção entre o real e o imaginário é explorada neste filme de forma mais notória do que nos anteriores (Ivanovo Detstvo e Andrei Rublev), sendo que a subjetividade humana está, segundo Nariman Skakov, em The Cinema of Tarkovsky, representada através da “dicotomia entre o real e rígido espaço da Terra e a alucinatória e fluída superfície do gigante planeta-oceano Solaris, no qual não existe aparente estabilidade temporal ou espacial”69. Esta separação, que faz corresponder os elementos espaciais onde decorre a narrativa - Solaris (imaginação) e Terra (real) -, com as vertentes espiritual e material do ser humano, constitui uma manifestação da consciência humana, e respetivas possibilidades, em confronto com a necessidade.

Segundo Kierkegaard, a identidade humana forma-se na subjetividade individual, por oposição às imposições do mundo exterior, por ser a imaginação [‘Phantasie’], através da conceção de possibilidades infinitas, que define primordialmente a existência estética, e distingue o indivíduo do real objetivo. Numa entrada de um caderno de 1854, Kierkegaard escreve que a “imaginação é o que a providência divina utiliza, de forma a manter o Homem cativo em realidade, em existência, levando-o longe o suficiente [...] E quando a imaginação os ajudou a chegar tão longe quanto devem estar – então a realidade começa genuinamente” (JN 9, 476). A imaginação constitui, assim, um elemento de encontro com a própria realidade, não somente no plano estético, mas também ético. Em The Sickness Unto Death, Anti-Climacus diferencia um tipo de desespero promovido pela falta de imaginação, de um outro, caracterizado pela abundância da mesma na vida do indivíduo. O autor afirma que “a imaginação é o meio para o processo de infinitização;                                                                                                                

não é uma capacidade como são as outras [...] ela é a capacidade instar omnium [para todas as capacidades]” (SUD, 30-31), ou seja, a imaginação constitui a base da consciência humana através da criação de possibilidades infinitas no espírito. A tendência do indivíduo para alimentar a imaginação pode levá-lo a afastar-se cada vez mais do seu ‘eu’, conduzindo a sua existência para a “infinitização abstrata ou isolamento abstrato” (SUD, 32). Mas, por outro lado, a ausência de imaginação leva ao excessivo materialismo e valorização do que é externo à consciência humana e pertence apenas ao plano social. A personagem de Kris é-nos apresentada, no início do filme, como um semelhante protótipo de desespero, que se distingue pelo ceticismo e impermeabilidade ao conteúdo da imaginação.

A água constitui em Solyaris um elemento central, sendo que a passagem do universo objetivo ao imaginário se realiza tendo em conta este elemento, que Kris toca quando está em Terra, mas que lhe é inalcançável no Oceano. Thorsten Botz-Bornstein salienta que o “uso da água como instrumento artístico por Tarkovsky, que ajuda a transformar a realidade em sonho, aparenta estar também em concordância com o conceito de tempo no sonho”70. Haufniensis afirma, em The Concept of Anxiety, que é através da imaginação que “a eternidade é inserida no tempo”, adquirindo um “efeito encantador” (CA, 184), que consiste em tornar ambígua a distinção entre sonho e realidade. “O perpétuo espreita esperançosamente, sonhadoramente, maliciosamente o momento” (CA, 184), refletindo esteticamente a síntese humana, e fazendo nascer no indivíduo a sua relação com o absoluto. O ‘sonho’ é a forma pela qual o ‘eu’ é estabelecido em si mesmo, traduzindo-se no indivíduo como algo objetivo. A imaginação, e decorrentes possibilidades consideradas pelo espírito, dão vida à projeção do ‘eu’, que se suspende quando a mesma é interrompida. Haufniensis faz, a este respeito, uma analogia entre o sono e a vigília: “Acordado, a diferença entre mim e o outro é estabelecida; ao dormir, é suspensa” (CA, 51). Relacionando este aspeto com o filme de Tarkovsky, encontramos Kris mergulhado num sonho no qual a sua projeção do ‘eu’ está presente em todas as suas possibilidades através de Hari – “o espírito está presente, mas como imediato, como sonho” (CA, 53).

