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Imigração e precariedade – A alternativa solidária

No documento Na terra de ninguém: os outros protagonistas (páginas 100-108)

4. ESTUDO DE CASOS – OS OUTROS PROTAGONISTAS

4.2 Quem é quem na terra de ninguém

4.2.3 Imigração e precariedade – A alternativa solidária

Graças também aos resultados preliminares de um inquérito por questionário aplicado no âmbito de um projecto em curso no DINÂMIA-CET89 a uma amostra representativa de cerca de 780 trabalhadoras domésticas nacionais e imigrantes foi possível compreender a relação estreita entre estes segmentos do mercado de trabalho, sobretudo em núcleos familiares imigrantes. Os dados que nos foram disponibilizados mostram que para o universo inquirido de trabalhadoras domésticas a percentagem de cônjuges empregados na construção civil é muito superior nas categorias que nos encontramos a trabalhar. De acordo com a nossa leitura, estes são valores que traduzem uma realidade de insistente precariedade associada a determinadas categorias sociais, nomeadamente a de imigrante. Este é um cenário de gravidade social acrescentada justamente pela concentração de agregados familiares em sectores profissionais desqualificados e precários, como se pode ver no gráfico 2:

Gráfico 2:Cônjuges de trabalhadoras domésticas empregados na construção civil por nacionalidade (%).

Fonte: Projecto “Trabalho Doméstico e Trabalhadores domésticos: Perspectivas Interdisciplinares

e Comparadas”, com tratamento próprio.

89 “Trabalho Doméstico e Trabalhadores domésticos: Perspectivas Interdisciplinares e Comparadas”

Dada a natureza destes trabalhos, e de uma maneira geral, muitos dos nossos interlocutores encontram-se numa posição de forte vulnerabilidade. No caso dos trabalhadoras imigrantes quando numa relação que à partida já é desequilibrada, o empregador tem o poder de assumir o controlo sobre a vida do trabalhador e sobre a sua pessoa. Vários estudos demonstraram que, desde há vários anos, o sector da construção civil e obras públicas português é marcado por uma profunda informalidade, que afecta de igual modo parte da mão-de-obra nacional ou os trabalhadores imigrantes Esta informalidade é sentida a diversos níveis sendo de destacar os seguintes: a ausência parcial ou total de vínculos contratuais, a ausência de contribuições para a segurança social e a precarização das condições de trabalho. Uma vez mais essa foi uma realidade confirmada pelas nossas entrevistas:

A dificuldade é várias, agora neste momento é emprego que há, temos dificuldade e pagamento também, o patrão não paga, passa mês e meio sem pagar e andamos […] assim.

José, Trabalhador Cabo-verdiano

Conforme as condições de trabalho que o patrão tiver. Ele é que vai dizer se vai pagar por horas, ao fim do dia, se é por semana, ou por mês, ele é que vai dizer as condições […] nunca me deram contrato. Não. Inclusive já um ano e tal que estou a trabalhar com o mesmo patrão e não dão contrato, por que diz as coisas estão em crise, as coisas que não estão boas […]

Nelson, Trabalhador Cabo-verdiano

[…] e dai agora estou preocupada com o meu marido, ele já tem três anos que ele trabalha […] Trabalha ora sim ora não, trabalha assim. Nas obras, mas sem patrão. Ele trabalha assim: hoje, amanhã, uma semana, dois meses, um mês, e pronto e parou assim dois meses, três meses parado, e trabalha quinze dias, vinte dias, um mês e pára, só isso. E a residência dele já esta vencida e dai agora nós fez marcação e foi na Reboleira eles não me atendem nem a mim nem ao meu marido.

Guilhermina, Trabalhadora Cabo-verdiana

O sector da construção civil, dificilmente deslocalizável, tende a procurar trabalhadores mais baratos, passando obviamente pelo recrutamento de mão-de-obra

imigrante em situação regular e/ou irregular. Também a questão da “tripla discriminação90” no caso das trabalhadoras domésticas parece ser confirmada e é resultado da conjunção das variáveis ‘género’, ‘classe’ e ‘nacionalidade’ (mulheres, estrangeiras, pertencendo à classe trabalhadora), e pela pertença a alguns grupos étnicos. A vulnerabilidade e a ausência de contratualizações explícitas abre espaço a violações do horário de trabalho e dos níveis salariais. Vejamos a este propósito o que nos dizem as nossas entrevistadas:

