• Nenhum resultado encontrado

Imitação e superação da Natureza O contributo dos mestres da Antiguidade

DA IMITAÇÃO À IDEIA

3. De um eventual carácter científico da arte Imitação e superação da Natureza

3.2. Imitação e superação da Natureza O contributo dos mestres da Antiguidade

Ao contribuir para que novas obras, novos textos fossem trazidos até nós, o Humanismo teve também uma assinalável importância para o domínio das artes. A Poética de Aristóteles é um exemplo declarado dessa reivindicada importância. Com a divulgação deste texto, a ideia de imitação liminarmente tomada como “aperfeiçoamento da Natureza” ganhará maior visibilidade, e o próprio método de selecção empírica do sujeito sobre o seu objecto ganhou outra relevância e outra dimensão. A beleza passa a ser determinada no momento em que o sujeito observa as leis da perspectiva e da anatomia, na procura de assim alcançar, em sentido pleno, um ideal de exactidão formal e objectiva. Começa também a impor-se a ideia de que há uma efectiva articulação entre beleza e reprodução do real, sempre com o fito derradeiro de superação das suas diagnosticadas “irregularidades”.

Esta exigência de imitação como superação que ora se desvela fora antes promovida, de forma plenamente consumada, pelos autores da antiguidade que elogiavam o rigor e o realismo daqueles seus contemporâneos que exibiam a capacidade de criar perfeitas ilusões da Natureza. A exigência supramencionada de realismo e rigor encontra em

Apeles42, Zeuxis, Parrásio a sua expressão mais estuante. Há de resto algumas lendas que ilustram bem estas determinações que podiam ser surpreendidas nas obras dos mestres antigos, e que ora são recuperadas nestes teóricos da arte renascentistas. Uma dessas lendas versava sobre uma espécie de “prova” a que foram submetidos Zeuxis e Parrásio, que consistiria na pintura de um quadro para saber qual dos dois podia ser considerado melhor pintor. No âmbito dessa experiência, Zeuxis pintou um quadro com uvas. Quando o desembrulhou vieram dois passarinhos e bicaram a tela, julgando tratarem-se de uvas reais. Zeuxis pediu então a Parrásio que desembrulhasse o seu quadro, para determinar então qual dos dois era efectivamente o melhor. Só então percebeu que a pintura de Parrásio simulava uma embalagem. A conclusão foi, pois, a de que Parrásio era melhor pintor que Zeuxis, uma vez que tinha conseguido iludir o olho humano de um artista, ao passo que Zeuxis apenas iludira os olhos dos pássaros.

Outra dessas lendas conta que para representar Helena de Tróia para o templo de Juno, Zeuxis43 implorou às cinco jovens mais bonitas de Crotona que lhes permitissem pintar o que de mais belo cada uma tinha, para assim concretizar o seu propósito. Como ora se vê, mais do que um ensejo de fidelidade ao real – bem exposto na primeira das lendas narradas – o que

42

É curioso referir que Francisco de Holanda foi considerado por André de Resende o Apeles português.

43

Esta anedota encontramo-la já em Cícero, no seu De inventione.

agora se põe em evidência é antes um exercício de superação do real. Num e noutro casos, se perfilam exigências que constituem os aspectos fundamentais para os mestres da antiguidade44. Essas determinações, doravante consideradas fundamentais, instituirão, no quadro do renascimento, a substituição da imitação da Natureza pelos mestres antigos e, consequentemente, a superioridade da invenção sobre a imitação. Uma tal determinação geral é bem evidente no caso de Francisco de Holanda: “Com esta se aconselhará em todas as suas cousas; esta emitará em mui antiguas novidades, e galantarias, já mais nunca vistas nem emaginadas, nem feitas senão então. D’ali aprende a grandeza e severidade da invenção; d’ali a symetria e prudentíssima proporção de cada parte e membro das suas obras: d’ali a perfeição e decoro, dando a cada cousa o que seu é”.45

Outra das marcas da antiguidade, que Holanda fez rebater, do ponto de vista da sua influência, sobre o conceito de imitação foi a “selecção”, a escolha do melhor modelo. O passo que se segue, sendo longo, é todavia incontornável enquanto ilustra em sentido pleno o desiderato do nosso autor nesta matéria. O texto reza assim: “O segundo mestre por onde se deve aprender deve, e o segundo abraça-se, será com mui discreta e mui fermosa e magnânima Antiguidade, a qual de louvar nunca serei satisfeito.

44

Para além dos mestres da antiguidade, também Giotto pode ser surpreendido como modelo a seguir. É isso que faz Bocaccio (1313-1375) no seu Decameron, VI, 5, com o seu bem conhecido realismo representativo.

45

Francisco de HOLANDA, Da Pintura Antiga, Introdução, notas e comentários de José da Felicidade Alves, Livros Horizonte, Lisboa, 1984, Cap. XI.

Com esta se aconselhará em todas as suas coisas; esta imitará em mui antigas novidades, e galanterias, jamais nunca vistas nem imaginadas, nem feitas senão então. Dali aprenda a grandeza e severidade da invenção; dali a simetria e prudentíssima proporção de cada parte e membro das suas obras; dali a perfeição e o decoro, dando a cada coisa o que é seu. Dali aprenda a repartir e eleger e o fugir de mostrar tudo confusamente. Dali aprenda a fazer muito pouco e muito bem, e quando cumprir fazer muito e muito compartidamente, o fugir do feio e sem graça, o buscar sempre a gentileza e majestade, e a rande advertência e perfeição nos mores descuidos por que os outros passam levemente, escolhendo sempre o mais pouco, e o melhor entre o melhor, e o despejado e os espaços, fora dos entricamentos da confusão e do mau eleger. Ali achará ele a música e concordância e conformidade, a graça e o despejo (que é grão primor nesta arte) e assim mesmo as licenças e os erros feitos tão acertadamente, como costumaram os discretos antigos, Gregos e depois os Romanos”.46 .

Fica entretanto evidente a relação de enorme proximidade que unia Francisco de Holanda à Antiguidade. Poder-se-á dizer que, em Portugal, foi Holanda quem primeiro enalteceu a Antiguidade, algo que acontecia sistemática e naturalmente, no domínio das artes, em Itália: “Mas neste lugar seja-me a mim lícito dizer como fui o primeiro que neste reino louvei e apreguei a antiguidade, e não haver outro primor nas obras, e isto em tempo que todos quase queriam zombar disso, sendo eu moço e servindo ao

46

Ibidem, Cap. X.

Infante Dom Fernando e ao sereníssimo Cardeal Dom Afonso, meu senhor.”47

4. Problema da selecção dos modelos: a polémica entre Pietro