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2. ANÁLISE DOS CONTOS

2.2. A imitação da rosa

0 t exto A Imitação da R o s a , num nível de apreensão e n ­ d e r eçado para uma leitura sociológica, aponta, e m síntese, a d i f i c u l d a d e de uma pessoa em adaptar-se aos padrões de "norma l i d a d e " , impostos p e l a sociedade burguesa, e m dois níveis: em p r i meiro lugar a inadaptação eu/outro (eu - Laura p e r s o n a g e m que constirui o móvel da narrativa: outro - pessoas que inte gram seu mundo) e num segundo plano, menos relevante, a rela ção outro/eu. Assim, a necessidade de viver, num contexto ma- niqueísta, onde as pessoas são consideradas "saudáveis" na m e d i d a e m que m e lhor adaptam seus atos à n o r m a imposta pelos padrões do dominante, b e m como d e s r e speitá-las constitui "do­ ença", v e m caracterizar o enredo.

A personagem, e d ucada dentro de p a drões burgueses, se gundo os quais a mulher é u m "bem" de posse, no decorrer da v i d a ao passar do domínio do pai para o do marido, tenta r o m ­ per barreiras no intuito de conseguir a posse de seu "eu" que, no conto, é correspondente â anormalidade. E, e m c o n t r a p a r t i ­ da, a repetição m e c â n i c a das verdades estabe l e c i d a s p e l a ideo logia dominante e dos atos cotidianos, d enota n o r m a l i d a d e . N e £ te ponto, o conto articula o questi o n a m e n t o do cotidiano p a ­ triarcal, que escrav i z o u a mulher a seu patrimônio, tornan- do-se uma realidade segunda ao p ropor a outra face do real, que integra a existê n c i a d a protagonista.

0 texto é estrut u r a d o sob o foco narrativo de terceira pessoa, através do qual o narrador onisciente expõe a luta de Laura para romper barreiras culturais e firmar-se como p e £ soa com direitos de possuir, ao invés de ser apenas o bjeto de

p o s s e :

"Por que dá-las então? (personagem refere -se a algumas rosas) Lindas e dá-las? Pois q uando você vai e dá? Pois se e r a m s u a s , in sinuava-se e l a p ersuasiva sem e n c o n t r a r o u ­ tro argumento além do mesmo q u e , r e p e t i d o , lhe p a recia cada vez mais convincente e sim pies." (27)

No entanto, o processo de p a s s a g e m de "bem de p o s s e " p a ra "possuidora de bens" se, dá mediante o sentimento de a n g Ú £ tia p a rceptível no discurso, através da repetição de palavras p a r a m o strar a rotina, o tédio, a prisão.

A repetição gera um clima de insegurança, p r o p u l s o r de an g ústia que, por sua vez, r epresenta uma m o d a l i d a d e de intro

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duzir o tempo e suas dimensões, num m u n d o atemporal . A ação cronol ó g i c a da n a r r ativa transcorre no p e r í o d o de doze horas, contraposta ã ação psicol ó g i c a que vai do p a ssado ao futuro da personagem, por intermédio de flash-backs e fluxo de c o nsciência de Laura, contrastando com o movim e n t o a c elera do da vida, na grande cidade. Assim, técnicas como o s o l i l ó ­ quio, m o n ó l o g o interior direto (menos freqüente), m o n ó l o g o in terior indireto, são recursos explorados por Clarice Lispec- tor na fixação das dimensões passado, presente e futuro da personagem, vindo a p r o p o r c i o n a r maior amplidão a sua luta, p a r a atingir a individualidade.

Através de u m a série de reflexões, Laura tenta e s t r u ­ turar seu " e u " , fragmentado por ausências m o t i v a d o r a s de um vazio existencial e de uma contínua rotina, d i retamente rela cionada a u m e stado de alienação aos valores i d eológicos/ os quais limitam as ações femininas ãs atividades domésticas.Tais

cia negativa na sua p s i q u e , ou como provenientes de uma e d u c a ção fundamentada nos valores tradicionais da média-burguesia: - a a u s ência de filhos contribui de modo d e c isivo p a r a a não

integração do "eu" de Laura, v i n c u l a d o à ociosi d a d e d o m é s ­ tica:

"Sempre invejara as pessoas que d i z e m "não tive t e m p o " ..." (29)

"0 que d e v i a fazer, mexend o - s e com familia ridade n a quela íntima riqueza da rotina - e m a g o a v a - a que C a rlota despre z a s s e seu g o £ to pela rotina." (30)

A protagonista, envolvida numa r o t i n a - o c i o s a , passa a v a l o rizar cada ato p r a t icado como responsável pelo p r e e n c h i ­ mento do tempo. Na sua configuração, podemos s i t uá-la como uma m u l h e r alheada do p r o cesso de produção. Para ela, o trabalho apenas funciona como terapê u t i c a para apoiar sua v i d a a l i e n a ­ da a uma tradição cultural que v a l o r i z a a m u lher p e l a e f i c i ê n cia de seu desempenho doméstico, num contexto onde a d i s t i n ção entre posturas de homens e mulheres são claramente delimjL tadas e aceitas como inquestionáveis.