É assim, vamos começar com uma casa, que tinha de trabalhar dois dias por semana, segunda e na quinta. Quando foi dia de passar a ferro e mudar as camas, pronto, fazer as casas de banho, cozinha e passar a ferro. Por nove horas. E na quinta-feira às sete horas limpeza profunda, mudar as camas, lençóis, pronto, aspirar e limpar o pó, os vidros, uma limpeza profunda. E noutras casas tinha só quatro horas, uma vez por semana, uma hora passar a ferro, três horas limpeza. Tudo o que precisava a senhora ela dizia: “Olha, eu preciso desta roupa, preciso que limpes esta casa.”E depois disse-me isso, e depois foi eu que me arranjei >…@ o meu tempo, sabia que em quatro horas, durante quatro horas eu tinha que conseguir fazer isto, isto, isto, tudo.

Olga, Trabalhadora Moldava

Eles tão a pensar que sou eu única em Portugal que estou a ganhar 5 euros! E depois eu também explicava: “Eu não sou a única. Todas mulheres estão a ganhar assim. São mulheres da minha terra que tão a ganhar 7 euros, 8 euros! Mas eu nunca cheguei neste ponto de dizer: “Olha, tenho uma amiga que tá a ganhar 8, eu também quero 8.”. Não! Eu sempre fui muito discreta com eles, Pronto: “As senhoras estão a ganhar 6 euros eu também tou ganhar assim”. Eu tinha uma casa que eu acho que ela teve problemas com dinheiro, e também estava na altura de lhe dizer que as mulheres estão a ganhar 6 euros, na altura eu ganhava 5, e eu sabia que ela não ia concordar, e eu comecei assim uma conversa com ela que: “Eu vou deixar de trabalhar, que é muito pesado para mim, é muito trabalho só para mim, pesado” e ela disse: “Oh XXX, o problema é dinheiro, não é?”, e eu disse que sim, “Não há problema, vamos, arranjar dinheiro!”

Nádia, Trabalhadora ucraniana

De facto, o trabalho doméstico remunerado praticado na esfera íntima da família dificulta a sua percepção enquanto trabalho real, sendo esta actividade associada ao trabalho não remunerado praticado pela mulher. O trabalho doméstico encontra-se,

desta forma, desprotegido de alguns procedimentos legais que normalmente são oferecidas pelo emprego tradicional, contribuindo para uma maior vulnerabilidade das trabalhadoras. Esta vulnerabilidade é acrescida pelo facto de ainda persistir entre a patroa/patrão e trabalhador/a doméstico/a uma relação de posse, propriedade e “coisificação” que desumaniza o/a trabalhador/a e interfere no estabelecimento de uma efectiva relação laboral91.

As situações de vulnerabilidade são em larga medida demonstradas pelas situações de trabalho precário (em ambos os sectores), por parte daqueles que acedem ao mercado de trabalho por períodos curtos e sem possibilidade de verem os seus direitos protegidos, quase sempre, mas não exclusivamente, trabalhadores indocumentados. Segundo Elísio Estanque (2005), os imigrantes não documentados, em particular os da Europa de leste, tornam-se assim, “uma verdadeira massa de neo-proletários que alimentam as economias europeias e que engrossam diariamente as subclasses. A situação de carência e particular fragilidade em que se encontram, obriga-os a aceitar entrar no jogo da hiper-exploração, tornando-se vitimas da entidade patronal, obrigados a aceitar horários duplos, com salários muito baixos, vivendo em casas comuns com mais compatriotas, tornando-se também aqui, vitimas de senhorios sem escrúpulos. Segundo o autor, estas situações aumentam cada vez mais, devido à pressão mercantilista, que perverte as normas mais elementares do Direito Laboral, pela incapacidade do Estado democrático para pôr em prática a acção reguladora e integradora que lhe cabe (Estanque, 2005: 12).

Este acentuar de desigualdades e tendências de segmentação e reestruturação do mercado de trabalho foi por nós verificado pelas múltiplas contradições e fortes desigualdades sociais que parecem pressionar para baixo alguns dos interlocutores:

>…@ eu pago a minha passagem, e eu venho, agora eu já fiz reagrupamento familiar, depois a minha mãe que ficou em Cabo verde com os meus dois filhos menor, a minha mãe já morreu, já tem seis meses que já morreu. Morreu lá, ficou com os meus filhos menores, e o que me está preocupando muito é que o meu filho que está na casa do vizinho porque não tem ninguém para cuidar dele, e agora eu quero renovar a minha residência e do meu marido e o reagrupamento familiar para se pode trazer os meus filhos. Eu tenho contrato de trabalho, eu trabalho, das 8h às 16h, depois das 18h às 00h. Eu tenho a minha conta poupança no banco. Já meteu papéis, mas eles não dão alguma opinião porque o meu marido não está trabalhando. O meu marido já foi à junta médica, sexta-

feira e não aparece nenhum problema >…@ ele já foi ontem, na sexta-feira, ele andou todo o lugar onde a gente procura emprego, e mete o nome, e eles não aceitam. Eu sonhei, eu tenho tanta vontade de estar junto com os meus filhos >…@

Guilhermina, Trabalhadora Cabo-verdiana

>…@ E eu falei não, mas já tenho um bocadinho de experiência no pladur, porque trabalhei no Moscovo no pladur. E já mais ou menos, apesar de haver diferentes maneiras de trabalhar, mas no fundo é parecido. Aqui havia mais oportunidade, mas para vir assim sem contrato era muito mais complicado, é muito, muito complicado.

Anatoly, Trabalhador moldavo

Quando eu cheguei em 2000 não havia legalização, e nem havia a informação que vai haver, então nós: casa – trabalho, casa – trabalho. Tentamos menos aparecer na rua, menos entrar nos cafés, essas coisas, quer dizer, muito, muito escondidos! O mais escondido possível. Aqui, quando via uma polícia passava para o outro lado de da rua, para não observar, bastava só olhar, nota-se uma cara estrangeira, bastava só perguntar alguma coisa a resposta já dava que é um estrangeiro e logo perguntar a seguir papéis, não têm vistos, nem havia, >…@ podia ser mandado para fora. >…@ Tudo, nós, por exemplo quando eu saio eu não, imagina: eu como licenciado em geografia, era professor na universidade, fazia aulas para estudantes de primeiro e segundo ano eu havia só 40 dólares americanos. Isto era um ordenado mais ou menos médio do país. Agora quando eu vai chegar para Portugal eu paguei mil e tal euros! Para vir trabalhar onde estou a fazer o que faço >…@ de uma maneira >…@

Mário, Trabalhador moldavo

Aos velhos problemas relacionados com a imigração cabo-verdiana, associam-se ’novos/velhos’ problemas com as populações da Europa de leste. Verificamos que as velhas clivagens mantêm-se juntando-se agora as novas. Às contradições clássicas, entre trabalhadores e patrões, entre ricos e pobres, excluídos e incluídos, mulheres e homens, somam-se agora as desigualdades da era da globalização, entre qualificados e não qualificados, emprego estável e emprego precário, licenciados e não licenciados, imigrantes legais e ilegais. As barreiras existentes na sociedade portuguesa, sobretudo no mercado de trabalho imigrante não qualificado, são, portanto, expressões de barreiras sociais instaladas e a precariedade traduz-se na impotência e no medo. E a incorporação do medo, por sua vez, dá lugar à aceitação ou resignação, isto é, à auto-negação da luta pelos direitos. Neste contexto, cabe à

consciência critica, à capacidade de acção colectiva, às associações solidárias inverterem este sentido e traçarem um novo cenário. É, pois, num estímulo ao diálogo e à participação dos cidadãos imigrantes que a SOLIM se apetrecha de autoridade enquanto organização dentro dos valores da economia solidária, pela defesa dos mecanismos desses mecanismos de diálogo, no estimulo à participação de todos os imigrantes, e sobretudo, na execução de reformas e propostas de acção orientados para o desenvolvimento, para a inclusão, e para a justiça social. O seguinte excerto permite ilustrar a importância da referida associação no apoio aos imigrantes:

Fui ao SEF de Lisboa na António Aguiar, eu volto lá, eu fui lá, o mesmo atendimento no balcão diz-me: olha nós aqui não dá para resolver problema da senhora porque a senhora é IRS baixo e indica um senhor tão bom (Presidente da SOLIM). Ele dá- me o endereço daqui (SOLIM). Ele dá ao meu marido o endereço e nós vem aqui nessa associação, nós vimos e eles atendem e diz o que é pedido, fotocópia do passaporte dos meus filhos, o registo de nascimento do meu filho de Cabo Verde autenticado, tudo eu manda buscar, então o que eles pedem aqui tudo certinho. Eu fui lá no agrupamento familiar eles não me atendem, eles mandam-me para SEF na António Aguiar em Lisboa. Eu fui lá, eles não me atendem lá, mas o senhor atende-me diz: Dona XXXX a senhora tem de ter calma, e a senhora tem problema no IRS, então eu dá à senhora endereço que vai lá na associação emigrante, eles escrevem e vai lá e eles já atendem a senhora, eu veio aqui desesperada a chorar mesmo, então eles disse: Senhora vai dar tudo certo. Então eu estou aqui, eu já conhece todos daqui.

