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II. Aproximações Conceptuais em Análise aos Filmes de Tarkovsky

2.   Sacrifício e Fé

O título Offret, faz uso do conceito proveniente do nórdico antigo e obsoleto ‘offr’, próximo ao dinamarquês ‘ofre’, que significa uma oferenda à divindade. Traduz para o português como ‘sacrifício’, palavra de origem latina que significa o realizar de um ato venerável - ‘sacer’ significa ‘sagrado’ e ‘facere’ significa ‘fazer’. Na contemporaneidade, ‘sacrifício’ significa o abrir mão de uma coisa em prol de algo mais importante. O cineasta diz-nos que o filme é uma parábola (ST, 219) que pode ser interpretada de várias formas, comparando este a Nostalghia, sendo que tanto Domenico como Alexander “carregam a marca do sacrifício” (ST, 222), que consiste numa espécie de oferta de si mesmos no sentido cristão. Segundo Tarkovsky, “se alguém está preparado para se sacrificar, então pode ser chamado de crente” (TI, 180). Alexander sacrifica-se a si mesmo, e exige o sacrifício de todos os que o rodeiam, o que é considerado injusto e absurdo, mas                                                                                                                

Tarkovsky acredita que este ato sacrificial constitui a salvação do personagem: “Sem dúvida que aos olhos de todos ele está perdido; mas o que é absolutamente claro é que ele é salvo” (TI, 180). Ao falar do sacrifício do indivíduo como necessário para ultrapassar o ‘nivelamento’ da ‘era presente’, Kierkegaard expressa uma semelhante posição, afirmando que “aqueles que não realizaram o salto vão interpretar o ato de sofrimento do sujeito anónimo como a sua derrota, e aqueles que realizaram o salto terão uma vaga ideia de que essa foi a sua vitória” (TA, 109). O ‘salto’ de fé, como já vimos, é condição para que o indivíduo veja através da sua subjetividade em direção à sua salvação, e, em última análise, só aquele que se sacrifica a reconhece em si mesmo. O sacrifício de Alexander recorda-nos ainda do sacrifício de Isaac, feito por Abraão, pois o personagem não sacrifica apenas a sua família, mas o seu primogénito, maior objeto do seu amor. Tal como Johannes de silentio afirma em Temor e Tremor, “a fé é um paradoxo monstruoso” que “começa precisamente onde o pensamento acaba” (TT, 110) e cujo compromisso ético se afasta daquele que é tido como comum pela sociedade. A fé de Abraão é um fenómeno interior que resulta da intimidade entre o indivíduo e o seu criador, e é essa mesma fé que encaminha Alexander para o sacrifício.

Kierkegaard distingue entre o tipo de auto-renunciação que é puramente humana e que torna o homem num exemplo de sabedoria e coragem perante os outros, e o tipo de auto-renunciação cristã, que consiste num abandono dos desejos egoístas e ambições pessoais em nome do bem por parte do indivíduo, submetendo-se, assim, “a ser abominado quase como um criminoso, desprezado e ridicularizado” (WL, 188), sofrendo todos os tormentos necessários à defesa da dos seus valores, que aceita de livre vontade. Alexander entrega-se a um sacrifício espiritual deste tipo, que não pode ser compreendido pelos seus contemporâneos. Este é um ato que, paradoxalmente, se aproxima daquele que é descrito como o ato de amor na oração inicial de Works of Love, na qual Kierkegaard afirma que este é “sincero na auto-renunciação, impelido pelo amor ele mesmo, e, por essa mesma razão, não reclama qualquer compensação”. O amor e o sacrifício caminham de mãos dadas na religião cristã, tal como é explicito a partir da paixão de Cristo, na qual a solicitude do amor está presente nos sofrimentos físicos do salvador: “um amor que faria tudo, sacrificar a sua vida pelo outro, encontra expressão em algo que se assemelha ao mais extremo tipo de crueldade” (PC, 137). O louvor a Deus, segundo o filósofo, deve ser feito em “desinteresse sacrificial” (WL, 336), que consiste no exercício de o indivíduo “se tornar nada perante Deus”, “um servo inútil” (WL, 336). A auto-renunciação consiste

no abandono do momento presente e do imediato (WL, 339), podemos dizer também – de todos os aspetos materiais e pragmáticos da vida, e que se tornam infinitamente pequenos em face do divino. Ao abandonar a sua família em sinal de amor e entrega espiritual, Alexander renuncia ao prazer e conforto materiais, para se poder salvar através do eterno e intemporal.

Se existe um tipo de herói presente nos filmes de Andrei Tarkovsky, ele é o homem que se submete ao sacrifício e que procura a salvação, numa luta incompreendida pelos seus contemporâneos, e frequentemente secreta, manifesta-se apenas na interioridade do indivíduo. Personagens como Andrei Rublev, Kris (Solyaris), Stalker, Domenico (Nostalghia) ou Alexander (Offret) são exemplos disso mesmo, constituindo exemplos bastante díspares, mas complementares de uma aproximação ao ‘cavaleiro da fé’ de Kierkegaard. Apesar de as suas ações se transporem de forma física no mundo, e não constituírem apenas um universo interior do indivíduo, estas manifestações ilustram a interioridade do indivíduo através da imagem. Os personagens de Tarkovsky existem no processo de ‘se tornarem’ em algo, de ultrapassarem o desespero em que se encontram, e de desejarem a salvação espiritual. O sacrifício é a expressão da sua individualidade, e poderiam afirmar para si mesmos, tal como Johannes Climacus escreve em Concluding Unscientific Postscript: “Somos todos sofredores, mas alegremente no nosso sofrimento – isto é o que nós ambicionamos” (CUP, 438). O sofrimento esconde no crente uma alegria e amor imensos, incomunicáveis.

Tarkovsky descreve, em Sculpting in Time, a arte como “um ato inconsciente, que ainda assim reflete o verdadeiro significado da vida – amor e sacrifício” (ST, 239). A arte considerada como sacrifício por Tarkovsky117, reflete a posição do cineasta, que defende que a criação artística consiste numa aproximação ao divino. A expressão da fé de Andrei Rublev é feita através da arte, e o seu sacrifício constitui, em parte, o facto de executar os ícones de forma branda e esperançosa, quando a sua vida foi marcada pelo desespero e ruína. De outro modo, a performance de Domenico ao pôr fim à sua vida consiste também numa expressão materializada comparável à arte, que é demonstrativa das características do espírito do personagem. A arte que se transmuta na vida destes personagens é prova da sua entrega espiritual, e observamos aqui a ambiguidade existente entre arte e vida para o ‘poeta religioso’ (SUD, 77) que é, simultaneamente, um ‘cavaleiro da fé’.