"Há quanto tempo não v i a A r m ando e n f i m se recostar com intimidade e c o n v ersar com um homem? A paz de u m homem e r a , e s q u ecido de sua m u l h e r , conversar com outro h o m e m sobre o que saía nos jornais. E n q u a n t o isso ela falaria com Carlota sobre coisas de m u l h e ­ res ,..." (31) (grifos nossos)

A ficção, portanto, enfoca, a mulher p e r t e n c e n t e a uma organi z a ç ã o d o m é s t i c a que lhe deter m i n a "apenas" ter funções

internas, isolando-a do exterior.

As verdades c o m p o r t a m e n t a i s , impostas por uma e d u c a ­ ção patriarcalista, c o n t r i b u e m p a r a uma angústia que inibe a

práxis e a liberação da p r o tagonista que sõ seria alcançada mediante sua p a r t i c i p a ç ã o nos meios de produção. Isso a a f a s ­ taria do círculo de preceitos dogmatizados, presentes no dis^ curso por objetivos que r e metem para a necessidade de uma r i ­ gidez de postura:

"Então, não. O que devia fazer era em brulhã-las e m a n d á - l a s , sem n e n h u m prazer agora; embrulhá-las e, decepcionada, mandá- las; e e s p a n t a d a ficar livre delas. T a m b é m porque uma p essoa tinha que ter c o e r ência , os pensamentos d e v i a m ter c o n g r u ê n c i a . (32)

(grifos nossos)

Finalmente, a falta de saúde e b e l e z a são aspectos a s erem considerados por c o n s t i t u í r e m ausências referentes ã p r o t a g o n i s t a e, simultaneamente, valores culturais do mundo, e m que vive. A constante p r e o c u p a ç ã o e m seguir as normas para m a n t er-se saudável é intensa, a ponto de tornar-se u m a forma de escravizá-la:

"Se o m édico dissera: "Tome leite en tre as refeições, nunca fique c o m o e s t ô m a ­ go vazio, pois isso dá ansiedade" - então, m esmo sem ameaça de ansiedade, ela tomava sem discutir, gole por gole, d i a após dia, não falhava nunca, o bedecendo de olhos f e ­ chados , com u m ligeiro ardor para que não pudesse e n x ergar e m si a m e n o r i n c r e d u l i d a ­ de." (33)

E n q u a n t o que a ausência de b e l e z a gera a angústia como forma de comunicar-se numa relação de oposição, na m e d i d a e m que Laura busca convencer-se de que tal valor lhe é indispen sável, apesar de p e r ceber que difere dos padrões de b e l e z a vi^ gentes, na sociedade de seu tempo:

"Não tem importância que eu engorde, pensou, o principal nunca fora a b e l e z a . "(34) e l a . i r i a de braço dado com Armando, andando devagar p a r a o ponto do ô n i b u s , com

aquelas coxas baixas e grossas que a cinta empacotava numa so fazendo dela uma "senho ra distinta"; mas quando sem jeito, ela d i ­ zia a Armando que isso v inha de insuficiên cia ovariana, ele que se sentia lisonjeado com as coxas de sua m u l h e r , respondia com muita audácia: "De que me adiantava casar com uma bailarina, era isso que ele respon dia." (35)

"Mas, como ela ia dizendo, de braço dado, baixinha e ele alto e magro, mas ele tinha saúde graças a Deus, e ela c a s t a n h a . Ela castanha como o b s c u r a m e n t e achava que uma esposa d e v i a ser." (36) (grifos nossos)

Esta e numeração de a u s ê n c i a s , geradoras de u m vazio existencial na vida da personagem, v e m revelar que o texto, ao fazer a person a g e m assumir a ideologia v i gente a d e s m a s c a ­ ra por intermédio do confronto de idéias que não p o s s u e m va lor semântico em comum: saúde versus castanha (atributo de be l e z a ) , de modo que a forma d e s m i s t i f i c a os valores i d e o l ó g i ­ cos que d e f e n d e m a b e l e z a física como fundamental â mulher.

0 e stado de alienação, é alterado no decorrer da narra tiva, por intermédio do rompimento com a obscur i d a d e p r o v o c a ­ da pelo domínio:

A - família - devido uma e x c e ssiva p r e o c u p a ç ã o c o m os a f a z e ­ res da casa e pelo jugo do marido;

B - amigos - (Carlota e João) que p r e s e r v a m u m elo com o passado.