Guilhermina, Trabalhadora Cabo-verdiana

É assim, esta associação descobri porque fui nos Anjos ao Apoio do Imigrante (CNAI) não é? Para fazer a inscrição da minha mãe porque ela não tem documentos e depois disseram que ali não dava para fazer e não sei quê e uma senhora deu-me a morada para eu aqui vir >… @ Mas eu acho que esta associação é muito importante, porque ajuda bastante as pessoas a ter documentos.

Joana, Trabalhadora Cabo-verdiana

>… @ E agora venho aqui à associação para reclamar para fazer uma carta, porque eu já tenho sete anos aqui para trazer os meus filhos. Mas só que eles recusaram porque o vencimento é pouco, mas eu tenho oito horas de trabalho. É isso que eu não estou a perceber porque isso é que eu estou cá para perceber. Eles (SEF) já mandaram a carta

para casa, mandaram hoje, mas eles recusaram.Porque com o meu desconto não >…@ não sei se é desconto, por isso veio aqui para saber, para perceber melhor, para me ajudarem. Maria, Trabalhadora Cabo-verdiana

>… @ uma amiga depois falou-me da associação e deu-me um cartão, porque a associação tinha um cartão onde aparecia escrito tudo, tudo, na língua portuguesa, na língua ucraniana, na língua inglesa e eu depois vim cá. Eu agora venho cá porque estou atrasada com o IRS. Eles fazem na máquina, no computador e ajudam para eu receber. Nádia, Trabalhadora ucraniana

A importância do associativismo nos processos de mudança social é um facto incontestável. Os processos de industrialização e de urbanização das sociedades, a desconfiança e a crise nos sistemas de representatividade formal do Estado, assim como dos mecanismos de regulação do mercado têm estado na origem da emergência de um novo tipo de associativismo assente nos pressupostos da economia solidária. A crise do Estado-providência pode ser visualizada em diferentes dimensões. Em primeiro lugar, no domínio das políticas sociais para com os imigrantes e ademais populações, na estrita medida em que não tem a capacidade financeira suficiente para investir com a proficiência devida na saúde, no apoio daqueles que estão em situação mais vulnerável pela assistência social, nos subsídios de desemprego, na formação e na educação. Por outro lado, o Estado-Nação clássico vem perdendo capacidade de gerir e administrar o seu território em função da sua identidade económica, social, cultural e política, sobretudo nos domínios da administração política e territorial, hoje mosaico de várias nacionalidades (Soysal, 1994). Afirmações muito vagas e pouco fundamentadas A crise do Estado é também notória na sua relação com a sociedade civil. Em relação a esta, está demasiado distante e demonstra-se incapaz de resolver os problemas dos que habitam o seu território no que reporta aos índices de desemprego, exclusão social, pobreza, ambiente e, por outro lado, as suas relações com as organizações da sociedade civil são atravessadas por perversões burocráticas, corporativas e muitas vezes corruptoras. No que diz respeito à condição vulnerável do imigrante e à responsabilidade do Estado neste capítulo, temos de olhar para o Estado como um agente activo neste vasto processo de subordinação estrutural que reforça os diferentes patamares de discriminação com base na etnicidade, no género, na nacionalidade e na ocupação.

Os sinais são objectivos, as tendências que indiciam a implosão do sistema económico não deixam de ser sintomáticos em relação à insustentabilidade do capitalismo tal como tem sido construído. Por isso, quando falamos de economia solidária em Portugal e no mundo devemos valorizar ao lado dos seus méritos presentes as suas virtualidades futuras. Segundo Namorado (2009: 69), valerá ainda assim, enunciar que a economia solidária está “geneticamente vocacionada para o curto prazo, uma vez que é ágil a responder a questões concretas”. Globalmente, poderemos dizer que a economia solidária, apesar da subalternidade no seio do capitalismo não a impede de dispor de energia alternativa necessária para poder ser concebida como parte de um horizonte pós-capitalista (Ibidem). Foi o que vimos acontecer na SOLIM, uma resposta pronta, concreta e solidária, na vida daqueles que por lá passaram, os outros protagonistas.

No documento Na terra de ninguém: os outros protagonistas (páginas 100-108)