Gerada no seio do indivíduo, por meio da síntese entre possibilidade e necessidade, a oposição entre o real e o imaginário constitui uma dualidade apresentada

                                                                                                               

por Kierkegaard, que nos permite interpretar a conceção de ‘má-fé’ (‘mauvaise foi’) de Sartre71. Podemos afirmar que Kris se encontra em ‘má-fé’ ao longo das suas primeiras interações com Hari, relação que dá expressão ao desespero kierkegaardiano. Kris quer ver-se livre da sua consciência, ignorando os elementos físicos que, devido à ação do Oceano de Solaris, lhe provam a existência de Hari. Esta consiste, segundo Skakov, numa “perceção subjetiva da Hari real, constituída a partir de fragmentos do subconsciente de Kris”72, bem como num “produto da consciência culpada”73 do mesmo. Ele é exposto ao seu próprio desespero de forma literal, tanto que poderia, como sugere Haufnienses, questionar-se: “Estou a sonhar, ou é a eternidade que me sonha?” (CA, 184). A angústia (‘angest’), que o leva a reconhecer a sua permanência em desespero é ilustrada, no contexto do filme, por lutas reais e tentativas de assassinato frustradas que provam a permanência em ‘má fé’ do protagonista, bem como dos restantes tripulantes da estação. Kris tenta remover da sua vida uma entidade externa, como se de um parasita se tratasse, sem se aperceber que essa entidade faz, na verdade, parte de si mesmo. Solyaris é uma ilustração do processo pelo qual passa o indivíduo que desconhece a origem da sua angústia e se debate consigo próprio.

No capítulo Kierkegaard and Existencialism: From Anxiety to Autonomy da obra A Companion to Kierkegaard, K. Brian Söderquist afirma que “o ‘eu’ notifica-se a si mesmo da sua condição de liberdade e responsabilidade pelas suas ações, mesmo que não esteja completamente consciente disso”74, ou seja, mesmo que o Homem se encontre num estado de alienação profunda, a sua ilusão não pode perseverar, pois a angústia encarrega- se de tornar presente a sua responsabilidade para com o espírito. A mesma funciona como um objeto de desejo e repulsa para o indivíduo que nela se refugia, mas que se apercebe da impossibilidade de nela se deixar permanecer. Tal como Haufniensis afirma em The Concept of Anxiety, o Homem “afundou-se em angústia, que amou, não obstante temê- la” (CA, 52), pois, apesar de esta ser um elemento natural ao ser humano, fá-lo proceder ao conforto consigo mesmo como se de uma entidade externa se tratasse. Tal como a angústia é descrita por Haufniensis como um sentimento paradoxal que o Homem deseja e repele simultaneamente, a personagem de Hari, em Solyaris, é, de acordo com Skakov, “um ser inquietante: constitui conforto para Kris como imagem de esposa amada, e ao                                                                                                                

71 Stewart, 2015, p. 86. 72 Skakov, 2012, p. 86. 73 Idem, p. 89.

mesmo tempo desconforto por ser um simulacro físico de alguém que já morreu”75. Esta analogia assenta na perfeição na filosofia existencial de Kierkegaard, oferecendo um palco para a materialização dos fenómenos do consciente humano que o filósofo descreveu.

O espírito em angústia lida consigo mesmo, ou com aquilo a que Haufniensis chamou de “poder hostil” que perturba constantemente a relação entre corpo e alma. Impossibilitado de abandonar o poder que ama, mas incapaz de o amar exatamente por lhe ser hostil, o Homem encontra-se em paradoxo, e nisso mesmo consiste a sua existência em espírito. O autor refere que, “ao sonhar, o espírito projeta a sua própria realidade. Porém, esta é um nada. Mas a inocência vê sempre este nada fora de si” (CA, 50). A recusa de Kris em reconhecer a presença de Hari, transforma-se na tentativa de a aceitar objetivamente – exercícios que o levam a experienciar simplesmente diferentes graus de desconforto. Solyaris é um reflexo do que se esconde na consciência do ser humano, que poderia passar toda a sua vida sem se confrontar a si mesmo e sem tomar uma única decisão: “A realidade do espírito surge constantemente como uma forma que tenta a sua possibilidade, mas desaparece assim que esta a tenta alcançar, é um nada que só pode provocar desconforto” (CA, 51). O indivíduo vê-se mergulhado na angústia, um estado, que, como já vimos, é simultaneamente hostil e reconfortante. Aplica-se a Kris a passagem do evangelho (João 1:13-14) que dita “Cada Homem é tentado por si mesmo” (CA, 58), citada por Haufniensis em The Concept of Anxiety.