O vínculo Laura/ C a r l o t a primei r a m e n t e c o n s t i t u í a uma relação de poder. Laura é "submissa ã bondade autori t á r i a e pr ática de Carlota", até o m o mento da "imitação da rosa" - e- tapa e m que surge e m L a u r a a necessidade de contestar e libe r a r - s e .

tativa de rompimento com os valores assimilados, a busca de um mundo com maiores possibilidades. As rosas, desta forma, agem na p r o t a g o n i s t a como uma ameaça, como objetos de provoca ção e a s s i m são eliminados ao serem doados ã Carlota, em agra decimento a u m convite p a r a jantar:

"Incomodava? Era um risco. Oh! não, por que risco? apenas incomodava, e r a m uma a d v e r ­ tência? M a r i a daria as rosas â Carlota.

(37)

Ato decisivo por resultar e m três certezas p a r a a pro tagonista:

a) ser p o s s u i d o r a de algo,

b) p o s s i b i l i d a d e de desfazer-se do objeto possuído;

c) necessidade de lutar p a r a p ossuir-se e de, d o n a de uma "a- legria h u m i l d e " , ultrapassar para um e s tágio de v i d a plena - "a imitação de Cristo". Cristo é s i mbolizado na rosa,que carrega em si o e s tereótipo da b eleza perfeita, de forma a criar analogicamente uma explicação p a r a o título do conto: "A Imitação da Rosa".

Na e tapa final da narrativa, a relação d o m i n a n t e / d o m i ­ nado se altera - de submissa e incolor, L a u r a transporta-se pa ra u m d esabrochar sereno, contrariamente a Armando (altivo na posição de "marido" e "dono da mulher e da casa") retratado como "envelhecido, cansado, curioso". A t r a n sformação de p o £ turas de L aura e de A r m ando altera a o r d e m da antítese dom_i nante / d o m i n a d o que é m a n t i d a até o final do conto.

A travessia, da passividade e da omissão crítica -para um possuir-se, foi o caminho trilhado por Laura, tornando possível v i n c u l a r a arte como criadora de uma realidade segun

da, que enfatiza a capacidade humana de estabelecer sentido no mundo, e x pressando u m a crítica ao "real" tomado por referente.

Assim, neste p e r curso conflitivo da personagem, podem- se estabe l e c e r duas etapas a partir do exame do d i s curso fixa do por Clarice Lispector. Na etapa primeira, e m que as verda des sociais e culturais são aceitas com a submissão de Laura, o texto d e s envolve-se sintática e s e m a nticamente claro e obje t i v o .

"Antes que Armando v o l tasse do t r a b a ­ lho a casa d e v e r i a estar arrum a d a e ela pró pria já no v e s tido m a r r o m p a r a que pudesse atender o m a rido enquanto ele se vestia, en tão s a iriam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam i s ­ so?" (38)

A ambiguidade semântica m a r c a a segunda etapa, quando a p e r s o n a g e m cogita romper com a e s t r u t u r a social e m que está i nserida e o texto transmite mais do que e x p l i citamente "diz" — , d i rigindo-se para u m final "em aberto", no qual as verdades tornam-se dúbias e p r o v o c a m uma reflexão sobre a a l ­ t e r n a t i v a de maior nível de partic i p a ç ã o diante da a g r e s s i v i ­ dade social:

"Ela e stava sentada com seu vestidiL nho de casa. Ele' sabia que ela fizera o pois sível p a r a não se tornar luminosa e inal- cançável. C o m timidez e respeito, ele a o- lhava. Envelhecido, cansado, curioso. Mas não tinha uma p a lavra sequer a dizer. Da p orta a berta v i a sua mulher que e s t a v a s e n ­ tada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como num trem, Que____ ja p a r t i r a T" (39) (grifos nossos)

E m suma, a nível de linguagem, o conto é construído em dois momentos, p a r a m e l h o r d e l inear a nulidade da força individual ante a a u t omatização rotineira p o r t adora de u m a a-

ção dialética, que camufla a percepção do indivíduo p a r a a crescente tensão homem/mundo.

A observ a ç ã o da linguagem do conto em sua totalidade traz a m a r c a da insistente utilização d a técnica da r e p e t i ­ ção :

..."que Deus a perdoasse, ela sentira que q u e m imitasse Cristo estaria peidido- - p e r d i ­ do na luz, mas p e r igosamente p e r d i d o ."(40)

"E, como para todo o m u n d o , a cada d i a a fa tigava; como todo o mundo, h umana e p e r e ­ cível." (41)

"Olhou-as, tão mudas na sua mão. Impessoais na sua e x t r e m a beleza. Na sua e x t r e m a tran quilidade p e r f e i t a de r o s a s ." (42) f-grifos nossos)

Recurso pelo qual Clarice levanta um q u e s t i o n a m e n t o ao reagir dos indivíduos na sociedade, pois ao dizer e n f a t i c a m e n te sobre uma situação faz com que ela seja m e l h o r observada, e x p o n d o - a e m suas d i v e r s i d a d e s .

Para Laura, assumir-se é m e r g ulhar na "anormalidade" , fixada ficcionalmente como um d e spojamento ideológico, o ex t r a vazamento que rompe com as normas do p a drão cultural que v i g o r a na média-burguesia.

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